O MENINO DA PORTEIRA
Escorre por um fio o pio do uirapuru. O céu arrepiou de subir de novo.
Foi como se disse. No que se disse. A mentira que se narrava nas esquinas e
botecos. Além da lenda. Buchichos nas igrejas e nas casas de oficio fácil. O começo
do mundo é que não era. Chovera muito. Semana inteira de neblina e chuvarada.
Aqui a estória do fim se inicia. Pelo fim é que se morde o rabo da cobra. E não
é que PP morreu mesmo? Pequerrucho Piemontês, este o nome do eterno prefeito de
nossa cidade.
- O PP sempre se esquecia do hoje
agora. Se administrasse era para algo vindouro. Acolá sendo sua mira de tiro...
“Em
dez anos o mundo será outro”, dizia Pequerrucho, “armas e corações estarão irmanados.
O mundo se tornará algo frio e indiferente. Nem amor nem guerra comandarão as
futuras pelejas humanas”. Enquanto isto nossa cidadezinha se espreguiçava como
um lagarto ao sol. Nada fazia crer nas mudanças imaginadas por PP. Lembro-me
perfeitamente disto. Houve um dia que trabalhei ao lado do prefeito Pequerrucho Piemontês. Lado a lado. Limpando uma bagunça que com o tempo foi acumulada no
alto do campanário da única igreja de nossa cidade.
- Menino, pegue esse rolo
de tapetes podres e jogue pela janela...
Eventualmente ele me tinha
sob controle, podia ouvir seus comandos, respiração entrecortada, vassourão na
mão, olhos esbugalhados pelo esforço de carregar tralhas. Não demorou muito
tempo para limparmos aquela bagunça. Eu, jovem ainda, estava com o corpo moído
pelo esforço da faxina. PP no entanto parecia cada vez mais disposto,
principalmente nos últimos arremates da limpeza.
- Agora me ajuda a carregar
algumas coisas da prefeitura para cá... Vou transformar isso aqui no meu
escritório privativo...
De fato o campanário da
igreja logo ganhou luzes noturnas, pois PP vinha para lá após o turno diário
dos seus deveres como prefeito de nossa cidade. Foi assim que ele começou a
ganhar fama de bruxo.
- O PP está doidinho...
Quem é que vai lá para descobrir as bruxarias dele?
Um convescote de pessoas
despeitadas chegou até a porta de minha casa pedindo providencia. Afinal eu era
o ajudante de ordens do prefeito e deveria saber se a cidade corria perigo
tendo um dirigente assim profanador das ordens espirituais reinantes. De fato a
incumbência dos injuriados chegou à raia dos fatos:
- Ou você vai secretamente
ver o que está ocorrendo, ou nós iremos de tocha em punho colocar fogo no
campanário!
Achei por bem ir até o
campanário e ver o que estava acontecendo no cubículo onde se escondia
diariamente o prefeito. Já nas escadarias de acesso à cúpula eu podia sentir o
forte cheiro de vela derretida com enxofre. Uma luz bruxuleante saía das
frinchas da porta de acesso ao escritório de PP. E ele, misteriosamente,
adivinhou minha chegada:
- Moleque, chegou em boa
hora. Pode entrar. Vai me ajudar numas coisinhas.
Quando entrei tomei um susto.
Havia dois PPs na saleta. Esfreguei os olhos achando que era defeito de minha
visão. Mas era verdade. Os dois prefeitos estavam olhando para mim com o mesmo
ar de incredulidade que eu demonstrava. Então a dupla se dirigiu a mim com a
incumbência:
- Vá até a porteira da
fazenda do Neco e espere lá até o amanhecer... Leve esse pacote que um amigo
nosso vai retirar com você... Não se assuste... Aceite isto como uma
responsabilidade municipal...
Si-si-si-si-si. As cigarras
estavam ruidosas no amanhecer daquele dia de verão de 1967. Acordei ao lado da
porteira. Não tinha mais o pacote que “os prefeitos” me confiaram. Aliás, nem
lembrava, naquele momento, de que vira dois PPs no reduto do campanário. Foi
com espanto que despertei ouvindo as cigarras. Depois bati com as mãos na minha
calça jeans e agitei minha camisa para retirar o excesso de poeira que se acumulara por eu
ter dormido no chão de terra. Logo rumei de volta para a cidade, mas sem pressa
nenhuma...
Beto Palaio
Conto do livro TRAÇOS DE POLARÓIDE, somente composto de "estórinhas estranhas" que
escrevo no momento.
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