abril 30, 2013


Warhol-ian: The face of Marylin Monroe has been created in different colour combinations in a display which looks inspired by the legendary portrait series by Andy Warhol

AS MORTES DA MORTE EM VENEZA


5

Poucos dias após sua chegada em Veneza, Marietta Allred, uma turista de Nova York, foi encontrada morta. Ela flutuava perto das barcarolas azuis e amarelas, que são pintadas desta forma para uso exclusivo dos usuários do Hotel da Távola. Logo a estória de Marietta deverá ser avaliada nas minúcias pelas autoridades locais. Mas quem seria Marietta Allred? Desta vez o caso parecia mesmo inconcluso. Pois quase não deixava pistas significativas. Chegam a esta conclusão o detetive Mandrake, seu fiel assistente Lothar, o gigante africano, e sua mulher Narda. Para tanto, muitas perguntas foram feitas pelo trio no Hotel da Távola onde Marietta Allred esteve hospedada. Dali surgiu uma inocente testemunha chamada Rondha Turnstile, rotulada como moça tímida e chorona, que passou para as autoridades italianas um extenso relatório onde nada de importante se poderia aquilatar, muito ao contrário do que algumas testemunhas afirmavam—e Rhonda insistia bastante nesse ponto—de que entre elas duas jamais ocorrera qualquer estória de amor, nas versões aquilatadas, aqui e ali, como paixão tórrida, envolvente, ou algo parecido...

- Ah, senhores... Eu mal conhecia essa mulher... Tomamos o mesmo avião... Mas, e daí?

Volta-se a quadra do tempo. Agora em Nova York. Onde Marietta Allred encarna uma poetisa temporã, nascida em Nova Jersey, com lhufas de referência editorial, mas já acumulando uma “edição de autor”, impressa às próprias custas, com uma tiragem acanhada de mil exemplares. Edição a qual fica quase toda arquivada num dos recantos de seu apartamento-atelier. Marietta durante o dia trabalha na Sotheby´s, envolvida em tarefas burocráticas, e à noite ela pinta telinhas descompromissadas, apenas por hobby. Contudo ela demonstra alguma fixação nos trabalhos que produz, já que pinta somente os retratos por quem está apaixonada. Por isso seu apartamento está tomado, neste momento, por vários desenhos a carvão, algumas aquarelas soltas pelo chão, e quatro telas à óleo representando Rondha Turnstile, uma linda moça que se identifica como “uma profissional da atividade de scort girl”, ademais sendo, além disso, uma ferrenha alpinista social. Para Marietta Allred a sua fixação por esta moça se trata de uma paixão sem sentido já que, além de não ser correspondida pela musa Rondha Turnstile, a qual ainda acumula sérios problemas legais, inclusive chegando a responder por um processo de chantagem, oriundo de um dos cassinos de Nova Jersey. Ocorre que Rondha, junto com sua mãe Frincha Turnstile, uma trambiqueira no jogo de 21, se dispunham sempre a provar das suas recentes invenções para driblar as ações calculadas dos crupiês durante o jogo. No dia da prisão de ambas, durante uma dessas seções de descarte das cartas da banca, Frincha combinou para que Rondha ficasse pelada, ao lado do crupiê, enquanto ela trocava as cartas na mesa. As câmeras de segurança registraram o ato, e ambas foram detidas. Hoje somente a Rondha está respondendo ao processo, isto por desacato às autoridades e por insistir em se manter pelada durante todo ato de perseguição e arresto. Entretanto Marietta parecia mesmo disposta a esquecer certos episódios da vida de Rondha. Ela chegou a ser avisada de que Rondha Turnstile era uma vigarista e catimbeira da pior espécie. Uma pessoa que discretamente lhe alertou foi Binki Brando, uma aspirante a estrela de cinema e sobrinha-neta de Marlon Brando. Foi Binki quem lhe chamou atenção sobre certa peça de arte do apartamento de Marietta haver desaparecido. Esta peça era uma gravura do Andy Warhol, uma que exibe a cena mórbida de um Oldsmobile acidentado, sendo repetida, em verde e sépia, em seis situações idênticas.

- Marietta, essa gravura foi roubada por ela... Você não deveria deixar esse tipo de gente entrar no seu apartamento.

Mas Marietta refutava as evidências. Dizia que a gravura era realmente uma “bad art”, e que estava mesmo intencionada a se livrar daquela obra. Inclusive, ela falou para Binki, que seu amigo de copo e noitadas, o Estébam Macieira, filho de um vinhateiro do Chile, sempre que via a gravura lhe falava das más vibrações que aquele tipo de pintura trazia:

- Se liga Marietta, esse cadáver caindo da porta do Oldsmobile ficará suspenso no tempo para sempre... Ele não terá paz... Virá cobrar de você uma atitude reparadora...

Mas Marietta, apesar dos pedidos cordiais dos amigos, jamais dispensou ou deixou de pagar pelos serviços de scort girl à Rondha Turnstile. Corrigindo apenas a menção da palavra “serviços”, os quais eram utilizados somente com o propósito de Rondha posar nua para suas pinturas. Contudo, houve mais um episódio memorável entre elas. No qual, inclusive para fazer a vontade de sua mãe Frincha Turnstile, essa sua exemplar modelo Rondha, diga-se, um nu artístico realmente fora de série, acabou por convencer Marietta a pagar uma passagem aérea para todas irem juntas para Veneza. E foi o que Marietta concordou em fazer, juntou suas economias e comprou seis passagens ida-e-volta pela American Airlines para Veneza. Inclusive, um mês depois do pedido de Rondha, a sempre afável e dedicada artista plástica, numa das seções de pintura, deixou cair as passagens aéreas de propósito, para que Rondha as apanhasse. Mas Rondha lhe devolveu os bilhetes sem nenhum comentário, apesar de notar que as passagens eram para Veneza.

- Não vai me falar nada, Rondha?

- Sobre?

- Sobre as passagens para Veneza...

- E o que tenho com isso?

- Lembra-se que me pediu as passagens?

- Ah, sim... Mas notei que a viagem é para Veneza, no “Oriente Médio”... E a Veneza que gostaria de visitar, junto com mamãe, fica na Califórnia... Por causa de uns primos nossos que moram lá... Sabe?

Marietta Allred não se conformava com as idas e vindas sem sentido que lhe causava essa Rondha Turnstile... Inclusive sua burrice extrema realmente azucrinava o seu delicado ouvido, mas ela jamais ousava corrigir a sua modelo...

- Bom... Rondha... As passagens para Veneza... Na Itália... Europa... Sabe?... Já estão compradas... Você toparia ir?... Comprei uma passagem extra... Você até poderá, se quiser, levar sua mãe junto...

- Não sei de onde você tirou essa idéia... O que eu iria fazer com essa bêbada na Europa?

- Bom, foi apenas uma tentativa... Esquece isso, tá?

Mas no dia seguinte, por motivos alheios aos desejos reais daquela viagem, quem sabe até para tentar se esconder de alguma possível ação ilegal, Rondha apareceu no apartamento de Marietta. Ela surgiu sem marcar horário e, agindo de forma excêntrica, já foi entrando e tirando a roupa. Neste dia ela estava alucinada para exibir seu lindo corpinho. No entanto. Com calma Marietta a fez entender que não estava inspirada para a pintura, entretanto Rondha lhe disse que naquele dia não queira ser pintada e sim beijada e abusada. Com isto. Marietta tomou um susto. “O que?... Estou ouvindo direito?”. Quis refugar, porém ficou até sem ação. Pois uma Rondha altamente escolada em relacionamentos múltiplos vem e, com gritinhos voluptuosos, incentiva Marietta a se livrar de suas roupas. Ato contínuo Rondha iniciou aquela tímida pintora e poetisa na verdadeira delícia do sexo lésbico. Entretanto. Foi já no preâmbulo da transa que Rondha tocou no assunto de Veneza:

- Minha mãe acha que sou uma burra de não aceitar em fugir para Veneza com você...

- Fugir?

- Ora... Eu falei fugir?... Que idiota eu sou... Nem sei como você me atura...

Quinze dias depois as três estão ocupando seus lugares naquele 747 em direção à Itália. Durante o trajeto Frincha Turnstile bebia muito e passou a maior parte do tempo dormindo de boca aberta e roncando. Enquanto isto as duas trocavam carícias discretas e se beijavam, de quando em quando, trocando hálito e saliva com bastante vigor. Foi na trégua de uma dessas seções de carinhos que Marietta observou casualmente, na revista de bordo da American Airlines, uma pintura pop do artista Andy Warhol. Assim ela aproveita para tocar naquele assunto que visava, embora veladamente, saber de sua gravura desaparecida:

- Veja Rondha, essa tela pode chegar a valer um milhão de dólares... Embora uma gravura em papel de Andy Warhol não valha mais que dez mil dólares...

- Pôxa, eu vendi a “minha” por cento e oitenta dólares... Sempre sou roubada... Sempre...

Marietta Allred não disse nada, mesmo confirmando, em silêncio, que realmente fora roubada por ela. Acontece que, por estar apaixonada, Marietta apenas quis beijar novamente a boca de Rondha, a sua adorável e pecadora amante...

Agora, após a notícia do corpo de Marietta Allred haver sido encontrado num ambiente repleto de caramujos e lesmas marinhas, e como resumo de mais um caso de morte em Veneza, o visto de saída de muitos turistas foram pedidos com mais pressa que o habitual. Todos os “flutuadores”, que é como os nativos chamam os turistas, estavam querendo fugir de Veneza, já que havia naquela cidade mais que uma desconfiança de que um outro corpo apareceria, a qualquer momento, boiando num dos canais.


Beto Palaio


Trecho de uma série de mini-contos que fazem parte de um capítulo do livro (em progresso) que é Pitchula e os Paranóias, livremente inspirado na capa do LP Sargent Pepper´s dos Beatles.

Imagem: Escultura de David Mach (feitas de cabeça de fósforos) imitando as gravuras de Andy Warhol.

abril 29, 2013



AS MORTES DA MORTE EM VENEZA 

4

Desta vez o corpo era de um milionário coreano que, até a pouco, estivera entre amigos jantando à luz de velas numa cantina próximo à um dos canais. Não obstante o registro deste jantar foi possível graças ao específico detalhamento de cada um dos depoimentos colhidos dos amigos e parentes do falecido Henri Songmiaul. No que se relata, amiúde. A discriminação que assola o sufrágio às minorias não é privilégio da América. Ali em Veneza a discriminação é um prato que se serve quente. Onde haja exterioridade. Henri Songmiaul, milionário coreano e Badan Feldab, investidor árabe, estavam degustando pappardelle ao sugo de cinghiale num restaurante a céu aberto, local em que as mesas chegavam próximo à mureta de contenção do molhe. A travessa fumegante deixava com que o perfume da carne moída, da sálvia e do aspargo, aspergidos ao molho de tomate com cogumelos, invadisse todo o recinto. Aquele exagero de tradição culinária se atracando, ao caldo fumegante, com o talharim de banda larga. Henri e Badan mal continham a gula. E nem se apercebiam. Que, lá fora, Veneza derretia em malvas, como nas pinturas impressionistas de Claude Monet. Um decálogo de tons bluezins ora vestia o pôr-do-sol. Em silêncios siderais. Não muito longe, à leste, o astro-rei se deitava entre colinas distantes. Por todo vale desmaiava, em meio a sombras geladas, o calvário do dia. Nesta natureza-decomposta, a lua vem e flutua, como um barco de prata, tímida ainda, surgida num lago de nuvens salpicadas, algo pálido e longínquo, do sol já enterrado e morto. As floreiras naquele restaurante a céu aberto exalavam madressilvas e um toque longínquo de violino deixava tudo em suspenso, entre a poesia de um desejo personificar um outro, em contraponto, na morte universal, no trocar das correntes marinhas e no apoquentar de um coração pulsante. Entretanto, nem Henri Songmiaul, nem Badan Feldab estavam atentos ao que se passava ao redor. Pois se puseram a degustar, entre um gole e outro, o Brunello di Montalcino, uma safra especial 1977 do melhor tinto italiano. Neste clima especial. É Badan quem recomeça o assunto que tratavam já desde a tarde:

- Henri... Veja que o problema não é somente de Nova York ou Paris... Já que se focaliza em negros e, particularmente, em hispânicos... Veja o caso dos sete ativistas de extrema direita... Sim... Os que foram recentemente metralhados... Os direitos civis pesam em ganhos políticos recentes... Mas isto causa recuos econômicos nas minorias... Nós é que pagamos pelo assalto generalizado da plebe... Você não entende assim?...

- Quer mais vinho, Badan?

- Sim... Um pouco mais... Quanto à situação...

- Eu concordo... Até que os movimentos civis de extrema direita sejam resolvidos... Pelo menos em teoria... O problema moral e constitucional deve ser reconhecido pelo racismo assoberbado...

Nisto uniram-se à dupla, embora bastante atrasados, os outros convidados para o jantar. Estes se aproximam da mesa, já puxando suas respectivas cadeiras, são: Cornélia Gide, investidora em commodities e apreciadora do turfe. Daniel Boateng, editor do caderno Échecs do jornal “A Folha de Bruxelas” e Raphael Larsen, pintor dinamarquês, filho de John Larsen, proprietário da maior fábrica de sardinhas enlatadas dos paises escandinavos. Eles se puseram a reclamar, entre sorrisos e gargalhadas, que Henri e Badan não esperaram por eles, e o que é pior, já estavam atacando o prato principal...

- Nada disto... Nada disto... Este não é o prato principal... Depois teremos o assado de cordeiro... Claro... Não havíamos combinado isto?

Assim falou, também sorrindo, Henri Songmiaul que deu boas vindas a todos e, com um discreto sinal, chamou o garçom para que este trouxesse mais duas garrafas de Brunello di Montalcino. Bastante animado com a presença dos recém-chegados, Henri aproveitou para também ordenar, exclusivamente para eles, aquele aguçado pappardelle ao sugo de cinghiale, agora relegado a um reles prato de abertura...

- Vamos... Completou Badan... Se aproximem que estamos falando da situação atual de aparente comando das forças de direita...

- Ah... Não... Querido Badan... Com essa lua tão linda... Esse ar puramente veneziano... Ouça, ao longe... Até um violino nós temos... Então... Não percamos nada deste raro momento... Deixe que os pobres cuidem dos próprios pobres...

Isto disse Cornélia Gide, agora aparteada por Daniel Boateng:

- A pobreza está em xeque... Não há saída... Mas vou querer experimentar esse vinho... De que safra é?... O que?... Mil novecentos e setenta e sete?... Nossa!... É a melhor safra dos Montalcinos...

Este diálogo no restaurante é um dos bizarros tópicos inseridos na ficha criminal posteriormente elaborada para a triste ocorrência de Henri Songmiaul. Ele que fora encontrado boiando nas águas putrefatas de um canal secundário, num trecho em que a aduana empilhava alguns containers de depósito oficioso, alinhados numa amurada onde foram precariamente instaladas algumas manilhas para lancetarem um recesso de esgoto residencial, refluxos estes tratados em caráter de improviso, sobretudo arcaico, numa invenção milenar dos antigos romanos, que era a dispersão de dejetos sobre tanques fundeados em lastro de areia.

Haja paciência descritiva neste concatenamento de insinuações investigativas, para afinal nos alarmarmos mais uma vez, pois Henri Songmiaul não seria o último cadáver a ser encontrado boiando nessa temporada de inverno em Veneza...


Beto Palaio


Trecho de uma série de mini-contos que fazem parte de um capítulo do livro (em progresso) que é Pitchula e os Paranóias, livremente inspirado na capa do LP Sargent Pepper´s dos Beatles.

Foto: lauren374

abril 28, 2013



AS MORTES DA MORTE EM VENEZA


3

O corpo encontrado no local em que acharam o crocodilo decapitado era de José Santilliano. What the hell! E quem foi José Santilliano? Por breves minutos observa-se o velho oficial de polícia que cuida do caso, um sargento bastante simpático, carabineiro desde 1972, portanto já à beira da aposentadoria. Este senhor rotundo, vindo sem pressa nenhuma, retirou uma ficha de dentro de um sebento armário de madeira com a porta de correr já descorada, disposto ao longo de uma parede obscurecida pela umidade reinante na cidade. Por fim, o oficial vem entregar o dossiê do afogado para Mandrake Ferrari, um investigador particular preocupado com a coincidência de várias mortes estarem ocorrendo ao mesmo tempo em Veneza. Mandraque ainda presta atenção aos gestos de enfado do sargento enquanto lê o histórico das anotações para Narda, sua esposa. Logo depois, quando cruzavam as ruelas laterais de um canal, tiram suas conclusões sobre qual seria a última incursão terrena de mais esta infeliz vítima de afogamento.

Eis que José Santilliano, era um degustador oficial nos certames internacionais de vinhos. Consta no dossiê policial que ele teve um breve contato, ali em Veneza, com o casal Annabelle e Ted Caron, ambos oriundos de Juneau, Alasca, e com eles manteve uma conversação amistosa, entre os milhares de pombos da Praça de São Marcos até quando, inclusive, Ted Caron reconheceu na multidão uma moça com quem o casal travou amizade durante o vôo de Juneau até Veneza. Logo eles se confraternizam amistosamente, no meio da praça, quando Ted aproveita para apresentá-la à José Santilliano. Essa amiga é Josie Torchi, típica celibatária americana, especialista em relações públicas para uma empresa produtora de vídeo-clips. Naquele momento Josie fazia-se acompanhar por Quinton Fisher, um amável senhor de sessenta anos que foi, durante a temporada 2006-2007, o diretor de criação do programa Big Brother na Hungria. Entrementes, numa discreta licença literária, logo haveremos de esclarecer o desfecho deste rápido, mas belamente descrito encontro, no escopo da investigação feita particularmente por Mandrake Ferrari. O que se acredita, entretanto, é que nos perdemos da estrada principal, amiúde, em devaneios incontroláveis, por motivos nem sempre claros no momento da digitação desta intrincada estória. Pois, em relação ao crime cometido em Veneza, esse grupo de pessoas que se encontraram por acaso na Praça de São Marcos, não teriam de fato nenhum envolvimento. Eles, inclusive José Santilliano, logo no dia seguinte, confraternizaram-se no clube de mini-golfe da cidade, onde Quinton Fisher disse esta frase que a principio, sem sombra de dúvidas, o denunciava como um dos suspeitos do crime:

- Eu gostaria de revelar algo de muito pessoal a vocês...

Logo todos pararam de jogar mini-golfe e se reuniram em torno de Quinton, que suava às bicas e gaguejava muito enquanto tentava concatenar suas idéias...

- Vocês nem sabem, meus amigos, o quanto o verde do gramado de golfe me é benéfico... Este quadrilátero de gramas age em mim tal uma camuflagem verde que me protege da negra solidão, a qual principalmente se revelou, eu confesso, com o meu recolhimento a um quarto de hotel desta cidade terrível...

Os agora curiosíssimos jogadores de golfe deixaram de lado seus tacos e alguns, inclusive, recolhiam do chão as suas respectivas bolinhas brancas...

- Eu digo solidão porque foi admirável tudo o que passei, desde há quinze dias, pelo passamento de minha querida mãe...

Depois de um “oh” generalizado, todos vieram dar os pêsames para Quinton. Inclusive Ted Caron aproveitou para discorrer da real terapia que era o golfe e também protocolou uma tese de que no passado, na Filadélfia, seu talento para este esporte era aguçado e deveras considerável, devido a isto, talvez, ele inclusive chegou a ganhar uma bolsa de estudos para o golfe numa academia no estado de Ohio. Isto ele disse abraçando Quinton que estava com uma ponta de lágrimas nos olhos pela confissão da morte de sua mãe e nem prestou atenção às palavras de Ted. Apenas o abraçou demoradamente e disse entre suspiros:

- Obrigado, Ted... Muito Obrigado...

Ted, meio confuso pelo agradecimento ainda concluiu:

- Mas agora não sou mais páreo no golfe... Uma artrite me pegou de jeito e não consigo mais fazer a posição de lançamento com os pés juntos e o braço distendido...

Neste instante todos falavam ao mesmo tempo, pois estava chegando até o local daquela animada partida de golfe um quarteto que era alegremente capitaneado por uma conhecida atriz e também modelo fotográfico. A atriz Jeannie Gustavson, modelo sueca, apresentaria aqueles que com ela chegaram. Eles eram Evelyn Fusselman, viúva de um fabricante de papel toalha no Canadá. Emil Chik, importador de frango no Catar e, finalmente, Patsy Bergeron, aposentada austríaca e crupiê voluntária no jogo de vinte-e-um que armavam no seu quarto de hotel.

Quando se aproximaram do grupo de jogadores de golfe foi Jeannie Gustavson quem puxou a conversa:

- Desculpem-nos... Mas o gerente do mini-golfe pediu para avisá-los que já venceu a hora de vocês e de que poderíamos substituí-los... Desculpem por isso... Tá?

Desde o começo de sua fala, com um estilo que foi, ao mesmo tempo, lírico e de convencimento, Jeannie Gustavson usou dos mesmos artifícios cenográficos com que se notabilizou nos capítulos da novela Um Anjo Sueco em Desalinho. Aquilo fez com que a trupe que seria substituída ficasse pairando para frente e para trás, num hiato de andamento, entre a novela televisiva e a realidade do gramado verde-solferino do campo de golfe. Mas logo eles são tomados de assalto pelo bafejar da realidade e, sobretudo, de que estavam sendo gentilmente expulsos do mini-golfe pelo vencimento do horário. Assim José Santilliano, Annabelle Caron, Ted Caron, Josie Torchi e Quinton Fisher foram se afastando em direção à saída principal enquanto o recém-chegado quarteto de jogadores toma suas posições...

Entretanto, algumas poucas horas após o encerramento daquele inofensivo jogo de mini-golfe, para sobressalto geral, encontraram o corpo de José Santilliano. Agora as autoridades locais estavam em recesso, tentando ligar os fatos em comum para aquelas duas mortes ocorridas nos canais de Veneza. Inclusive reinava um irrefutável marasmo na chefatura, quando de repente entra o oficial André Morroni e lê o oficio do dia. Nele consta que foi encontrado um terceiro corpo afogado em Veneza.


Beto Palaio

Esta série de mini-contos  compõe um dos capítulos do livro (em progresso) que é Pitchula e os Paranóias, livremente inspirado na capa do LP Sargent Pepper´s dos Beatles.


Pintura: Auguste Renoir

abril 27, 2013



AS MORTES DA MORTE EM VENEZA

2

Entretanto, longe do burburinho da imprensa, num dos canais laterais de Listra Vecchia, foi retirado das águas plúmbeas um cadáver de verdade, o qual foi depois reconhecido por testemunhas como sendo Ridvan Kamide... Mas... Quem seria o verdadeiro afogado?

Ridvan Kamide havia sido, em sua encurtada existência, proprietário de uma concorrida loja de máscaras votivas instalada na cidade de Mônaco, entretanto admitia-se em um ou dois inquéritos, que Ridvan falsificava metade das máscaras que comercializava. As autoridades monegascas, principalmente os incansáveis inspetores de polícia de Mônaco, descobriram que Ridvan falsificava cem por cento do que vendia. Com esta acusação Ridvan foi alocado aos calabouços reais, onde aguardava um julgamento continuamente protelado. No entanto, Benitta Bee Bell, uma bem sucedida fonoaudióloga irlandesa, em férias pelo sul da França, reuniu alguns simpatizantes do comerciante de máscaras, entre eles, Hermann Kennedy, velejador profissional, Krista Albright, herdeira da patente do Hexaclorofeno e Erin Montaag, editor e teórico do ficcionismo pósmoderno.

Tudo isto num esforço multi-cultural para juntos libertarem Ridvan Kamide. Inclusive, com o sucesso dos intervenientes. Algumas semanas são decorridas. Após esta experiência nada consagradora de ver-se à ferros, Ridvan mudou-se definitivamente, a convite dos financistas de sua alforria, para a Riviera Veneziana. Ocorre que Ridvan prometera, antes de sua prisão, em separado a cada um dos quatro beneméritos, a apresentação da raríssima máscara mortuária de um cão egípcio, que Ridvan garantiu haver pertencido à bisneta de Lord Carnavon, uma certa Lady Gabrielle di Sttele, outrora Gabrielle Smith Carnavon, proprietária em segredo daquela raríssima máscara, a qual fora descoberta entre os tesouros de Tutancamôn.

Acontece que Ridvan, como prova de autenticidade, fazia acompanhar o rude utensílio escavado em madeira senhorial, de um papiro, já um tanto ilegível onde, presumia o comerciante, que se mencionava do inconveniente de certo cão, citado no bizarro documento como sendo demoníaco, haver transmitido uma estranha doença para Tutancamôn, o menino herdeiro do trono egípcio. Para os interessados Ridvan Kamide também exibia fotos Polaroid mostrando a porta da frente e corredores do local, no Vale dos Reis, onde foi encontrado o tesouro de Tutancamôn e, entre eles, a tal máscara canina. Mais ainda, acrescentava ele, num exagero de erres e esses, que a legítima dona, Lady Gabrielle, inicialmente confiara a tal peça histórica para um jovem de seu relacionamento, mas não mencionava que ele tinha a aparência desleixada de um bon-vivant e que, em realidade, até onde se sabe, sem mais pormenores, era um rapazote um pouco mais que travesso nas relações íntimas com Lady Gabrielle. Este moço de barba temporã apresentava-se como Brady Morrow, um pretenso ator australiano, de sucesso incerto , que dizia residir em Murano, ilha vizinha de Veneza. Entretanto Brady Morrow, amigo de noitadas de Ridvan Kamide, morava por esta época, final dos anos sessenta, na vizinha cidade de Consigliore, diretamente banhada pelo Adriático, num pardieiro injustificado para tamanha regalia que ele dizia ter entre os nobres venezianos. Porém. Em se tratando de vender máscaras históricas, para Ridvan Kamide, tudo não passava de detalhes insignificantes, os quais oficialmente não seriam mencionados em nenhum prospecto editado sobre o assunto.

No geral, com vistas ao resumo da farta documentação reunida pela polícia italiana, acrescenta-se que a tal máscara egípcia hoje sobrevive, distante de historiógrafos de bibliotecas e arquivos, alijada a uma mansão vitoriana que a amável viúva Krista Albright, herdeira do truste do Hexaclorofeno, mandara construir nos arredores de Springfield, nas gélidas colinas do Maine. Entretanto, nem bem o corpo do afogado Ridvan Kamide fora depositado sob custódia nas geladeiras do necrotério veneziano—atentai a isto!—um outro corpo surgiria boiando na laguna. Para extremos das coincidências, jazia este novo corpo num nicho de miasmas e cascas de caranguejos, um horripilante recanto onde um crocodilo fora certa vez encontrado, em 1966, com sua cabeça arrancada. Neste mesmo local nauseante. Agora este outro cadáver, recém descoberto, jazia. Triste de se ver. Ao ir e vir das marés. Flutuando enroscado entre ferragens retorcidas e tranças de fios de cobre, esquecidos ali desde a Segunda Grande Guerra...


Beto Palaio


As Mortes da Morte em Veneza, é um capítulo do livro Pitchula e os Paranóias, livro em progresso livremente inspirado na capa do LP Sargent Pepper´s dos Beatles

abril 26, 2013



AS MORTES DA MORTE EM VENEZA.


1

Ao contrário do que todos possam pensar, a presença da socialite Narda Collins não chamou a atenção da imprensa quando de sua chegada em Veneza. Inclusive, seu marido, o disputadíssimo mágico Mandrake Ferrari chegou à cidade uma semana depois de Narda e também quase ninguém se deu conta de sua presença. Numa tarde excepcionalmente quente, ao descer de uma gôndola, Mandrake apenas chamou a atenção de um cineasta sueco, hospedado na cidade havia dois meses com o propósito de filmar cenas avulsas para um videoclip da cantora Agnetha, ex-integrante do grupo musical Abba. Inclusive Gunar Benji, este cineasta, viu quando Mandrake, de fraque e cartola, desceu da barcarola e se dirigiu ao Hotel Giorgione. Mas achou que ele fosse mais um dos figurantes do novo filme que Federico Fellini rodava na Pequena Riviera, uma das dependências de luxo mantidas por Chuck Willcox, cunhado de Ringo Starr e um dos proprietários daquele condomínio de alto padrão. Ocorre que Bradly Cash, construtor de carros de Fórmula Um, estava ao lado de Gunar Benji, o qual fora, no ano anterior, ganhador do Leão de Veneza pelo filme publicitário que mostra um bebê engatinhando sobre uma corda bamba em Viena. Bradly Cash estivera circulando pela cidade numa lambreta de Darrin Gill, fotografo do Vanity Fair. Principalmente cruzando pelas pontes e vielas que cortam o centro e os canais de Veneza. Ele estava a procura da casa de Lubiski Morsini, o gondoleiro, e pediu para Darrin virar à esquerda no final de um corredor de acesso à uma vila residencial.

- Fica frio, Darrin, conheço tudo por aqui... A próxima ruela é a Lista Vecchia...

- Você está certo disso?

- Totalmente...

Mas Bradly Cash estava errado, totalmente errado. A travessa era outra e Darrin parou num beco para pedir informações a um senhor grisalho de chapéu negro e sobre-casaca de veludo cotelê. Este senhor, personagem chave para este episódio de Morte em Veneza, era Eugéne Kjell, chapeleiro francês e amigado, sem intenções de matrimônio, com Grady Catherine, uma advogada inglesa, rotunda e promíscua, associada da empresa GC&GC.

- Sei não... Esses caras estão aqui por algum motivo torpe...

Grady expôs isto para Eugéne, querendo dizer que aqueles dois homens que pediram informações não estavam de forma alguma à vontade como era de se esperar de um turista em Veneza.

- Você não presta atenção em nada, Eugéne... Aqueles homens não estavam simplesmente procurando por alguém... Eles pareciam mesmo estarem se escondendo de alguém...

- Ora, Grady... Lá vem você com suas desconfianças... Vamos aproveitar o dia de sol... Isto sim é o que importa... Estar em Veneza sem um pingo de poesia... Isto é com você... Eu sou francês... Lembra?... Francês...

É segredo ainda. Mas. Veneza ardia em chamas. O sol adentrava os compartimentos luxuosos, sedas, quitutes, sonetos de Shakespeare da cidade. Eugéne tinha razão. Lírios e cravos falsos por toda parte. Sargent aliado à Monet em trapiches e palafitas de pigmentos espargidos em doces confeitos de cor. Quantas estórias de afogamento de egos em Veneza? Caberia entender. Tudo se torna possível. Até aquaplanar nos movimentos que arquitetam os corpos úberes de realizações em improviso. A luz que age e vigia, invariavelmente, a nossa própria incumbência de existir. Para entender essa mágica basta observar a flutuação da luz solar em momentos inatingíveis. Ali, como uma água-viva contornável, tudo invoca por experiências, quiçá as mais intensas, do significado que todas as formas de arte aquilatam. Com afinco e a liberação desses decibéis náufragos, onde nós ajudamos a criar uma experiência abusiva revestida de artifícios encarnados. Como um grande filme, com todas suas atribuições inumeráveis de claro-claro, sombra-sombra, escuro-escuro, nada-nada e morte-morte. No aquático esse resumo subsiste. Informa-se alhures. Somente os bronzes imaculados refletem a chispa. Igualmente, em Veneza, a presença do todo marinho representa uma sinfonia de morte e renascimento. Uma agitação em aceno e momento previamente articulado. Não muito distante da ação do mar aberto. Onde. A onda se anhapa e fluteia e catacraz, canta seu ruído de esgotamento, desaparece e se anhapa novamente, para voltar a ser motriz e com ela seus músculos retesados se recompõe e outra vez se entregam para a inexistência. Sabemos. Traduzir. Do mesmo modo. Nós somos seres compostos de 90% de água. Longitudinalmente. Cada nervo humano é um órgão submarino. Uma cidade submersa também habita dentro de nós. Assim como Veneza, somos um invólucro que protege náufragos. Num espelho. O corpo de Veneza e o corpo humano são similares em tudo. As ribeiras de seus canais. Veias e músculos. Suas entradas e saídas. Relaxam-se. Do Arsenale, ao Cannaregio. Ou no viés: de Dorsoduro até Parco di la Rimembranze. Como numa tuba o som grave reverbera ensino, ao oposto repelido do estiramento, num discurso de bandolim, onde o som metálico, cordas afiadas, causa aprendizagem turística...

- Veja, Eugéne... Há um corpo flutuando perto daquele ancoradouro... Lá, olhe lá... Atrás daquela gôndola azul escura... Não... Naquele canto ali...

Logo chegam as autoridades aduaneiras, fiscais e carabineiros. Além de um grupo fortíssimo de curiosos agrupados em ambos os lados do canal, por fim, chegam os repórteres da TV Raí-Uno com suas câmeras nada discretas, ao que se acrescenta um incontável número de gôndolas que portavam pessoas ainda mais curiosas. Mas, logo ficou claro que não estavam diante de um crime, pois na margem do acanhado píer foi retirado das águas, e acordando aos poucos, um homem de meia-idade que ao microfone da Raí, assim como aos bombeiros e carabineiros, disse se chamar Marcelino Massa. Discorreu ele que era nascido em Parma, onde a tradição da família seria a da fabricação de queijos gorgonzola. Sobre seu provável afogamento nada ficou esclarecido na transmissão matutina da Raí, porque os curadores e diretores da emissora cortaram aquela comédia do afogado estar desperto e falando em bom italiano para uma audiência estupefata. Marcelino Massa, a rigor, foi trocado, ao vivo e a cores, pelo programa Varietá, onde Gianni Morandi cantou Occhi di Ragazza entre floreiras repletas de gerânios azuis.


 Beto Palaio


As Mortes da Morte em Veneza, é um capítulo do livro Pitchula e os Paranóias, livro em progresso livremente inspirado na capa do LP Sargent Pepper´s dos Beatles. 


Pintura: John Piper

abril 18, 2013



O RICO, O POBRE, O PAUPÉRRIMO, PORCO ASSIS.

Socialismo no pórtico. Pessoas refinadas entrando juntas para assistirem Porco Assis pedir concordata. Logo o sinergismo. “Te trouxe um peixe frito”, cantavam, sentados na audiência do júri, os seus desafetos “e joguei fora, na sarjeta”. Tolo de carteirinha, o juiz pensava que estaria fazendo um favor à comunidade de prósperos negociantes da cidade. Quiçá soubesse. Porco Assis era vendilhão de outros falidos. Corre a pena em miçangas de perdoar. Velhas dívidas de Porco Assis. “Quando eu era menino, voltando da escola, passou por mim um jipe, cheio de carnavalescos. Um dos foliões me atirou um frasco de lança-perfume. Cheirei aquilo com sabor de quero mais. Fui e voltei e fui e voltei e fui e voltei. Numa câmara de gás florida. Ao vento pairei. Encontrei uns anjos. De asas quebradas. Quis voltar para meu travesseiro. Planando. Eu era uma paina. Flutuando. Viciei-me em cheirar ópios. Tinha somente doze anos de idade. Menino de tudo. Batia na porta de meus pais, ainda cria, apesar de tudo, nos meus papais-noéis”. Quanto ao tempo. Esse rodo de soro. Leite de pato. Onde. Conflitamos Hipócrates. A arte é xucra, a vida é leve; A sapiência é inútil, o deslize é escorregadiço; As palavras são limitadas, o mutismo é aramado; A ocasião é fugitiva, a malversação é atualizada; A experiência é enganosa, a perspectiva é falaz; O ajuizamento é difícil, a extinção é controversa; O trabalho é decretado, o amanhã é hipotético; A manhã é fonética, o pôr-do-sol é mudo; O desplante é carnaval, o talento é bater de latas; A fatura é adiada, a carestia é servida; A natureza é apátrida, a ignorância é estimada; O descontrole é acalentado, a juventude é escorregadia; A poesia é fragilizada, o entendimento é pulverizado; A ascensão é titubeante, a queda é compartilhada; O vicio é aclamado, o saber é  arquivado; O amor é terreal, a ingratidão é caprichosa; O gosto é frívolo, a tentação é angelical; O desprezo é instituído, a razão é fardo; A fonte é duvidosa, a honra é desertificada; A certeza é quimérica, o gato é pardo; A luz é exígua, a instância é suprema; A concordância é inútil, o fruto é moroso; A temporada é canhestra, o hino é mavioso; A sarça é ardente, a semente é dilatável; A fé é tolerável, a mula é manca; A aguardente é batizada, o sol é cavalar; O temporário é ilimitado, a leveza é plúmbea; O apreço é líquido, a estupidez é método; A fuga é apreciável, o engano é pífio; O discurso é mordaz, a fortuna é quimérica; O lança-perfume é inebriante, as ofertas, são infindas. “Depois do lança-perfume. Veio a cola-de-sapateiro”. Até que Porco Assis remoçou. Outra vez. Na bossa nova. Topete na brilhantina. Noites descortinadas. Brisas que originam fontes de permanente juventude. Ondas do calçadão de Copacabana. E a pedra do Pão de Açúcar se espremeu para a passagem de um homem. Morto em vida. Fraco, roto. Cheio de manias. “Depois que conversei com Setentrião Boréas, não consigo nem morrer, nem ficar pobre”. Nos tapetes do vir a ser. “Imaginei-me abalroado pelo suicídio inalcançável”. Fingimento de findar em galhos rijos de aroeira. Um corpo dependurado na árvore. Fingimento de se jogar na frente do bondinho de Santa Tereza. Uma pessoa dividida nos trilhos do bonde. Fingimento de saltar da Pedra da Gávea. Ao todo um gosto de pedra. Vidro. Talhos. Subjacente no macho. Uma vontade de ele ser rico. Quando jovem ainda. No tempo do primeiro lança-perfume. Quando viu pela primeira vez. Dentro do seu quarto. O demônio Setentrião Boréas. A gratuidade que este lhe oferecia. Na vermelhidão da cara do diabo. Da vida eterna. Tempos emborcados na cartilha do aprendizado. Do brincar com fogo. Ao dinheiro fácil. Poucos anos depois. Moças a seu serviço. Um castelo na praia de Búzios. Infante avaliado pelo trato. Um balanço do que foi planejado. Quando Porco Assis tinha apenas vinte e dois anos de idade. Foi estudar piano e canto clássico em Nova York. Na Manhattam convertida numa ilha de prazeres. Os sonhos de cada um que se realiza. Doces cartões postais num céu em metamorfoses de nuvens. Number one. A grande cidade ameaçando chuva. O Bronx em perfil de estátuas. A entrada do metrô toda charmosa. O vento de Julho arrastando folhas pelas ruas vazias de Nova York. Ali, na imensa praça central. Number two. Com a bicicleta encostada numa árvore. Porco Assis cheirava cocaína com sua namorada americana. Nem mesmo para ela Porco revelaria seus segredos. De que enricava o tempo todo à custa de um acordo que fez com o demo. Hábitos de pestanejar com o cabrão. Fitilhos de bode preto. No ato de Porco Assis se entender com o Cujo. O responsável pelo nome. Nele não era mais palpável. Number three. Era já, no aqui agora, Porco estava passando um sinal na poeira. Seu nome escrito entre rabiscos incompreensíveis, dentro de uma estrela de Davi, torta nas pontas. Setentrião Boréas veio, perfumou enxofres, e assinou embaixo. O mal adoça punhais. O mal decora vitrines de magarefes. O mal confeita dráculas. O mal azeita traições. O mal dirige o fogo amigo. O mal caduca, mas nunca envelhece. “Aceito sim”, Porco Assis estava cheirado de cocaína quando foi visitado por Setentrião Boréas munido de um documento fatídico. “Aceito sim”, ele assinou com a tinta retirada de um inseto negro que lhe sugara o sangue. “Aceito, claro que sim”, comprometeu-se a fazer das tripas o coração. Massacraria, enredaria, trairia, roubaria, governaria, delegaria. Depois, em aprumo, bússola no tamborete, daquele fatídico bilhete, deixou-se ficar no núcleo da geladeira, a par de que, tudo se abonou. Na chibata vital, retemperado. Porco Assis passava confiança e determinação. Mordia as oportunidades como um cão faminto a seu osso. Dormia com uma mulher e amanhecia com outras duas. Era como um bom americano lhe descrevera: “um aço de primeira!”. Porco progrediu rapidamente. Tinha equipes de trabalho nas principais cidades do mundo. Todos compravam e vendiam de tudo em seu nome. Falcatruas, afiançadas pelo governo, eram a especialidade de seu grupo em Brasília. Muitos acres de terra foram grilados e depois vendidos de volta para o próprio governo brasileiro. As construções, e demais atividades, seguiam o plano diretor de suas coligadas, sendo ao ligeiro, empreiteiras, fábricas de papel, casa da moeda, mineradoras, distribuidoras de petróleo, cassinos nas cidades históricas, passeio de fêmeas vendidas como mercadoria utilizável em Copacabana ou no centro velho de São Paulo. Comprou alguns Rolls-Royces de cores diversas, embora todos negros, um veículo para cada uma das oito capitais diferentes no mundo onde mantinha seus escritórios. Adquiriu na “bacia das almas” um jatinho Cessna Citation, um avião turbinado com capacidade para transportar de cinco a sete passageiros com relativo conforto em rotas interestaduais e internacionais de curtas e médias distâncias. Tudo nos conforme do que se entendera com Setentrião Boréas. Assim Porco Assis. Foi que foi. No rock and roll do Good Golly Miss Molly, rolando como uma bola de ouro puro. Súbito. Doeu-lhe o dente numa noite. Uma madrugada miserável que ele refestelou num hotel cinco estrelas em Porto Rico. Ele chamou Setentrião Boréas às falas. Gritou-lhe pela presença, mas Setentrião Boréas não apareceu. Com a dor de dente surgiu-lhe o papo. Um envelhecimento precoce o levou a ter um papo mofino, com jeito de garganteio de zebu. Então ele se trancou no hotel e somente aceitava a comida pelo abrir e fechar rápido das portas. Foi assim que entrou no seu quarto um cão negro que o acompanharia como uma sombra. Ele adivinhou ser Setentrião Boréas. E falava com o cão dia e noite: “pode me ajeitar mais uns anos no bem bom?”, mas o cão só lhe mostrava os dentes. Repetia: “pode me ajeitar mais uns anos no bem bom?”, mas o cão insistia em lhe mostrar os dentes. Repetia: “pode me ajeitar mais uns anos no bem bom?”, mas o cão só fazia mesmo mostrar-lhe os dentes. Repetia aquela ladainha, mas o cão sempre lhe renegava. Até que ele agarrou aquele cão negro pelo pescoço e rolou com ele pela sala do hotel Astúrias em Porto Rico. Ambos se mordiam como verdadeiros animais que eram. Logo o cão mostrou-se, em catinga e presença, na figura de Setentrião Boréas: “Ficou valente, hein, Sr. Porco?”. Foi isso acontecer e Porco Assis cair na rogatória: “Mais uns anos no bem bom... Pode ser?”. O demônio apenas lhe assinalou um adendo ao velho compromisso: “você contrata, eu faço”. E novamente uma pá de documentos é assinada por Porco Assis.  Entretanto aquela dor de dente que sentiu—e o papo que lhe surgira—fez dele um ser angustiado. Na mesma semana ele entrou no Cessna Citation e foi para o Rio de Janeiro. Chamou para seu escritório na Barra um advogado de porta de cadeia indicado pelo irmão do primo de um amigo da cunhada do motorista de seu Rolls-Royce. Essas pessoas afiançavam que aquele era o melhor advogado que havia no mundo. O causídico, um homem franzino, com o rosto sempre enfarruscado pela pouca graça, ao combinar o preço de seu trabalho, lhe revelou uma merreca de mil reais. “Mas só isto, doutor?”. O advogado fez que sim, veementemente, com a cabeça e fecharam o negócio. A partir dali era com esse advogado que Setentrião Boréas teria de se acertar. Tudo nas leis do melhor proceder. Isso logo aconteceria. Setentrião Boréas sentou o rabo na frente do advogado Dr. Sebastião Penha como se fosse a última pessoa importante no mundo. Rangeu ali seus dentes. “Esse advogadinho está me enrolando... Vou mandar para ele uma caravana de sete touros incendiários”, mas nada derrotava Dr. Sebastião Penha, que beijava sempre a imagem de Nossa Senhora da Conceição antes de começar a atender Setentrião Boréas. “Pode mandar, Sr. Setentrião... É o Sr. quem tem a palavra... Mas não a razão!”. Por fim Setentrião Boréas desistiu de cobrar a alma de Porco Assis, “mas não o dinheiro que ele ganhou comigo... Ele perderá tudo, ficará na mais absoluta miséria!”. Foi assim que Porco Assis perdeu toda sua fortuna e ficou endividado na praça a ponto de ser encarcerado por falta de pagamento e outras dificuldades advindas no mesmo botijão de azos. Deste modo, quando naquele julgamento por débito generalizado, as pessoas lhe hostilizaram no tribunal, Porco Assis entendeu claramente a oferta da cantoria vinda de seus desafetos: “Te trouxe um peixe frito... E joguei fora, na sarjeta”. Mas Porco Assis foi humilde, olhou para seu advogado Dr. Sebastião Penha e piscou um dos olhos, ao que acrescentou: “aceito esse peixinho sim... Claro... Agora sou uma pessoa destituída de orgulhos!”.


Beto Palaio


Gravura: Claes Jansz Visscher (1635)

abril 17, 2013


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MELENA E VERANICO

Os saveiros, velas arriadas, dormiam na escuridão. As águas são muitas, infindas. Nesta terra de delicadezas improváveis. O sertão é mais sertão. A praia abafadiça não dá sorvete. E ela, Melena, vive agora com a cabeça cheia de féretros. Na verdade, Veranico não estava preparado para o sofrimento. Todo homem, ao atingir certa idade, pode perfeitamente enfrentar a avalanche do tédio e da amargura, pois desde a meninice acostumou-se às vicissitudes, através de um processo lento e gradativo de dissabores. A neblina foi-se e um galo cantou. Terê-tê-textos. Do rubi ao violão. Vermelho guerra, sons de um luau sertanejo. Veranico deixou a pousada e resolveu pegar o trem de volta para o Rio de Janeiro. Melena era o motivo principal. O amor sempre expia o amor, inexoravelmente. Em toda concessão inadiável. O filme jorra em luz desde a parede dos fundos do cinema. Aquele caminho luminoso passava sobre nossas cabeças. Uma torre de luz deitada horizontalmente incidia na tela que explodia em signos e significados. Aquele tablado radiante cercado de sombras. Rosto de loiras, pernas de javali, braços de mulatos cativos, porcelana italiana do século XVI, espumas rodeando um corpo nu na banheira, um avião que explode em chamas, mãos que partem um pedaço de pão, um velho mafioso cai ao tomar tiros no meio da rua, sorrisos de um casal que brinca na neve. Ali Melena se refestelava. Em território próprio. Ainda no ano passado ela estava sozinha no cinema, quando percebeu um casal, uma jovem aloirada e um moreno atlético, ambos se tocavam e beijavam, abertamente, desprezando o filme por inteiro. Disfarçada e cínica, ela, a Melena, notou que o rapaz enlaçava a moça com fervor, sendo ambos belos e sorridentes, promovendo uma libidinagem sem igual, mãos e coisa e tal. Totalmente absortos. Ocupados com o ranger da libido. Cativos da sedução animal. Ao aproveitamento. Eles ocupavam a última fila, no escurinho, com Melena sentada à duas cadeiras do moço, deveras interessada em observar a brincadeira. Mas ela ficou ali discretíssima. Fingiu que nem via as cenas tórridas daquele namoro, em oposição total ao filme cult que desfilava na tela, onde um operário italiano, tendo sua bicicleta roubada, decidiu igualmente, para colocar no lugar da sua, roubar a bicicleta de alguém. Aquela obra cinematográfica cuja narrativa na primeira pessoa passa-se num único dia, desfere um tom épico de revolta nas entranhas de Melena. Apesar do filme ter sido rodado em Roma, nele não se vê bispos, padres, janotas, boêmios, raparigas, estudantes, professores, oradores populares, negros de pouco ofício e artistas de circo. Entretanto vê-se na tela os tipos miseráveis que se encontravam ali, nas ruas do pós-guerra. Gente pobre, caça-biscates e operários. Todos tentando refazer suas complexas vidas numa cidade que se reconstrói após o conflito mundial. Na semana seguinte. Rua principal apinhada de gente. Vésperas de Natal. Melena andava aflita querendo encontrar algo para dar de presente para sua mãe. De vitrine em vitrine. Até que ela fica ao lado de um moço, dividindo o mesmo espaço defronte a vitrine de uma perfumaria. Então Melena vê pelo reflexo no vidro da vitrine que o moço era o mesmo que observou namorando libidinosamente no escurinho do cinema. Ela se assusta ao vê-lo assim tão perto dela. Uma reação que não passa despercebida para Veranico, o nome do moço. Ele imediatamente reage: “te assustei? Parece até que viu um fantasma...”. Melena continua olhando para ele com um leve estranhamento, agora um tanto envergonhada. Veranico não perde o bom humor: “olha, pode tocar em mim. Sou de carne e osso... Não faço mal a ninguém...”. Melena pede desculpas, mas não tem muito assunto. Assim Veranico toma a providência de falar pelos dois: “se me der uma chance eu provo que sou um bom fantasma... Que tal tomar um sorvete comigo?”. Ela não diz nada, continua absorta, olhando para Veranico e lembrando-se dele agindo como um tarado insano dentro do cinema. Ela não suporta mais fingir que nunca o vira antes: “eu te vi dentro do cinema... Estava sentada ao seu lado... Você estava lá com sua namorada”. Há no mundo estórias contadas em primeiríssima mão, outras estórias são requentadas, como rotas alteradas que ressurgem em palavras inconsúteis. Esta estória de Melena e Veranico é daquelas contadas diretamente, assim como a imaginou o escritor: “mas veja como esse mundo é mesmo pequeno”, disse Veranico, agora olhando para Melena de través, vendo seu reflexo na vitrine e conversando diretamente com esse reflexo. A moça entende o jogo de conversar com o espelho e faz o mesmo: “desde que te vi naquele dia, eu tive a certeza de que te encontraria aqui fora”. Veranico diz: “aqui fora, no mundo real?”. Melena diz: “isto mesmo... Longe do cinema”. Veranico diz: “você é um tipo de voyeur que aprecia ficar olhando casais namorando no escurinho?”. Melena diz: “talvez eu seja o tipo que inveja as mulheres amadas dessa maneira... Sim, eu fiquei com inveja daquela sua namorada... Queria estar lá no lugar dela”. Veranico diz: “quer ir ao cinema comigo, então?”. Melena diz: “ah, então o jogo é esse?... Você conhece uma mulher na rua e arrasta-a para a última fila do cinema?”. Veranico: “sim, é exatamente assim que ajo... Alguma coisa contra isso?”. Melena diz que não, muito pelo contrário. Veranico então desvia o olhar do reflexo de Melena na vitrine e olha diretamente para seus olhos: “topa ir então ao cinema comigo?”. Melena corresponde ao seu olhar tarado e concorda prontamente com o convite: “claro que sim... Eu topo”. Os dois atravessaram a rua em meio ao trafego lento. Ele a abraçou timidamente. Ela retribuiu. Desta forma foram em direção ao cinema. O que aconteceria depois, entre eles, não passa de curiosidade, um atributo típico da chamada especulação.


Beto Palaio


Pintura: Jack Butler Yeats

abril 14, 2013





OBALELÊ E OS SUPERBACANAS 


No meio da noite sexo espontâneo. Não, nunca, jamais. Obalelê se culpava de seu casamento. Ainda na noite de núpcias. Sua cabeça latejava de dor. Entretanto. Seu homem não a perdoava. Fingia que não ouvia seus ais. Continuou a solfejar seu pênis dentro dela. Aquilo lhe era interminável. Ela gemia baixinho. O prazer à mão, o utilizável, não é sinal de amor. Obalelê conteve o vômito. Fingiu ardores de cópula. Até que Mundaréu gozou dentro dela. Então ela se afastou lentamente dele e foi vomitar no banheiro. Um cheiro acre a invadiu. Ela sentiu-se abrigada ao fundo de asas de baratas. Um circular completo de anjos negros imperava nela. Um nojo de tudo que existe. Depois foi se ajoelhando. Tonturas e lonjuras. Obalelê nua abraçou-se ao seu vestido de noiva que estava dependurado ali. Depois desmaiou para sempre. Pelo menos pareceu para ela que sim. Nas horas que se passaram. Ao acordar sozinha, jogada no chão do banheiro, enquanto Mundaréu dormia sem ao menos ter dado falta dela. Dois anos antes. Quando havia felicidade no que Obalelê planejava. Isso foi antes de se casar com Mundaréu. A alegria de viver nasce no inteiro refletir de si mesmo nas folhas de zinco que cobrem a favela do existir. Esta alegria é como uma amêndoa que libertamos da casca de uma fruta inenarrável. O resvalar de centenas de ombros e braços, em círculo amigo. Será começo de algo que terá seu fim para depois seguir para ser começo novamente, e depois outra vez o fim, de algo especialmente bom? Obalelê segue pela rua da feira. Seus poros deixam-se inundar na alegria de uma manhã contagiante. Além de seu deslumbramento único, ao apregoarem a venda de frutas e legumes, enquanto os seres humanos se debatem em ofertas inadiáveis, no avulso da compra ou na venda do amor, assemelham à Obalelê, que não se diferenciam do comércio miúdo de uma feira livre. “Todas as pessoas têm direito de omitir sua opinião. Este é o arbítrio de cada um, mas não vejo motivo para me envolver em querelas alheias”, isto pensou Obalelê enquanto observava um soldado amarelo abordando um menino negro no meio da feira. Aquela agressão gratuita, apenas pelo motivo deste haver gritado impropérios referentes à notícia do Papa recém empossado. “Contudo, quem é o Papa para motivar se um menino negro deve ser preso ou não?”, continuou pensando ela, ao mesmo tempo em que pedia um pastel para a atendente na barraca de frituras. Entretanto. Não era para ser daquela maneira. Sua indecisão lhe coube inexplicável. Iria ou não se entregar para seu psicanalista, o Dr. Dagoberto? Suas pernas tremiam. Ela estava naquele banheiro de motel. Obalelê tinha vontade de fugir dali. Seu corpo não obedecia, contudo, ao seu desejo de fuga. Com sua demora para sair do banheiro ela imagina que Dr. Dagoberto esteja preocupado, então ela retorna para o quarto. No entanto Dr. Dagoberto dorme profundamente. Obalelê toma a decisão categórica de fugir dali. Veste suas roupas, penteia-se como pode, abre a porta do quarto daquele motel e vai embora. “Vai querer pastel de carne ou de queijo?”, a atendente naquela barraca de feira lhe pergunta.  Obalelê não responde. Ela muda seu pensamento para um outro relacionamento que teve com um homem casado. Cirius era um quarentão que vinha a seu apartamento para lamentar o final de seu relacionamento com sua legitima esposa. Sempre deprimido, Cirius espichava-se no sofá, com a cabeça no colo de Obalelê, enquanto ela via um filme na seção da tarde. Cirius segredou para Obalelê que conheceu sua legítima esposa durante uma festa de noivado de seu melhor amigo. Esta festa acontecia numa bela casa de campo cercada pela mata atlântica. Cirius disse que, naquela ocasião, fizera amor de pé com sua futura esposa. “Apenas esta única vez fizemos amor”, ele lamentava para Obalelê, “no entanto desse esperma abandonado às coxas dela, nasceu nosso único filho”. Cirius chorava e Obalelê desligou o filme que passava na TV para acariciar seu cabelo. Depois ele foi embora e nunca mais se viram. “Vai querer pastel de carne ou de queijo?”, a atendente naquela barraca de feira ainda lhe pergunta. Ela faz um sinal para que a atendente esperasse. Pois naquele exato momento uma sucessão de lembranças a assaltava. Nessas lembranças desfilavam os homens que passaram por sua vida. Eram homens delicados. Atenciosos. Superbacanas. Como no caso do comerciante de vinhos, o Brasílio, que teve com ela um brevíssimo namoro, quase nada, entretanto bem marcante, quando ele a levou a um cinema, e ali lhe proporcionou prazer ao roçar sua calcinha, na maciez suplicante de seu púbis, com os dedos de um refinado tarado. Um acinte carinhoso tão ardente que ela gozou copiosamente nos dedos de Brasílio. Depois foram para um banco de praça onde Brasílio lhe contou que tinha uma bala alojada em sua própria cabeça: “é algo que carrego como um aviso de que a vida é mesmo breve”. Brasílio nunca mais se encontrou com ela. As vezes Obalelê se punha a pensar no namoro dentro do cinema e de quão íntima ficou de uma pessoa que convivia com um projétil dentro da própria cabeça. “Vai querer pastel de carne ou de queijo?”, a atendente naquela barraca de feira insiste em lhe perguntar. Obalelê está absorta. Agora ela está lembrando de si mesma nos braços de Macieiro, que conhecera num grupo de amigos quando alugaram uma bela casa de verão em Parati. Macieiro era um editor bem sucedido que estivera casado com uma francesa, com quem tivera uma relação sólida e bem sucedida, além de uma adorável filha de cinco anos. Obalelê nesta ocasião não fez amor com Macieiro, isto porque ele alegou estar com uma doença venérea contraída em Salvador, a qual lhe deixou temporariamente impotente. Mas conversaram muito enquanto flertavam pelos locais históricos de Parati, de mãos dadas e até, de quando em quando, trocavam inocentes beijinhos. Obalelê ficou apaixonada pelas maneiras viris com que Macieiro resolvia qualquer problema. Inclusive quando este tirou do bolso o próprio lenço para acudir uma criança que passava com o muco escorrendo pela face. Obalelê mais uma vez divagava enquanto a moça lhe oferecia pastéis. Desta vez ela lembrou de seu marido Mundaréu. Seu esposo estava dormindo no quarto de hotel e ela estava na feira esperando por um pastel. “Vai querer pastel de carne ou de queijo?”, a atendente daquela barraca de feira insiste em perguntar. Obalelê olha para a atendente e sorri. Faz um sinal com a mão de que não quer nenhum dos dois e ruma de volta para o hotel onde Mundaréu dorme.


Beto Palaio