UM
DIA NA VIDA DE TALITA BREVIS.
“Sim. Eu concordo.
Mas quem é você?”. A pergunta ficou parada no ar. O que lá fora era bom, útil,
verdadeiro ou belo, não tem aqui nenhuma significação. Entretanto. A vida real
pulsava ao redor. Os olhos da personagem seguiram o barco e a linha do
horizonte. “A partir daqui eu deixarei que ele escreva”, pensou Talita Brevis
em voz alta. E sequer quis discordar. “Deixarei que este estranho assuma o
posto na redação do capítulo de hoje”, tornou a arrazoar. Foi deste modo, com
invasão permitida, que um forasteiro, antecipando-se, tomou o lugar da
escritora na elaboração da narrativa do momento. Amiúde. Escrever para Talita
seria como entrar num túnel que estivesse constantemente bloqueado por
elefantes. Um amálgama vivo, quase medieval, configurava como autorizador do
que escrevia. Uma corda atrelada ao feixe. Pensou ela, quando revelou a forma
exata de seu estilo. Mas agora era diferente. Ela abrira um precedente para que
outra pessoa escrevesse em seu lugar. E a porta do escrever foi declarada aberta.
Escancarada, por sinal. Então ocorreu—credo!—uma sucessão de erros. Faltava uma
vírgula numa assertiva, protelou-se um ponto e vírgula noutro trecho; além do
mais, um “a” obviamente craseado estava sem crase. Ela, a criadora habitual,
ruborizou. Jamais cometera um erro que lhe fosse conveniente. E agora isso.
Quis desatender a estória contada pelo estrangeiro. Tomou a sua própria mão
esquerda e com ela bateu com força na mão direita. A caneta-tinteiro voou longe.
Mas o escritor interino, aquele que ocupava agora, de forma autorizada, o lugar
de Talita. Apenas fez um gesto de silêncio. Levou o próprio dedo da escritora,
em riste, aos lábios dela mesma. Depois estendeu o braço direito da escritora
sobre o tampo da mesa e tomou de um lápis. Com ele continuou a redação. Agora
de forma apressada. Como numa verdadeira odisseia de seguir o barco e o
horizonte de escrever. Ação de rápido efeito. Com este movimento exemplar. O
visitante foi aceito e constituído como seu legítimo assessor para a escrita de
um texto que ela julgava aleatório, portanto digno de um apressado amassar de
papel. Claro. Ela jogaria no lixo o texto que estava surgindo como que
psicografado, através dela mesma. Um pequeno diálogo, em presságio, diga-se,
foi o que ocorreu com o lápis cantando nas curvas das palavras, ao longo das
linhas timbradas do papel:
- Não faça isto...
- Isto o que?
- Não jogue este
texto no lixo...
- Como?
- Você sabe do que se
trata...
- Mas...
- Agora não
atrapalhe... Não mesmo... Ok?
Um silêncio. O
relógio da sala batia esguio e voraz em direção ao vindouro. Logo tudo serenou
e uma vontade de ser terra dominou a ilha da ponderação que surgia empurrando o
mar do desentendimento para longe. “Tudo a calhar”, foi o que ela pensou. “Não deveríamos
temer o reflorir de novas ideias. Ou talvez devêssemos temer o reflorir de
novas ideias? Com certeza devemos temer o reflorir de novas ideias”. Talita
Brevis, a jovem escritora, concedia rápidas considerações que se revestiam da
voz secular da literatura, no entanto, agora algo desatenta, enquanto o outro
escrevia, olhava lá longe, para o espelho da penteadeira, quando viu ali, ao
refletido, alguém colocando uma carta por debaixo da sua porta. Talita
compreendia o momento de impasse. O texto sendo escrito por outra pessoa, e ela
divagando ao redor, quem sabe procurou pela penteadeira desejando retocar sua
maquiagem pessoal? Mas eis. Haja compreensão, isto é o que conta, aos prudentes leitores,
assumimos o fato de um conto ser apenas o fragmento de um filme que está ao
ponto de ser filmado, mas que de comum nunca chega à fase de produção cinematográfica.
Talita Brevis até reparou no enxovalhado de seus sentimentos. Voltou a pensar
na carta que alguém colocara sob a porta. Sentiu uma pontada de zanga, mas também uma
leve alegria por estar recebendo um recado de alguém. Com isto. Suspendendo a
escrita. Levantou-se da escrivaninha. Foi até a porta de entrada e apanhou a
carta que ali fora deixada por alguém. Talita não tem pressa de abrir aquela
carta. Voltando para sua mesa de trabalho ela aceita que o outro continue o
texto que deveria ser seu.
- Não quer abrir a
carta?
- Não agora... Mais
tarde eu abro...
- Abra, pois o que se
fala na carta tem a ver com o conto que estamos escrevendo "juntos" no dia de
hoje...
- E como você sabe
disto?
Rapidamente perguntou
Talita, olhando para sua própria mão que não parava de se agitar. Obviamente ávida
por escrever a próxima linha.
- Acontece que fui eu
mesmo quem te mandou essa carta...
- Agora é que não entendo
mais nada...
- Quando abrir a
carta entenderá...
Talita Brevis ficou
olhando a carta com muita curiosidade. Deixou que a mão, até então emprestada a
outrem, parasse de escrever, só então ela fez menção de abrir a carta. Tomou o
envelope com um carinho injustificado, levou-o aos lábios, como para conferir a
maciez do papel que envolvia a missiva, depois passou a rasgar aquela carta.
Rasgou tanto que no final parecia que tinha nas mãos um punhado de confetes. A
seguir fechou a escrivaninha, e foi até a geladeira para conferir o que havia
ali para o lanche da tarde...
Beto
Palaio
Imagem: Pablo Picasso - Mulher que escreve - Oleo sobre tela - 1936
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