maio 11, 2013



MILE DONA E A DESCOBERTA DO AMOR.

Menina de engenho. Sim, ela é uma menina de engenho. Que definição mais sublime! Tudo se abarca quando o aforismo procede. Como aquele que disse da literatura possuir um algo infalível, píncaro de definições, entretanto vítima nas mãos de tradutores infantis e derrotados. Entretanto. Quando entra a vontade de embrenhar-se na serralha da palavra, nada afugenta quem assim procede. Haja paciência, compreende-se assim. Se há algo que queima mais que o desejo da escrita, isto desconhece Mile Dona. Ela dedica sua existência para escrever. Refém do aqui agora. A luz que está brilhando através das cortinas de seu refúgio não é estática. É a luz do dia, infindável, entregue à volatilização, sendo lenta, mas em constante caminhar. No entanto. Juntamente com a moça que está diante de seu computador. Ela que fica toda dormente ao digitar estórias. Vem agora encolher seus dedos e tornar a esticá-los com a intenção de descanso, após um longo dia de trabalho em um dos romances que escreve. Mile Dona está preocupada com o texto que se mostra nu e exposto. A fragilidade de sua nudez parece alinhar-se com o fraquejar do ser humano perante as últimas tragédias ocorridas no início deste milênio. A questão para a escritora não transparece a necessidade de mostrar os horrores sofridos pelas vítimas de alguma violência específica, mas na somatória de eventos que caracterizam o fim da humanização em particular. A jovem autora levanta-se de sua escrivaninha e vai até a janela. Mile Dona, a escritora, está tão perto do local da queda do World Trade Center. “Sou vizinha do caos”, como ela bem define. Contudo. Ainda pela manhã. Mile Dona estava sentada na relva, onde se deslumbrava com o domingo ensolarado ao redor. Ela vê as pessoas que se ocupam em aproveitar o dia à beira de um lago artificial em pleno Central Park. Mile Dona tem em suas mãos uma margarida a qual, despreocupadamente, desfolha:

- Sim, sou uma escritora, adoro escrever... Não, não sou uma escritora, tudo dá errado nas minhas estórias... Sim, sou uma escritora, as palavras parecem me obedecer... Não, não sou uma escritora, nem sempre entendo o que escrevo... Sim, sou uma escritora, a palavra para mim é música que me embala... Não, não sou uma escritora, quase sempre perco a partitura e a música fica truncada... Sim, sou uma escritora, a literatura é poesia que inspira... Não, não sou uma escritora, pois meus diálogos são muito pouco poéticos... Sim, sou uma escritora, pois penso e logo existo... Não, não sou uma escritora, pois uso do pensamento alheio como se fosse meu... Sim, sou uma escritora, já que me emociono até as lágrimas com que escrevo... Não, não sou uma escritora...


Há na penteadeira de Mile Dona a imagem de uma menina com cerca de quatorze anos. Essa menina loura aparece ali bela, confiante, com a risonha expansão da inocência a iluminar-lhe o rosto. Sua boca é uma cereja. É fatal compará-la com este fruto. Imagina-se mais. A brisa de Maio brinca alegremente com os vastos anéis dos seus cabelos dourados. Nos seus olhos acinzentados, de extraordinária altivez, crepita sua jovialidade. O motivo arde ao redor. Talvez seja a primavera. Algo ali palpita. É a alegria de existir na mocidade em flor. Pois, embora o leitor mal possa aquilatar tal feitiço, nesse rosto encantador, conservado com zelo, num camafeu de carinhos herdados, que se abrira hoje sem limite para considerações, posto que a autora tente traduzir fielmente o enleio daquela miniatura, apenas adormecida, em uma pequena foto emoldurada, perpetrada havia mais de cem anos.

- Esta menina passou pela existência... Foi alguém como eu... Sentiu fome... Sentiu sede... Sentiu medo... Sentiu solidão... Foi amada... Foi desprezada... Foi alguém... Enfim!

Agora restrita ao camafeu. Aquela menina chama-se Aniela. Jovem vizinha de um pintor que um dia bateu à sua porta com um belo ramo de violetas. Ele precisava dividir seus segredos com alguém. Ao propósito de que. O artista vira em Aniela o refúgio adequado para depositar seus arroubos de pintor. Naquele momento em que lhe abre a porta. Aniela tem certeza de que as violetas são algo mais que a cortesia de doar flores. Com aquele gentil ato. Elas faziam-se acompanhar pelo sorriso da bela jovem. Mas que sorriso! Um minuto antes eram bem lúgubres os pensamentos do pintor André de Castro. Vivia ele na confusão de monstros, demônios e bruxas que povoavam seus quadros, entrevia amargamente no espírito humano, o símbolo da sua existência atribulada. Um pouco antes de ter a idéia de entregar flores à Aniela. Estava triste tal sua própria extenuação de entusiasmo. Porém a gentil visão da moça dispersara todos os fantasmas, como um facho luminoso dissipa as trevas. André de Castro sentiu o coração bater-lhe com força desusada. Isto era júbilo! Teve uma vertigem e baixou os olhos, enquanto o ardente sangue dos seus vinte e cinco anos fazia retumbar-lhe aos ouvidos, em grande orquestra, uma arrebatadora sinfonia de esperança. Sim, tudo porque a sua bela vizinha Aniela aceitara suas flores. O fulgor que agora brilharia em sua existência deve alvíssaras àquele primeiro lume do sorriso de Aniela.

- Nossa... Isto surgiu assim do nada... Só de olhar essa foto antiga... Será que há uma verdade por trás do que escrevi?

Para a escritora Mile Dona tudo não passara de uma miragem. Foi apenas um relâmpago fugaz. Pois. Na visão que desaparecera. Uma janela fechou-se. E se André de Castro desejasse continuar a conquista de seu amor Aniela, e não pudesse? Ou será que poderia? Bastava Mile Dona querer, porque lhe tremiam os dedos e ela os esticava para assim tornar a dedilhar nas teclas de seu computador. Eis que André de Castro abandonou a palheta, e foi sentar-se a um dos cantos do seu atelier com os cotovelos fincados nos joelhos e a cabeça entre as mãos. A noite lhe surgiu mansamente, para surpreendê-lo deste modo. Então cada objeto assumiu para ele um aspecto fantástico; parecia-lhe que, em volta de si, aromatizava o ar um suave perfume de violetas. Ali, em silêncio, ele imaginava ouvir os passos de Aniela na casa vizinha. Aplicou mesmo o ouvido para isto, e julgou perceber um eco longínquo de uma canção entoada por voz de anjo. Jurou que ouvia, adrede à essa maviosa voz, um acompanhamento de uma harpa, ou de uma lira, ou mesmo de um alaúde. Só então. André olhou para a penumbra de seu atelier e concebeu ali o seu próximo quadro. Ele anteviu nesse imaginado trabalho um turbilhão de cabeças louras, iluminadas por grandes olhos cinza esverdeados. Entretanto, por toda a parte, no centro de sua morada, restavam em acomodação suprema, os modelos de gesso, os cavaletes, as paredes nuas, entre as vigas do teto, ao meio das telas já esboçadas, afiguravam-se-lhe, muito embora, sempre ver um sorriso de anjo, um ramo de violetas, uns olhos cinza esverdeados e uns cachos de cabelos louros.

- Será assim o nascedouro do amor? perguntou Mile Dona a si própria, tomando-se já por responsável pelo destino de André de Castro.


Beto Palaio


Capitulo do livro em progresso Pitchula e os Paranóias, sendo este a parte inicial do capitulo 6 (AS MIL MULHERES EM MILE DONA).. 

Pintura: o poeta Robert Burns por autor desconhecido.

maio 04, 2013



AS MORTES DA MORTE EM VENEZA

8


Cuore, cosa fai, che tutto solo te ne stai. O trem havia acabado de chegar. Um pequeno grupo encontrava-se na plataforma da Estação Santa Lucia. Ninguém mais além daquelas poucas pessoas à espera, assim como, ao redor dali, algo fantasmagórico permanecia, ao percorrer as ruas em passos brancos, a madrugada, fria, inconteste, mãe das neblinas, inconvencional, impenetrável, ao livre-arbítrio, porém, inútil, em sua decisão irrestrita, com seu nebuloso manto, de ocultar a realidade. Aos olhos da vida, entretanto, nada fica escondido inutilmente. “O mundo é uma biblioteca sem paredes”, isso disse Charles Farias, um turista refinado, culto, e amigo de Mandrake, que veio se despedir dele e de sua mulher Narda à estação. Ainda ontem o pequeno grupo de amigos que ora se reúne na Estação Santa Lucia, estava tomando parte da alegre festa do Carnaval de Veneza. Eis que. Entretanto. Curta é a jornada do artesanato delituoso. Durante a folia, Mandrake aproveita a presença de alguns policiais e se aproxima do gondoleiro Lubiski Morsini, aliás, R. M. Balarabechár, retira-lhe a máscara e chama os policiais: “prendam esse homem, ele é o responsável pelos crimes que ocorreram em Veneza!”. Há uma comoção geral ao redor, inclusive Lubiski Morsini, isto é, R. M. Balarabechár, tenta fugir, mas é impedido por um carabineiro um pouco mais valente. Depois desta discreta baderna, máscaras repostas, tudo ao redor dali—salas acarpetadas, corredores decorados, candelabros cintilantes, escadarias encastoadas, atracadouros febris, barcas no ir e vir, edifícios na penumbra, salgadas águas confinadas aos canais—tudo volta a respirar em quietude. Il sole alto splende già sulla città. Al buio tu non guarirai, non stare lì, dai retta a me. Já dentro do trem, Mandrake põe-se a resumir mentalmente sua passagem por Veneza. “Quando cheguei havia esse hotelzão de frente para a laguna. O porteiro desconhecia a velha etiqueta francesa de carregar malas. Tive de abordar o balcão de chek-in às voltas com minha velha dorzinha de coluna. E mais ainda. Sobre o balcão havia um desses sininhos consumidos pelo uso, típicos das portarias de hotel, mas que ao soar ninguém atendia; para completar, a parede em frente ostentava uma placa desumana: "não temos TV nos quartos". O que dizer? Que a ardente Veneza está às moscas?” Di là dai vetri forse c'è, una per te, per te. Quando o trem parte da estação. Mandrake permite que Narda se ajeite ternamente, algo sonolenta, recostada ao seu ombro. “Tantas aventuras juntos”, ela suspira. Em sua feminilidade extravagante. Narda às vezes se torna uma especialista em discorrer futilidades. Observava as etiquetas sociais como se fossem normas litúrgicas. Passava horas dando detalhes de como dobrar um guardanapo à mesa. Além disto dizia coisas absurdas em reuniões importantíssimas, como aquela afirmação de que fazia torta de maçã com qualquer fruta que tivesse à mão: cerejas, damascos, groselhas ou amoras pretas. Perguntada se uma torta feita com outras frutas não deixaria de ser a verdadeira torta de maçã, ela respondia rindo, mas num tom lacônico: “e eu deixaria de fazer torta de maçãs somente pela falta das maçãs?”. No entanto, entre suas jocosas declarações surgia eventualmente uma jóia como esta: “Acho que Deus mora em Nova York... Numa esquina... Os Pretenders... Na outra... Ottis Redding... Na outra... O Buddy Holly... E por fim... Elvis Costello...”. Almeno guarda giù  che tra la gente che vedrai c'è sempre una, una che è come te... Mandrake é quem discorre, vendo a paisagem correr, partindo de Veneza, além das janelas do trem: “enquanto no hotel, eu aguardava pela chegada de Narda, ela mais uma vez se distraíra fazendo compras, atraída pelas vitrines da caríssima Veneza, inclusive, ela nunca escondeu que preferia estar em Miami a estar em Veneza. E gabava-se daquela cidade na Flórida: “tem muita coisa estranha por lá... Como aquela horrível estátua de um ônibus espacial feita de cimento, ou daquele show com uma baleia cantora, ou daquele imenso jacaré empalhado na entrada da biblioteca da cidade, mas em compensação tem gente de camisas e shorts coloridos e biquínis pouco convencionais”. Un viso anonimo che sà l'ingratitudine cos'è, e una parola troverà anche per te, per te... “No entanto não existe mulher mais leal no mundo. Companheira de todas as horas. Mantenedora de meus truques de mágica, os quais não revela nem para as amigas mais íntimas. Além disto, Narda é excepcionalmente corajosa. Ainda nesta semana, à caça de indícios de uma pista para decifrarmos os crimes que ocorreram em Veneza, fiquei com dó da coitadinha. Estávamos encurralados pela perseguição que nos infringiu um escroque da cidade, quando chegamos a um ponto sem saída. Não tive dúvidas, gritei para Narda: “pule no canal!”, e Narda saltou para as águas sujas de salinidades, musgos e tralhas. Pulei atrás dela e juntos ficamos no resguardo da soleira de uma ponte, ocultos sob ela até que o perigo passasse”. E allora te ne vai, non hai perduto niente ancora. A un'altra vita, un altro amore non dare mai. “Nesta noite chegamos à conclusão que não valia mais a pena ficar nesta cidade perfumada aos marasmos dos influxos e refluxos do Adriático. Em meio a esta sonolência chuvisquenta. Recebemos uma ligação de Lothar, nosso guarda-costas, sempre fiel e destemido. Ele viajara antes de nós para o Brasil, onde ali cuidaria do desembaraço de nosso arsenal de mágica na alfândega. Teremos um show de mágicas patrocinado pela Rede Globo, mas Veneza ainda nos empresta a preguiça de partir. Narda está mais aflita que eu para ir embora daqui: “vamos, amor, acho que não temos mais nada para fazer aqui”. Olho para ela um tanto sonolento, coloco os dedos entre as cavas laterais de meu impecável colete negro e fico duvidando que ela esteja mesmo com pressa: “mas acabamos de solucionar o caso das mortes em Veneza”. Ela me fitou sem piscar, riu e me pediu uma mágica para comemorarmos pelo quebra-cabeça que se tornara a investigação das mortes naquela cidade: “e então?”, Narda ficou me desafiando. Então apanhei minha cartola de mágico que estava ao pé da cama e com um assovio de surpresa retirei dela uma bela rosa vermelha. Ela não pediu por outra mágica, pois agora queria mesmo é se ocultar entre lençóis de seda: “me deixa retribuir pela rosa?”. Claro que deixei que ela retribuísse com seus carinhos. Foi assim que passamos nossa última noite naquele hotel em Veneza”. Il sole alto splende già, sul viso anonimo di chi, potrà rubarti un altro sì, un altro sì... Il mondo é lì. È lì....


Beto Palaio


Ultimo dos trechos que compõe este conto que faz parte do livro Pitchula e os Paranóias (em progresso) inspirado livremente na capa do LP Sargent Pepper´s dos Beatles.

Música: Anônimo Veneziano, com Tony Renis.

maio 03, 2013



AS MORTES DA MORTE EM VENEZA

7

R. M. Balarabechár, o Taturana, era o chefe dos mendigos da região do Mercado Central, em Londres. Ocorre, entretanto, que na ocasião de sua prisão em Veneza, ele já havia perdido a cidadania inglesa, e ali prosperara sob a nacionalidade italiana. Tudo pelo fato de haver encontrado, num monturo de lixo, próximo à entrada principal da abadia de administração da Igreja de Westminster, uma pasta com cinco mil ações ao portador de uma empresa italiana de transportes coletivos, a Tramontana SPA.

- Magníficas são as criaturas que perdem os seus pertences mais nobres...

Falou R. M. Balarabechár, o Taturana, ao achar aquela pasta com milhares de ações ao portador, diante do que tratou de ficar de soslaio na região da abadia por mais um ou dois dias.

- Quem sabe eles se livram de mais ações ordinárias ao portador...

Mas essa remessa extra de ações ordinárias não veio e Balarabechár, o Taturana, tratou de ir, ainda naquela semana, ao consulado italiano reclamar do inverno de Londres e também de uma frieira que ele cultivava no entrededos de seu pé esquerdo. Algo bastante desusado para o expediente do cônsul italiano, na verdade um cônsul honorário e, portanto, não necessariamente italiano. Diga-se, en passant, que o cônsul havia nascido na região carvoeira da Cornualha, próximo ao istmo de Devon, e seu nome era Joseph Bédier III, bisneto do escritor cornualhês Joseph Bédier, autor de “O Romance da Guerra dos Cem Anos”, sucesso na Londres provinciana no início do século XX, principalmente na sua versão folhetinesca lançada por um jornal sem muita expressão na época, mas conhecido posteriormente como The Guardian.

- Pois não, Senhor... Sim, sim... Caríssimo Senhor Balarabechár... O que “nós” italianos poderemos fazer pelo senhor...

- “Vocês” italianos poderão arranjar uma acomodação decente para este pobre cidadão inglês, mas com vista a um passaporte permanente de dupla cidadania no país de “vocês”... Italianos...

- E o ponto seria?

Como R. M. Balarabechár, o Taturana, não entendeu exatamente o que o cônsul estava querendo dizer com “o ponto”, retrucou com a mesma pergunta:

- E o ponto seria?

- Meu caro cidadão inglês R. M. Balarabechár... Com “o ponto” eu quero dizer... Desculpe... Aceita chá?... Com açúcar?... Está bom assim?... Ótimo... Mas voltando ao assunto... Eu somente estava perguntando o motivo de o senhor vir a um consulado de outro país solicitar cidadania... O senhor é algum fugitivo da lei?... Não?... Mas desculpe... Não, não... Não me interprete mal, senhor Balarabechár... São os ossos do ofício... Perguntas pertinentes... Mas repito então... Qual é o ponto?

- Excelentíssimo Senhor Cônsul Joseph Bédier III... Venho neste solene momento pedir minha transferência para Veneza no sentido de que... Grato, o chá estava ótimo... No sentido de que vou tomar posse como novo membro da diretoria de uma empresa de nome Tramontana SPA, por certo, como representante daquele país, o senhor deve conhecer esta empresa...

- Sim, claro... Mas, qual é o ponto?

- O ponto é que um cidadão inglês pode e deve tomar posse da diretoria de uma empresa estrangeira... Mesmo que essa empresa seja italiana... Se ele conseguir provar por “a” mais “b” que realmente é oficioso de tal função...

- Sim, claro... Mas, permita lhe perguntar pela sexta vez... Qual é realmente o ponto, Senhor Balarabechár?...

- O ponto... Sendo absolutamente prático... É que sou o legitimo proprietário de cinco mil ações da Tramontana SPA... Com isto me julgo no direito de cuidar dos meus interesses num país estranho... Mesmo que seja a Itália... O senhor não concorda?

- Claro... Agora sim... Chegamos ao ponto... Mas veja bem... Nada é simples como parece... Há um trâmite burocrático que... Vou ser mais latino do que  anglo-saxão agora... Se o senhor me permitir a franqueza... Mesmo para nós, italianos, porém sem abandonarmos a cidadania inglesa, o senhor me entende, não é?... Mesmo para nós levaria um bom tempo para provarmos certos detalhes legais...

Diante da tremenda burocracia apresentada pelo consulado italiano em Londres, não restou ao cidadão R. M Balarabechár, senão uma única saída: buscar no submundo dos falsários de documentos de Londres alguém que conseguisse uma maneira de transformá-lo num legitimo cidadão italiano.

Foi somente quando ele doou, ainda em Londres, uma centena daquelas ações para Isabella Deleon Contarini, esposa de um doge de Florenza, que conheceu através Virginie G., copeira de um nobre inglês, a qual dividira com ele alguns copos de cerveja maltada no balcão do Pub Fifty-Nine. Assim, com sua determinação de conseguir a cidadania italiana, ele acaba também por conhecer Ramus Sanford Jr., um iatista irlandês que era amigo de uma pessoa influente no setor documental dos arquivos da INRI, Ingerência Nacional e Regional de Informações. Essa pessoa era o despachadíssimo Dr. Demosthenis Lemuel, advogado da família Real e conselheiro de vários clubes de rugby da Inglaterra e Reino Unido.

- Agora sim, tenho a nacionalidade que preciso para tomar posse da empresa Tramontana SPA...

Isto disse R. M Balarabechár rasgando tudo o que possuía da antiga cidadania e dando boas vindas à nova documentação que o transformava inclusive em aposentado na função de gondoleiro em Veneza. É um recém empossado cidadão italiano que se apresenta nos balcões da British Airways para embarcar para Veneza:

- Sou Lubiski Morsini... Desculpe meu sotaque inglês pronunciado... Mas sou italiano desde criancinha... Sim, já tenho a carteira de vacinas e também o carimbo da alfândega inglesa... Grato... Espero mesmo fazer uma boa viagem até Veneza... Tenham todos uma boa tarde!


Beto Palaio

Trecho de uma série de mini-contos que fazem parte de um capítulo do livro (em progresso) que é Pitchula e os Paranóias, livremente inspirado na capa do LP Sargent Pepper´s dos Beatles.

Imagem: Pintura de Annibale Carracci

maio 01, 2013



AS MORTES DA MORTE EM VENEZA


6

Houve uma quinzena, ou mais, de interrupção naquela seqüência de mortes misteriosas. Foi nessa trégua que Otelo Carruters, tido pelas prostitutas locais como um mocetão insaciável. Na sua origem um tímido meeiro agrícola de Botorrita, Venezuela. Mas que no despertar do sexo pago se tornou ciumento até da própria sombra. Otelo é um apreciador de chope nas horas mais irregulares. Pesquisador de pedras preciosas. Mas, acima de tudo. Principalmente um observador dos mínimos gestos femininos de uma moça que vende flores na Praça de São Marcos. Ela é linda, sempre sorridente, habitando um espaço entre as lojas de conveniência e a praça, onde reina o grande Príncipe Rolex, o relógio da torre, o qual toca tons e semitons, invariavelmente, a cada meia hora. Otelo é recorrente tal o Príncipe Rolex, teimoso em sua paquera, afeito a qual, nunca desiste de algo que cobiça. Quando se trata de conquistar o coração feminino, esse Otelo Carruters age tal um mouro dentro das insistências de um apaixonado. Assim foi quando ele cismou de tomar posse dos afetos dessa moça vendedora de flores, independente dela ser cega de nascença. Muito embora não contivesse sua irritação quando soube dos particulares da moça das flores. Algo que. Para sustento de seus áis. Ele divide em mágoa com seu amigo de copo, o gondoleiro Lubiski Morsini. O qual disse para Carruters que a moça, de nome Jasmine, era protegida por um tal Padre Pey, um que ainda reza missas, mas somente na cidade de Toledo, Espanha. E que esse Padre Pey mora aqui num cubículo, junto com Jasmine, onde eles sempre deixam a carroça de flores estacionada bem em frente ao pórtico de entrada do velho edifício. Ainda mais, diz à Otelo, o seu amigo gondoleiro, que aquela moça, a Jasmine, é viúva do árabe Dalil D´Azizio. Um que apareceu morto em pleno canal, mas não agora em meio a essa série fatídica, isto coisa já de um ano. No dia seguinte à essa conversa com o gondoleiro Lubiski Morsini, Otelo Carruters foi até a banca de Jasmine comprar flores. Indignado estava pela bela moça ser assim jogada de um lado para o outro na mão dessa desditosa vida. Diante de Jasmine, fingindo que compraria uma rosa, Otelo quis passar-se por outro. Disse ele postando a voz e mentindo para Jasmine:

- Moça, sou o Padre Deveraux... De Toledo... Procuro aqui por um subalterno meu... Disseram-me que você... Tão linda e cativante assim... Pois bem... Disseram-me que você me ajudaria...

A moça Jasmine ficou apavorada. Disse que não sabia nada sobre esse subalterno dele, o Padre Pey...

- Mas, eu nem disse o nome dele ainda... Calma, menina... Nada acontecerá a ele... Isto é... Somente se...

- Se...

- Você deixar de viver em pecado com ele e concordar em dar outro rumo em sua vida... Isso urgentemente, diga-se...

- Ah... Padre Deveraux... Não penso em outra coisa desde que fiquei viúva de Dalil D´Azizio...

- Já soube de sua desdita...

- Mas o que farão com o Padre Pey?

- Há casos... Veja bem... Pode bem ser que o Padre Pey não passe por isso... Seria por demais desastroso para ele... Mas... Há casos que apenas se resolve com toda cólera advinda da milícia do Palácio Maior... Falo da correção ministrada pela polícia do primado regimental do Vaticano... Em outras palavras... Cadeia e chibata...

- Mas o Padre Pey é tão bonzinho... Precisa conhecê-lo melhor...

- Mas vive contigo... Minha bela flor... Em pecado absoluto... E você deve concordar muito bem com isto... Pois aceitou essa vida bandida à qual ele te relegou...

- Não, Padre Deveraux... Não é o que pensa... Não é mesmo...

- Como assim?

- Ele jamais encostaria um dedo em mim... Aliás... Padre Deveraux... Essa tem sido minha sina... Nunca fui experimentada enquanto mulher... Nem pelo meu ex-marido... O falecido Dalil D´Azizio...

- Que estória é esta de não ter sido experimentada?

- É que Dalil era deveras masculino... Um touro... Um homem que pesava perto de cem quilos... Distribuídos em um metro e oitenta e cinco... Pois no dia da nossa lua-de-mel... Aqui mesmo em Veneza... O senhor está me ouvindo?

- Sim, estou aqui ao seu lado...

- Pois nesse dia fatídico ele deixou-me no hotel e saiu para comprar cigarros... Somente quinze dias depois acharam seu corpo...

- Que trágico... Que martírio para você... Encantadora Jasmine... Então o Padre Pey não encomendou a entrega da casca sagrada?

- Que casca sagrada?

- Falo de sua virgindade... A igreja preza muito a virgindade numa donzela linda como você... Totalmente... Eu diria até... Devotadamente... Portanto um padre sabe bem do valor dessas janelinhas laqueadas para o pecado...

- Quanto ao Padre Pey... Posso segredar isto ao senhor... Sem que qualquer crime pese sobre ele... Pois... Revelarei definitivamente isto...

- Isto o que?... Que ele não passa de um canalha?

- Não... Não... Padre Deveraux... Perdoe o Padre Pey... Ele não é um criminoso como o senhor pensa...

- Mas vive com você em pecado...

- Não é bem assim...

- Me explique melhor, doce e gentil criatura...

- Padre Deveraux... Eu lhe revelarei que... O Padre Pey é meu legítimo irmão...

- Irmão?

- Sim... Nós somos de Toledo... Uma cidade onde ele seguia os mandamentos de Deus como nem um judeu devoto o faria...

- Mas fugiu de Toledo... Isso tem uma conotação absurdamente desfavorável para ele... Um homem de Deus vivendo praticamente como um eremita... Oculto numa viela de Veneza... Com sua adorável irmã cega... Algum motivo menos sagrado esse santo homem há de ocultar... Venha... Vamos até ele... Gostaria de resolver logo essa pendência... Como enviado da Sagrada Família Católica... Isto é tudo...

Assim os dois se dirigem para a viela onde o Padre Pey vive com sua irmã Jasmine... Ali chegando é Jasmine quem entra no pardieiro de casas para dar a notícia da prisão que o seu superior de Toledo vem lhe apresentar... Mal sabendo ela da farsa que lhe prega Otelo Carruters, o visionário apaixonado... Com a punição do irmão em mente, Jasmine entra no quarto de Padre Pey... Naquele momento ela está às lágrimas... O Padre é comunicado que seu superior está munido de uma carta de arresto para ele... E que não há motivos para pânico... Basta ele se entregar... Entretanto Padre Pey tem outras idéias a respeito... Motivado principalmente pelo segredo de haver desviado os fundos milionários da Santa Igreja de Toledo... Logo... Movido pelo anseio de evadir-se... Prepara rapidamente sua bagagem de mão e se despede de Jasmine, saindo por uma janela dos fundos, uma que se descortina para uma série passagens secretas e canais secundários, e assim arregimentado, Padre Pey não seria mais encontrado nem na Europa, nem na Ásia...

- Adeus, querida irmã...

Ela ainda tem tempo de ouvir a voz de seu irmão, como um murmúrio distante, tal as águas que correm de uma cisterna, enquanto os passos dele se afastam na distância...

- Volte Pey... Meu irmão... Não faça isto...

Na rua é uma Jasmine chorosa que vem avisar Otelo Carruters, aliás o homem tido como Padre Deveraux, da fuga de seu irmão... Este logo adentra na casa e conclui que doravante encontrar-se-á neste mundo como o legítimo benfeitor daquela virgenzinha desprotegida e fragilizada...

- Jasmine... Ele lhe oculta algo muito perigoso... Porque fugiria?... Aliás... Bom que te diga... Sou apenas um agente secreto a serviço do magnânimo Bispo de Toledo... Não passo de um simples investigador... Dei-lhe o nome de Padre Deveraux... Mas sou Otelo... Otelo Carruters... Pronto a desfazer esse mal entendido com seu irmão... Aliás... A investigação morre aqui... Não há motivos para perseguir este pobre homem... Agora antevejo a minha verdadeira obrigação... E quando puder transmitirei isto ao Bispo de Toledo... A minha obrigação agora é de prontamente lhe proteger... É assim que age a Igreja do Bispado de Toledo... Não desampara nenhum aflito... Nenhum...

- Obrigado então... Senhor...

- Otelo... Seu criado...

- Obrigado mesmo... Senhor Otelo... Que confusão o meu irmão criou para a Igreja, não é mesmo?... Meu Deus... E este desastrado caso acabou por envolvê-lo... Desculpe-me...

- Que é isto minha flor?... Que é isto?... Deixe-me enxugar suas lágrimas...

Memórias são feitas de areia. Quando estão úmidas pelas lágrimas não se desfazem, formam um gumo, uma contenção. De espinhos alertas. Inefáveis. Embarcados. Quando soltas as memórias voam, grão a grão, não só, elas evaporam. Nada as recuperam... Assim... Logo na noite seguinte, um ávido Otelo se muda para a casa de Jasmine... Onde tomam vinhos raros e se alegram mutuamente... Aos poucos Otelo ensina as nobres artes da concupiscência para Jasmine... Logo ela está nua... E feliz por estar sendo especialmente orientada para o sestro carnal por uma pessoa tão cordata e jovial como Otelo Carruters... Ele deita-se com ela numa canastra recoberta por almofadas... Otelo prontamente oferece sua mão para acariciar aquela esplêndida veludinha... Orientando naquela direção um possante mastro... A ruína das ruínas... Mas nada do desfalecimento pós-ejaculação... Pois Otelo não a penetra de todo... Apenas nas bordas flamejantes da corola de sua tímida flor... Depois lhe ensina um truque que disse haver aprendido em livros indianos... Coisa do tempo dele ser ainda um estudante... E proporciona para aquela voluptuosa cabacinha a sua língua louca... Jasmine delira... Crê que enxerga luzes... Pede por mais... Quer também lhe acariciar o mastruço... E foi assim, após rápida apresentação formal, que ela retribui à possante bimba, a sua ávida boca... Após o ato desbragado de se sorverem mutuamente... Otelo faz com que Jasmine se amolde por sobre seu mastro e a penetra de modo sutil, porém com o rompedor completamente embrenhado em suas belíssimas dobraduras carnais...

- Ai... Como dói...

- Quer então que eu pare?

- Claro que não, meu amor... Claro que não...


Beto Palaio


Trecho de uma série de mini-contos que fazem parte de um capítulo do livro (em progresso) que é Pitchula e os Paranóias, livremente inspirado na capa do LP Sargent Pepper´s dos Beatles.

Pintura: John William Godward