A VELHA
MORTALIDADE
Escrever. É apenas. Juntar
palavras. Por vezes. De lá para cá. Vocábulos que se acumulam. Pareço um
esquilo que percorre o bosque para coletar sementes que esconde no ninho. Ao
escrever. Uso de um filtro semelhante ao papel que envolve a maçã. Escrevo alhures
azuis. Venturas lilases. Por vezes trato a velha cultura com matizes esmaecidos.
Cores de arrebol. Dizem. Quem lê esses contos avulsos. Embromação de romantismo
tardio, sobre meus escritos anotou um dos raros críticos literários ainda em desempenho.
Oras! Só sei que sigo em frente. Matizando as palavras sempre que possa
recorrer a esse direito. Sobre o caso. Muito a contragosto. Revelo, no entanto,
um aforismo de uso próprio: há excesso de doutrina na escrita, aqui somos
compelidos a seguir regras e isto nos molda em estilo e significado. Como para
fugir deste prefácio. Toda manhã de sol eu penso em coisas boas. Pelo menos eu
tento. Esforço-me por absorver o melhor do dia. Mas no final deste dia. Poucos
momentos, algures, eu tenho paz. Muito embora. Fico cismado com minha solidão. Transpareço
em volúpias a insatisfação. Acho que fiz a coisa errada. Acabei perdendo a
pessoa que mais amo. Mas quem vai se importar com minha estória pessoal? Será
Lugar-comum? Mas há que findar este desconforto introdutório. É sexta-feira,
meia-noite, digamos assim, mesmo que em palpos-de-aranha, bem-aventurado aquele
que vive as mil-folhas de um amor-perfeito. Ao leva-e-traz no corre-corre, lufa-lufa
sob os arranha-céus, num arco-íris de significados, em banho-maria. Pisa-mansinho
aqui leitor. O pombo-correio desta estória é muito verídico. Solidão-a-dois. Até um leão geme suas dores. Em breve
instância a saudade tece seu manto, pequenina que se apresente, e envolve-nos,
ao todo, talhe e tal, bom corte, chances suturadas: então passa diretamente
para o universo material, sufocando-nos, daí a dor que sentimos.
- Abram as janelas... Deixem a
luz entrar...
O outono chega ao fim e
sinaliza para que o primeiro toque de inverno se instale. Qualquer um poderia
notar que havia algo no ar. O sol já não ardia, parecia mais uma estrela polar
que se misturava à outras estrelas no céu. O vento contribuía para que tudo
mais se acachapasse. As árvores denunciavam o final de um longo tempo de
estiagem. Nuvens escuras compareciam, aos liames de cinzas partilhados, em
correria de algodoados.
- Pode entrar, a porta está
aberta...
Neste canto há esta voz que
anuncia o prenúncio de que a dita estória finalmente se apresentará alinhavada
de bom censo. Esta voz é a mesma que nos arrebata do mundo das conjecturas e nos
lança ao consórcio da vida em sociedade em meados do século vinte:
- Já vai para a libertinagem,
Georgia?
- Não tenho que te dar satisfações,
papai...
Georgia
tomou a decisão de ir atender a porta. Ela sabia que era seu noivo Rodolfo quem
ali estava. Mas toma uma surpresa.
-
O que faz aqui Argelim? Você parece tão aflito?
-
O Rodolfo se meteu numa briga... Está na delegacia... Eu acho melhor você ir
até lá...
Georgia
bate a porta atrás de si e segue Argelim pela alameda invadida por folhas que
voam aflitas em meio ao inicio de uma imensa tempestade que se anuncia.
-
Ele está ferido, Argelim?
-
Não o vi pessoalmente, Georgia... Eu recebi uma ligação em casa... Então achei
por bem te procurar...
Coisa
nenhuma se compara à uma chance após a outra. Ontem é documentário rememorado.
Hoje é cinema de recreação. Amanhã é filme ainda em arquivo. Uma longa
travessia deveria ser feita por Georgia. Ela caminhava depressa. Agora sem a
companhia de Argelim, ela arriscou-se à entrar sozinha no vetusto prédio da
delegacia. Escadarias que pareciam não ter fim. Corredores que terminavam em
paredes concretas, com indicações para que Georgia seguisse à esquerda, sempre
à esquerda. Por duas vezes ela parou para pedir informações. Numa das vezes foi
atendida por duas freiras que vinham devotas, à entoar um hino sacro em tom baixo,
desde o fim de um imenso corredor. “Acautela-te!”, arrazoou uma das freiras, já
cobrindo o rosto com um véu. Por essa época. Justamente quando se atribui
colaboração entre fanáticos extremistas e a ditadura estabelecida
autoritariamente no governo central. A velha delegacia de Taboão ficava
instalada no antigo castelo de propriedade da Santa Igreja Católica. Por este
motivo. Parte do estabelecimento constava como um abrigo para padres e freiras,
sendo que o restante foi transformado em cubículos onde investigadores e
policiais fardados se acotovelavam. Neste interregno. Georgia se perdeu dentro
da delegacia que agora constatava ser uma mistura policialesca atrelada ao
Santo Ofício. Um jovem padre sussurrou para ela não seguir mais pelos
corredores de acesso ao porão. Isto teria um motivo justo. Este padre guiou
Georgia até uma sala debilmente iluminada apenas por uma vela, a qual ardia sem
um movimento sequer em sua chama. Ali um velho bispo estava instalado em uma
cadeira de espaldar alto. Georgia evitava cruzar seus olhos com os do religioso
e passa a olhar diretamente para a chama enquanto entretém-se num breve
diálogo:
-
Senhor padre... Pode dizer como faço para ver o meu noivo?
-
E quem é seu noivo, filha minha?...
-
O nome dele é Rodolfo...
-
Como?
-
Rodolfo...
Georgia
falou num tom tão alto que o padre fez sinal com a mão para que diminuísse a
voz.
-
Sim, minha filha... Entendi o nome do noivo... E o que quer que eu faça?
-
Nem eu mesmo sei... Como poderia adivinhar que a delegacia do bairro estava
agora dividida entre a Igreja Católica e a Polícia Militar?
-
Mas aqui não se representa a Igreja Católica Apostólica Romana... Aqui somos um
reduto onde milagrosamente se evoca o renascimento da Santa Inquisição.
-
Santa Inquisição?... Mas isto não seria uma forma de tortura?... O que fez
Rodolfo para merecer a tortura?
O
religioso não se preocupou em dar respostas. Entretanto chamou pelo nome um
ajudante seu que estava à porta.
-
Vá e traga aqui o novato... Sim o novato... Aquele que chegou aqui ontem...
Pouco
tempo depois entravam na sala dois homens. O primeiro era o ajudante e o segundo
vestia um manto branco, o qual não o revelava. Mas após o pedido do sacerdote o
homem de vestimentas brancas retirou a cobertura: era Rodolfo!
-
Rodolfo, meu amor... O que fizeram contigo?
Dizem
que a vida é uma viagem moldada em argila. Tudo o que nos cerca foi doado pelo
barro de existir. No entanto tudo é frágil. A existência é rota e, afinal,
desnecessária. Nesta inconsistência natural de existir, Rodolfo mostrou-se
distante, preferiu não entrar no assunto. Entretanto o bispo esclareceu o
enigma:
-
A senhorita deveria, a partir de hoje, cuidar apenas de seus interesses lá
fora. O que ocorre dentro dessas paredes da Inquisição não deverá ser revelado.
Entretanto, para que não paire duvidas sobre a lisura de nossos trabalhos,
apenas diremos que a pessoa que se chamava Rodolfo não mais existe. Não
entendeu ainda? Pois este moço aqui se chama doravante Irmão Cáritas. Apenas
isso. Ele está nas mãos de Deus para a tarefa que lhe cabe. E a tarefa que lhe
cabe é segredo apenas dele. Não entendeu? Pois quanto a isto eu lamento e peço
ao meu ajudante que lhe acompanhe até a saída. Passar bem, Senhorita... Passar
bem!
Beto
Palaio
Conto de meu último livro TRAÇOS DE POLARÓIDE (Março, 2014).
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