julho 25, 2011



TUDO AO LONGO DA TORRE DE VIGIA


O ladrão chamado Gravata já estava lá quando o Coringa chegou.
Naquele altar montado num quarto do hotel do YMCA em Lavandisca, no México. Tudo muito escondido da administração do hotel, pessoas sérias, dadas a acreditarem no holocausto como salvação pessoal, mas nunca na salvação oriunda com o sacrifício de animais. Principalmente com o sacrifício de uma cabra dentro do hotel deles.
- Mas que droga é essa?
O Coringa acabara de entrar no quarto e estava transtornado. Ele não imaginava que o Gravata, seu sócio ocasional, fosse praticante das magias africanas e do vodu.
- Porra, isto está me incomodando. Dá para se livrar desse bicho, ô Gravata?
O ladrão nem se importou em sair da frente da TV. Apenas apontou para o terraço onde duas pessoas estavam tomando vinho, sentados numa pequena mesa redonda.
- Fica frio, essa cabra é de um daqueles caras...
O Coringa foi até a sacada do hotel e gostou do que ouvia.
Um homem de negócios combinava algo sacana com um agricultor, um cara que arava os campos perto da cidade de Lavandisca.
- Olha lá, Matuto... Será que o saco plástico agüenta bem no estômago de uma cabra até chegar aos Estados Unidos?
- Sossega homem... Tão certo como essa torre nunca cairá...
- Torre?
- Isto tudo aqui...
O homem do campo, dono da cabra, a sorver do bom vinho tinto, às atitudes, embora posto em sossego, ali apenas por acaso, para um negócio escuso, como talvez todos nós, neste acanhado orbe terrestre, com maneiras simples, esse homem, tomando do néctar de Baco, à mesa de negociação, fez um gesto apenas, simples como um girar de compasso, com seu dedo indicador, em riste, ao circular em torno de seu próprio punho, múltiplos significados, do prédio do hotel YMCA, e toda a cidade de Lavandisca, mais apropriadamente, todas as cidades do mundo, ou Chicago ou Rio de Janeiro ou Los Angeles ou Madri ou Tóquio ou São Paulo ou Lima ou Moscou ou Foz do Iguaçu, todas elas, apenas sendo torres, fechadas em si mesmas, a guardar os mantenedores, da prática do oculto, da verossimilhança, como Babel, no papel de embrulho, no céu de porcelana, nas atitudes de cada um.
- Ah, não esquente sua cabeça...
O homem de negócios acalmou as pretensões bíblicas do agricultor. E logo se levantou, com gestos subservientes, ao ver que chegava o Coringa.
- Como vai essa força, Coringa?
- Tudo nos conformes... E então? Alguma coisa nova por aqui?
- Apenas detalhes da transferência da mercadoria...
- Ah, sim...
- Que irão para a América dentro de centenas de cabras...
- Entendi... E para que essa cerimônia?
- O Matuto acha que devemos sacrificar uma cabra para que todo o rebanho passe pela alfândega sem chamar a atenção... Coisas que ele aprendeu com o grande Mojo... O obscuro... O transferidor...
- Pois que se sacrifique a cabra...
Depois o ladrão chamado Gravata, que estava vendo a TV, comentou algo amavelmente, como para justificar seu apoio ao sacrifício do animal:
- Nenhuma razão para ficarmos excitados... Há muitos aqui, principalmente dentro desse hotel, que pensam da vida ser mesmo uma piada...
O Coringa pareceu se irritar com aquele súbito comentário do Gravata:
- Mas você e eu—nós, não é?—já passamos por isso... Matar, ainda que seja apenas um bicho, não é nosso destino... Mas é a necessidade... Então vamos parar de falar hipocritamente... A hora do pega prá capar está começando tarde demais... Pode sujar que a moça da limpeza depois faz a faxina...
Tudo o que ocorre ao longo da torre de vigia. Trapaças, esquemas e artimanhas. Os príncipes do capital flutuante ali mantêm seus olheiros. Maracutáia é o epíteto desse imenso circo. Quando todas as mulheres sem rumo vieram, acomodaram-se na mesa do vinho farto, e depois se foram. Muito embora. Entretanto. O dia de hoje foi reservado para o sacrifício. O lavrador está ainda assustado com tanta sangueira. Ao vender ali suas cabrinhas ele pensou nos seus empregados descalços. E também. Quem sabe? Sabe-se lá!
- Segurem a cabra que o Matuto corta o pescoço dela...
Lá fora. Na distância fria. Um gato selvagem rosnou. Dois cavaleiros estavam se aproximando da rua principal de Lavandisca. E o vento começou a uivar. Tudo ao longo da torre de vigia.
(Conto de Beto Palaio, inspirado em All Along the Watchtower - Jimi Hendrix)



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FD J Borges

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