AS MORTES DA MORTE EM VENEZA
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R. M. Balarabechár, o Taturana, era
o chefe dos mendigos da região do Mercado Central, em Londres. Ocorre,
entretanto, que na ocasião de sua prisão em Veneza, ele já havia perdido a
cidadania inglesa, e ali prosperara sob a nacionalidade italiana. Tudo pelo fato de haver
encontrado, num monturo de lixo, próximo à entrada principal da abadia de administração da Igreja de Westminster, uma pasta com cinco mil ações ao portador de uma
empresa italiana de transportes coletivos, a Tramontana SPA.
- Magníficas são as criaturas que
perdem os seus pertences mais nobres...
Falou R. M. Balarabechár, o
Taturana, ao achar aquela pasta com milhares de ações ao portador, diante do que
tratou de ficar de soslaio na região da abadia por mais um ou dois dias.
- Quem sabe eles se livram de
mais ações ordinárias ao portador...
Mas essa remessa extra de ações
ordinárias não veio e Balarabechár, o Taturana, tratou de ir, ainda naquela
semana, ao consulado italiano reclamar do inverno de Londres e também de uma
frieira que ele cultivava no entrededos de seu pé esquerdo. Algo bastante desusado para o expediente do cônsul
italiano, na verdade um cônsul honorário e, portanto, não necessariamente
italiano. Diga-se, en passant, que o cônsul havia nascido na região carvoeira
da Cornualha, próximo ao istmo de Devon, e seu nome era Joseph Bédier III,
bisneto do escritor cornualhês Joseph Bédier, autor de “O Romance da Guerra dos
Cem Anos”, sucesso na Londres provinciana no início do século XX,
principalmente na sua versão folhetinesca lançada por um jornal sem muita
expressão na época, mas conhecido posteriormente como The Guardian.
- Pois não, Senhor... Sim, sim...
Caríssimo Senhor Balarabechár... O que “nós” italianos poderemos fazer pelo
senhor...
- “Vocês” italianos poderão
arranjar uma acomodação decente para este pobre cidadão inglês, mas com vista a
um passaporte permanente de dupla cidadania no país de “vocês”... Italianos...
- E o ponto seria?
Como R. M. Balarabechár, o
Taturana, não entendeu exatamente o que o cônsul estava querendo dizer com “o
ponto”, retrucou com a mesma pergunta:
- E o ponto seria?
- Meu caro cidadão inglês R. M. Balarabechár...
Com “o ponto” eu quero dizer... Desculpe... Aceita chá?... Com açúcar?... Está
bom assim?... Ótimo... Mas voltando ao assunto... Eu somente estava perguntando
o motivo de o senhor vir a um consulado de outro país solicitar cidadania... O
senhor é algum fugitivo da lei?... Não?... Mas desculpe... Não, não... Não me interprete mal, senhor
Balarabechár... São os ossos do ofício... Perguntas pertinentes... Mas repito
então... Qual é o ponto?
- Excelentíssimo Senhor Cônsul Joseph
Bédier III... Venho neste solene momento pedir minha transferência para Veneza
no sentido de que... Grato, o chá estava ótimo... No sentido de que vou tomar
posse como novo membro da diretoria de uma empresa de nome Tramontana SPA, por
certo, como representante daquele país, o senhor deve conhecer esta empresa...
- Sim, claro... Mas, qual é o
ponto?
- O ponto é que um cidadão inglês
pode e deve tomar posse da diretoria de uma empresa estrangeira... Mesmo que
essa empresa seja italiana... Se ele conseguir provar por “a” mais “b” que
realmente é oficioso de tal função...
- Sim, claro... Mas, permita lhe
perguntar pela sexta vez... Qual é realmente o ponto, Senhor Balarabechár?...
- O ponto... Sendo absolutamente
prático... É que sou o legitimo proprietário de cinco mil ações da Tramontana
SPA... Com isto me julgo no direito de cuidar dos meus interesses num país
estranho... Mesmo que seja a Itália... O senhor não concorda?
- Claro... Agora sim... Chegamos
ao ponto... Mas veja bem... Nada é simples como parece... Há um trâmite
burocrático que... Vou ser mais latino do que anglo-saxão agora... Se o senhor me
permitir a franqueza... Mesmo para nós, italianos, porém sem abandonarmos a
cidadania inglesa, o senhor me entende, não é?... Mesmo para nós levaria um bom
tempo para provarmos certos detalhes legais...
Diante da tremenda burocracia
apresentada pelo consulado italiano em Londres, não restou ao cidadão R. M
Balarabechár, senão uma única saída: buscar no submundo dos falsários de
documentos de Londres alguém que conseguisse uma maneira de transformá-lo num
legitimo cidadão italiano.
Foi somente quando ele doou,
ainda em Londres, uma centena daquelas ações para Isabella Deleon Contarini,
esposa de um doge de Florenza, que conheceu através Virginie G., copeira de um
nobre inglês, a qual dividira com ele alguns copos de cerveja maltada no balcão
do Pub Fifty-Nine. Assim, com sua determinação de conseguir a cidadania
italiana, ele acaba também por conhecer Ramus Sanford Jr., um iatista irlandês
que era amigo de uma pessoa influente no setor documental dos arquivos da INRI,
Ingerência Nacional e Regional de Informações. Essa pessoa era o
despachadíssimo Dr. Demosthenis Lemuel, advogado da família Real e conselheiro
de vários clubes de rugby da Inglaterra e Reino Unido.
- Agora sim, tenho a
nacionalidade que preciso para tomar posse da empresa Tramontana SPA...
Isto disse R. M Balarabechár
rasgando tudo o que possuía da antiga cidadania e dando boas vindas à nova
documentação que o transformava inclusive em aposentado na função de gondoleiro
em Veneza. É um recém empossado cidadão italiano que se apresenta nos balcões
da British Airways para embarcar para Veneza:
- Sou Lubiski Morsini... Desculpe
meu sotaque inglês pronunciado... Mas sou italiano desde criancinha... Sim, já
tenho a carteira de vacinas e também o carimbo da alfândega inglesa... Grato...
Espero mesmo fazer uma boa viagem até Veneza... Tenham todos uma boa tarde!
Beto Palaio
Trecho de uma série de mini-contos que fazem parte de um
capítulo do livro (em progresso) que é Pitchula e os Paranóias, livremente
inspirado na capa do LP Sargent Pepper´s dos Beatles.
Imagem:
Pintura de Annibale Carracci
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