março 12, 2014

Woman writing - Pablo Picasso

UM DIA NA VIDA DE TALITA BREVIS.

“Sim. Eu concordo. Mas quem é você?”. A pergunta ficou parada no ar. O que lá fora era bom, útil, verdadeiro ou belo, não tem aqui nenhuma significação. Entretanto. A vida real pulsava ao redor. Os olhos da personagem seguiram o barco e a linha do horizonte. “A partir daqui eu deixarei que ele escreva”, pensou Talita Brevis em voz alta. E sequer quis discordar. “Deixarei que este estranho assuma o posto na redação do capítulo de hoje”, tornou a arrazoar. Foi deste modo, com invasão permitida, que um forasteiro, antecipando-se, tomou o lugar da escritora na elaboração da narrativa do momento. Amiúde. Escrever para Talita seria como entrar num túnel que estivesse constantemente bloqueado por elefantes. Um amálgama vivo, quase medieval, configurava como autorizador do que escrevia. Uma corda atrelada ao feixe. Pensou ela, quando revelou a forma exata de seu estilo. Mas agora era diferente. Ela abrira um precedente para que outra pessoa escrevesse em seu lugar. E a porta do escrever foi declarada aberta. Escancarada, por sinal. Então ocorreu—credo!—uma sucessão de erros. Faltava uma vírgula numa assertiva, protelou-se um ponto e vírgula noutro trecho; além do mais, um “a” obviamente craseado estava sem crase. Ela, a criadora habitual, ruborizou. Jamais cometera um erro que lhe fosse conveniente. E agora isso. Quis desatender a estória contada pelo estrangeiro. Tomou a sua própria mão esquerda e com ela bateu com força na mão direita. A caneta-tinteiro voou longe. Mas o escritor interino, aquele que ocupava agora, de forma autorizada, o lugar de Talita. Apenas fez um gesto de silêncio. Levou o próprio dedo da escritora, em riste, aos lábios dela mesma. Depois estendeu o braço direito da escritora sobre o tampo da mesa e tomou de um lápis. Com ele continuou a redação. Agora de forma apressada. Como numa verdadeira odisseia de seguir o barco e o horizonte de escrever. Ação de rápido efeito. Com este movimento exemplar. O visitante foi aceito e constituído como seu legítimo assessor para a escrita de um texto que ela julgava aleatório, portanto digno de um apressado amassar de papel. Claro. Ela jogaria no lixo o texto que estava surgindo como que psicografado, através dela mesma. Um pequeno diálogo, em presságio, diga-se, foi o que ocorreu com o lápis cantando nas curvas das palavras, ao longo das linhas timbradas do papel:

- Não faça isto...

- Isto o que?

- Não jogue este texto no lixo...

- Como?

- Você sabe do que se trata...

- Mas...

- Agora não atrapalhe... Não mesmo... Ok?

Um silêncio. O relógio da sala batia esguio e voraz em direção ao vindouro. Logo tudo serenou e uma vontade de ser terra dominou a ilha da ponderação que surgia empurrando o mar do desentendimento para longe. “Tudo a calhar”, foi o que ela pensou. “Não deveríamos temer o reflorir de novas ideias. Ou talvez devêssemos temer o reflorir de novas ideias? Com certeza devemos temer o reflorir de novas ideias”. Talita Brevis, a jovem escritora, concedia rápidas considerações que se revestiam da voz secular da literatura, no entanto, agora algo desatenta, enquanto o outro escrevia, olhava lá longe, para o espelho da penteadeira, quando viu ali, ao refletido, alguém colocando uma carta por debaixo da sua porta. Talita compreendia o momento de impasse. O texto sendo escrito por outra pessoa, e ela divagando ao redor, quem sabe procurou pela penteadeira desejando retocar sua maquiagem pessoal? Mas eis. Haja compreensão, isto é o que conta, aos prudentes leitores, assumimos o fato de um conto ser apenas o fragmento de um filme que está ao ponto de ser filmado, mas que de comum nunca chega à fase de produção cinematográfica. Talita Brevis até reparou no enxovalhado de seus sentimentos. Voltou a pensar na carta que alguém colocara sob a porta.  Sentiu uma pontada de zanga, mas também uma leve alegria por estar recebendo um recado de alguém. Com isto. Suspendendo a escrita. Levantou-se da escrivaninha. Foi até a porta de entrada e apanhou a carta que ali fora deixada por alguém. Talita não tem pressa de abrir aquela carta. Voltando para sua mesa de trabalho ela aceita que o outro continue o texto que deveria ser seu.

- Não quer abrir a carta?

- Não agora... Mais tarde eu abro...

- Abra, pois o que se fala na carta tem a ver com o conto que estamos escrevendo "juntos" no dia de hoje...

- E como você sabe disto?

Rapidamente perguntou Talita, olhando para sua própria mão que não parava de se agitar. Obviamente ávida por escrever a próxima linha.

- Acontece que fui eu mesmo quem te mandou essa carta...

- Agora é que não entendo mais nada...

- Quando abrir a carta entenderá...

Talita Brevis ficou olhando a carta com muita curiosidade. Deixou que a mão, até então emprestada a outrem, parasse de escrever, só então ela fez menção de abrir a carta. Tomou o envelope com um carinho injustificado, levou-o aos lábios, como para conferir a maciez do papel que envolvia a missiva, depois passou a rasgar aquela carta. Rasgou tanto que no final parecia que tinha nas mãos um punhado de confetes. A seguir fechou a escrivaninha, e foi até a geladeira para conferir o que havia ali para o lanche da tarde...



Beto Palaio


Imagem: Pablo Picasso - Mulher que escreve - Oleo sobre tela - 1936

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