abril 17, 2013


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MELENA E VERANICO

Os saveiros, velas arriadas, dormiam na escuridão. As águas são muitas, infindas. Nesta terra de delicadezas improváveis. O sertão é mais sertão. A praia abafadiça não dá sorvete. E ela, Melena, vive agora com a cabeça cheia de féretros. Na verdade, Veranico não estava preparado para o sofrimento. Todo homem, ao atingir certa idade, pode perfeitamente enfrentar a avalanche do tédio e da amargura, pois desde a meninice acostumou-se às vicissitudes, através de um processo lento e gradativo de dissabores. A neblina foi-se e um galo cantou. Terê-tê-textos. Do rubi ao violão. Vermelho guerra, sons de um luau sertanejo. Veranico deixou a pousada e resolveu pegar o trem de volta para o Rio de Janeiro. Melena era o motivo principal. O amor sempre expia o amor, inexoravelmente. Em toda concessão inadiável. O filme jorra em luz desde a parede dos fundos do cinema. Aquele caminho luminoso passava sobre nossas cabeças. Uma torre de luz deitada horizontalmente incidia na tela que explodia em signos e significados. Aquele tablado radiante cercado de sombras. Rosto de loiras, pernas de javali, braços de mulatos cativos, porcelana italiana do século XVI, espumas rodeando um corpo nu na banheira, um avião que explode em chamas, mãos que partem um pedaço de pão, um velho mafioso cai ao tomar tiros no meio da rua, sorrisos de um casal que brinca na neve. Ali Melena se refestelava. Em território próprio. Ainda no ano passado ela estava sozinha no cinema, quando percebeu um casal, uma jovem aloirada e um moreno atlético, ambos se tocavam e beijavam, abertamente, desprezando o filme por inteiro. Disfarçada e cínica, ela, a Melena, notou que o rapaz enlaçava a moça com fervor, sendo ambos belos e sorridentes, promovendo uma libidinagem sem igual, mãos e coisa e tal. Totalmente absortos. Ocupados com o ranger da libido. Cativos da sedução animal. Ao aproveitamento. Eles ocupavam a última fila, no escurinho, com Melena sentada à duas cadeiras do moço, deveras interessada em observar a brincadeira. Mas ela ficou ali discretíssima. Fingiu que nem via as cenas tórridas daquele namoro, em oposição total ao filme cult que desfilava na tela, onde um operário italiano, tendo sua bicicleta roubada, decidiu igualmente, para colocar no lugar da sua, roubar a bicicleta de alguém. Aquela obra cinematográfica cuja narrativa na primeira pessoa passa-se num único dia, desfere um tom épico de revolta nas entranhas de Melena. Apesar do filme ter sido rodado em Roma, nele não se vê bispos, padres, janotas, boêmios, raparigas, estudantes, professores, oradores populares, negros de pouco ofício e artistas de circo. Entretanto vê-se na tela os tipos miseráveis que se encontravam ali, nas ruas do pós-guerra. Gente pobre, caça-biscates e operários. Todos tentando refazer suas complexas vidas numa cidade que se reconstrói após o conflito mundial. Na semana seguinte. Rua principal apinhada de gente. Vésperas de Natal. Melena andava aflita querendo encontrar algo para dar de presente para sua mãe. De vitrine em vitrine. Até que ela fica ao lado de um moço, dividindo o mesmo espaço defronte a vitrine de uma perfumaria. Então Melena vê pelo reflexo no vidro da vitrine que o moço era o mesmo que observou namorando libidinosamente no escurinho do cinema. Ela se assusta ao vê-lo assim tão perto dela. Uma reação que não passa despercebida para Veranico, o nome do moço. Ele imediatamente reage: “te assustei? Parece até que viu um fantasma...”. Melena continua olhando para ele com um leve estranhamento, agora um tanto envergonhada. Veranico não perde o bom humor: “olha, pode tocar em mim. Sou de carne e osso... Não faço mal a ninguém...”. Melena pede desculpas, mas não tem muito assunto. Assim Veranico toma a providência de falar pelos dois: “se me der uma chance eu provo que sou um bom fantasma... Que tal tomar um sorvete comigo?”. Ela não diz nada, continua absorta, olhando para Veranico e lembrando-se dele agindo como um tarado insano dentro do cinema. Ela não suporta mais fingir que nunca o vira antes: “eu te vi dentro do cinema... Estava sentada ao seu lado... Você estava lá com sua namorada”. Há no mundo estórias contadas em primeiríssima mão, outras estórias são requentadas, como rotas alteradas que ressurgem em palavras inconsúteis. Esta estória de Melena e Veranico é daquelas contadas diretamente, assim como a imaginou o escritor: “mas veja como esse mundo é mesmo pequeno”, disse Veranico, agora olhando para Melena de través, vendo seu reflexo na vitrine e conversando diretamente com esse reflexo. A moça entende o jogo de conversar com o espelho e faz o mesmo: “desde que te vi naquele dia, eu tive a certeza de que te encontraria aqui fora”. Veranico diz: “aqui fora, no mundo real?”. Melena diz: “isto mesmo... Longe do cinema”. Veranico diz: “você é um tipo de voyeur que aprecia ficar olhando casais namorando no escurinho?”. Melena diz: “talvez eu seja o tipo que inveja as mulheres amadas dessa maneira... Sim, eu fiquei com inveja daquela sua namorada... Queria estar lá no lugar dela”. Veranico diz: “quer ir ao cinema comigo, então?”. Melena diz: “ah, então o jogo é esse?... Você conhece uma mulher na rua e arrasta-a para a última fila do cinema?”. Veranico: “sim, é exatamente assim que ajo... Alguma coisa contra isso?”. Melena diz que não, muito pelo contrário. Veranico então desvia o olhar do reflexo de Melena na vitrine e olha diretamente para seus olhos: “topa ir então ao cinema comigo?”. Melena corresponde ao seu olhar tarado e concorda prontamente com o convite: “claro que sim... Eu topo”. Os dois atravessaram a rua em meio ao trafego lento. Ele a abraçou timidamente. Ela retribuiu. Desta forma foram em direção ao cinema. O que aconteceria depois, entre eles, não passa de curiosidade, um atributo típico da chamada especulação.


Beto Palaio


Pintura: Jack Butler Yeats

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