maio 11, 2013



MILE DONA E A DESCOBERTA DO AMOR.

Menina de engenho. Sim, ela é uma menina de engenho. Que definição mais sublime! Tudo se abarca quando o aforismo procede. Como aquele que disse da literatura possuir um algo infalível, píncaro de definições, entretanto vítima nas mãos de tradutores infantis e derrotados. Entretanto. Quando entra a vontade de embrenhar-se na serralha da palavra, nada afugenta quem assim procede. Haja paciência, compreende-se assim. Se há algo que queima mais que o desejo da escrita, isto desconhece Mile Dona. Ela dedica sua existência para escrever. Refém do aqui agora. A luz que está brilhando através das cortinas de seu refúgio não é estática. É a luz do dia, infindável, entregue à volatilização, sendo lenta, mas em constante caminhar. No entanto. Juntamente com a moça que está diante de seu computador. Ela que fica toda dormente ao digitar estórias. Vem agora encolher seus dedos e tornar a esticá-los com a intenção de descanso, após um longo dia de trabalho em um dos romances que escreve. Mile Dona está preocupada com o texto que se mostra nu e exposto. A fragilidade de sua nudez parece alinhar-se com o fraquejar do ser humano perante as últimas tragédias ocorridas no início deste milênio. A questão para a escritora não transparece a necessidade de mostrar os horrores sofridos pelas vítimas de alguma violência específica, mas na somatória de eventos que caracterizam o fim da humanização em particular. A jovem autora levanta-se de sua escrivaninha e vai até a janela. Mile Dona, a escritora, está tão perto do local da queda do World Trade Center. “Sou vizinha do caos”, como ela bem define. Contudo. Ainda pela manhã. Mile Dona estava sentada na relva, onde se deslumbrava com o domingo ensolarado ao redor. Ela vê as pessoas que se ocupam em aproveitar o dia à beira de um lago artificial em pleno Central Park. Mile Dona tem em suas mãos uma margarida a qual, despreocupadamente, desfolha:

- Sim, sou uma escritora, adoro escrever... Não, não sou uma escritora, tudo dá errado nas minhas estórias... Sim, sou uma escritora, as palavras parecem me obedecer... Não, não sou uma escritora, nem sempre entendo o que escrevo... Sim, sou uma escritora, a palavra para mim é música que me embala... Não, não sou uma escritora, quase sempre perco a partitura e a música fica truncada... Sim, sou uma escritora, a literatura é poesia que inspira... Não, não sou uma escritora, pois meus diálogos são muito pouco poéticos... Sim, sou uma escritora, pois penso e logo existo... Não, não sou uma escritora, pois uso do pensamento alheio como se fosse meu... Sim, sou uma escritora, já que me emociono até as lágrimas com que escrevo... Não, não sou uma escritora...


Há na penteadeira de Mile Dona a imagem de uma menina com cerca de quatorze anos. Essa menina loura aparece ali bela, confiante, com a risonha expansão da inocência a iluminar-lhe o rosto. Sua boca é uma cereja. É fatal compará-la com este fruto. Imagina-se mais. A brisa de Maio brinca alegremente com os vastos anéis dos seus cabelos dourados. Nos seus olhos acinzentados, de extraordinária altivez, crepita sua jovialidade. O motivo arde ao redor. Talvez seja a primavera. Algo ali palpita. É a alegria de existir na mocidade em flor. Pois, embora o leitor mal possa aquilatar tal feitiço, nesse rosto encantador, conservado com zelo, num camafeu de carinhos herdados, que se abrira hoje sem limite para considerações, posto que a autora tente traduzir fielmente o enleio daquela miniatura, apenas adormecida, em uma pequena foto emoldurada, perpetrada havia mais de cem anos.

- Esta menina passou pela existência... Foi alguém como eu... Sentiu fome... Sentiu sede... Sentiu medo... Sentiu solidão... Foi amada... Foi desprezada... Foi alguém... Enfim!

Agora restrita ao camafeu. Aquela menina chama-se Aniela. Jovem vizinha de um pintor que um dia bateu à sua porta com um belo ramo de violetas. Ele precisava dividir seus segredos com alguém. Ao propósito de que. O artista vira em Aniela o refúgio adequado para depositar seus arroubos de pintor. Naquele momento em que lhe abre a porta. Aniela tem certeza de que as violetas são algo mais que a cortesia de doar flores. Com aquele gentil ato. Elas faziam-se acompanhar pelo sorriso da bela jovem. Mas que sorriso! Um minuto antes eram bem lúgubres os pensamentos do pintor André de Castro. Vivia ele na confusão de monstros, demônios e bruxas que povoavam seus quadros, entrevia amargamente no espírito humano, o símbolo da sua existência atribulada. Um pouco antes de ter a idéia de entregar flores à Aniela. Estava triste tal sua própria extenuação de entusiasmo. Porém a gentil visão da moça dispersara todos os fantasmas, como um facho luminoso dissipa as trevas. André de Castro sentiu o coração bater-lhe com força desusada. Isto era júbilo! Teve uma vertigem e baixou os olhos, enquanto o ardente sangue dos seus vinte e cinco anos fazia retumbar-lhe aos ouvidos, em grande orquestra, uma arrebatadora sinfonia de esperança. Sim, tudo porque a sua bela vizinha Aniela aceitara suas flores. O fulgor que agora brilharia em sua existência deve alvíssaras àquele primeiro lume do sorriso de Aniela.

- Nossa... Isto surgiu assim do nada... Só de olhar essa foto antiga... Será que há uma verdade por trás do que escrevi?

Para a escritora Mile Dona tudo não passara de uma miragem. Foi apenas um relâmpago fugaz. Pois. Na visão que desaparecera. Uma janela fechou-se. E se André de Castro desejasse continuar a conquista de seu amor Aniela, e não pudesse? Ou será que poderia? Bastava Mile Dona querer, porque lhe tremiam os dedos e ela os esticava para assim tornar a dedilhar nas teclas de seu computador. Eis que André de Castro abandonou a palheta, e foi sentar-se a um dos cantos do seu atelier com os cotovelos fincados nos joelhos e a cabeça entre as mãos. A noite lhe surgiu mansamente, para surpreendê-lo deste modo. Então cada objeto assumiu para ele um aspecto fantástico; parecia-lhe que, em volta de si, aromatizava o ar um suave perfume de violetas. Ali, em silêncio, ele imaginava ouvir os passos de Aniela na casa vizinha. Aplicou mesmo o ouvido para isto, e julgou perceber um eco longínquo de uma canção entoada por voz de anjo. Jurou que ouvia, adrede à essa maviosa voz, um acompanhamento de uma harpa, ou de uma lira, ou mesmo de um alaúde. Só então. André olhou para a penumbra de seu atelier e concebeu ali o seu próximo quadro. Ele anteviu nesse imaginado trabalho um turbilhão de cabeças louras, iluminadas por grandes olhos cinza esverdeados. Entretanto, por toda a parte, no centro de sua morada, restavam em acomodação suprema, os modelos de gesso, os cavaletes, as paredes nuas, entre as vigas do teto, ao meio das telas já esboçadas, afiguravam-se-lhe, muito embora, sempre ver um sorriso de anjo, um ramo de violetas, uns olhos cinza esverdeados e uns cachos de cabelos louros.

- Será assim o nascedouro do amor? perguntou Mile Dona a si própria, tomando-se já por responsável pelo destino de André de Castro.


Beto Palaio


Capitulo do livro em progresso Pitchula e os Paranóias, sendo este a parte inicial do capitulo 6 (AS MIL MULHERES EM MILE DONA).. 

Pintura: o poeta Robert Burns por autor desconhecido.

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