A INCURSÃO BEATNIK NO RECANTO
DO MILENAR HAICÁI JAPONÊS.
O haicai beatnik. Um salto breve para três estrofes. Onde tudo se transforma em poesia. O encontro de duas culturas. Sons da grande cidade encobrindo o versejar de grilos paradisíacos cantando em gramados e tempos distantes. Um hiato de paz no pós-guerra. Todos estão reunidos em volta de uma mesa de restaurante. Ao entra e sai das novidades. Nova York, 1959. No restaurante os camarões num prato pronto estão, por detrás do vidro do balcão, numa gritaria sem letras. Do andar a esmo ao filme noir. O borbulhar de champanhe da soda misturada ao uísque. Bobo de quem não versejasse, algum dia, algum lábio, algum dente, ponta que seja, que morda a cultura ocidental, humana ao excesso, saboreando de vez a escrita, curta, sertaneja, incauta, silenciosa, wabi sabi, sacerdotal do haicai.
Mundo cão do lado de fora. Sonhos, ruas vazias, chave de casa. Naquele bar amigável. Os amigos se confraternizam. As cãs brancas dos passadistas nem se aproximariam da porta deste café. Os tamboretes, súbito brilham, ganham vida. O gato mascote, propriedade da casa, adivinha tempestade. Os bichos mortos, habitantes de poesias longevas, são entregues ao sacramento. Allen Ginsberg, Gregory Corso, Lawrence Ferlinghetti e Jack Kerouac descansam seus textos. Filtros dormentes, em golfadas de cais, datilografam feericamente, numa canoinha de Newton. As maçãs-textos abarrotam as árvores da poesia. Logo se saberá.
Cada pequena coisa que revolucione, aperta o passo, e alcança a década de sessenta. A arte americana é quem comanda o espetáculo cultural. Paris não está mais em chamas. E os sinos que dobraram pela Segunda Grande Guerra, estão silenciosos. Ad Reinhardt pinta suas telas negras. Joseph Cornell se ilustra ao adornar suas caixas herméticas com esmero que evita o Dada. Andy Warhol empilha latas de Sopa Campbell´s. Merce Cunningham assumiu o palco, a coxia, o camarim e o bastidor, inclusive, naquela tarde, ele posara para uma foto onde aparece ao lado de John Cage e Robert Rauschenberg. Roteiro e orvalho acompanham os novos poetas. Jack Kerouac volta para sua casa no campo. Escreve, cria gatos, ouve os vizinhos, ralha com as crianças, teme as tempestades, foge do homem do aluguel:
Balas de jujuba, /no meu livro Zen, /meus joelhos doem ♦ Flores que madrugam, /penso a respeito, /dos bêbados do México ♦ Nenhum telegrama hoje, /somente algumas folhas,/ que caem ♦ A noite cai,/ um garoto amassa dentes-de-leão,/ com uma vareta ♦ Mostro para a lua,/ o meu gato ronronante,/ e eu mesmo suspiro ♦Bebado como uma morsa,/ escrevendo cartas,/ ouvindo a tempestade ♦ Passo o dia inteiro,/ usando um chapéu,/ que não estava na cabeça ♦ A noite cai,/ muito escuro para ler,/ muito frio aqui fora ♦ Um seguindo o outro,/ meus gatos param,/ quando troveja ♦ A sola de meus sapatos,/ estão limpíssimas,/ por ter andado na chuva ♦ Feche seus olhos,/ o dono da casa está batendo,/ na porta dos fundos ♦ Tão linda noite de outono,/ e esses tolos aqui do lado,/ começam uma briga ♦ Belos muros de Detroit,/ domingo à tarde,/ pedem uma mijadinha ♦ Haicái uma ova,/ para mim chega,/minha mãe está chamando.
A árvore de haicais existe. Lineu, o inventor do pop-out criacionista, donde tudo que respira surgia em árvores, jamais poderia prever uma árvore tão frutífera como aquela que, em pencas, gera os haicais. Essa crença de chegar esticar o braço e pegar o fruto. Aos beatniks o grande caminho ofereceu todas as árvores. O primeiro a se fartar foi Gary Snyder, o mentor Zen de Jack Kerouac. Tão importante foi esse amigo e guia do Zen para Kerouac que, lado a lado, estudaram (e praticaram) poemas de formatação chinesa, diretamente traduzidos do místico Han Shan, também conhecido como "Montanha Fria”. Com isto, o próprio Kerouac , ao fartar-se diretamente nessa fruteira, recorda como Snyder é sucinto ao se expressar sobre a tônica dos haicais:
- Presta atenção meu jovem, um haicai verdadeiro tem que ser tão simples como mingau e ainda fazer você ver a coisa como ela é. Veja esse exemplo que salta aos olhos e que imagino ser o maior haicái de todos: O pardal saltita / ao longo da varanda /com os pés molhados (Masaoka Shiki). Jack aqui você praticamente vê as pegadas molhadas como algo que existe na sua mente... Entendeu?... Eu acrescentaria que mesmo fazendo uso econômico de palavra esse haicai faz você sentir-se úmido até a alma, pois você praticamente vê a chuva que caiu naquele dia e pode sentir até o perfume dos pinheiros que está tão ensopado como o pardal.
Alguns haicais de Gary Snyder, o montanhista e preservacionista que também apareceria como personagem num romance de Kerouac chamado Os Vagabundos do Dharma:
Meu cachimbo apagado / Ao lado do Sutra do Diamante / Dá o que pensar ♦ O homem não foi contratado / Então comeu sua marmita sozinho /A sirene do meio-dia toca ♦ Um caminhão passou / Há três horas atrás / Deserto de Smoke Creek ♦ A luz da lua / Bate no templo queimado / Coco de cavalo endurecido ♦ Por semanas observei a goteira / Tapei-a num minuto apenas / Encaixando a telha solta ♦ Uma bela mula ruana / as rédeas vão soltas / Quarenta milhas da fazenda ♦ O grande trem cargueiro / Uma cidade ambulante / Atravessa o deserto pedregoso.
Decidam vocês mesmos se o aluno Kerouac não superou o mestre Snyder:
Braços cruzados / Oferecidos para a lua / No meio das vacas ♦ Pássaros cantando / No meio da penumbra / Dia chuvoso ♦ Errei o chute / Na porta da geladeira / Ela fechou assim mesmo ♦ Tarde de Julho / Uma rã gordona / Na soleira da porta ♦ Um bagre lutando pela vida / Ganhou a batalha / E ainda nos molhou ♦ A tarde chega / A secretariazinha / Afrouxa seu cachecol ♦ Em pálido amarelo / A lua logo acima / Do nosso lampião ♦ Um sabor / De chuva /Porque se ajoelham? ♦ A chuva encheu / O bebedouro dos pássaros / Até em cima ♦ Um gato quieto / Ao lado do poste / Observa a lua ♦ Esses pássaros sentados / Ao longo da cerca / Todos eles um dia morrerão ♦ No armário do banheiro / Uma mosca da temporada / Morreu de velhice ♦Pegadas de garotas / Ao longo da areia / Galhos com musgos ♦ Neon no restaurante chinês / As meninas se aproximam / Em tons diversos.
Beto Palaio
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