CHOVE EM SANTIAGO DO
CHILE.
Chove, chove, chove.
Chove para caralho! Num dia desses o helicóptero da polícia ficou parado no ar,
como que estacionado, bem em cima de minha casa. Naquela prontidão sem fim.
Ventania que as hélices causavam. Havia uma mangueira no quintal que deixou cair
todas as mangas maduras e também as de vez. Os verdadeiros terroristas buscavam
por pessoas imaculadas. Caça e caçadores ficam frente a frente. Marta correu
ligar para um advogado amigo, o qual vinha a ser primo do primo de um amigo da
prima dela. Esperei que ela terminasse a ligação, não confiava na lei, muito
menos em advogados, sobretudo na situação em que me encontrava. Queria ligar
para alguém do Partido Comunista Brasileiro. Pedir conselho. Dizer que estava a
disposição deles para me exilarem no Chile, ou em Cuba, ou na Argélia: fudido
por fudido, fudido e meio. Eu era apenas mais um cabra marcado para morrer.
Tinha ouvido falar de presos que eram torturados barbaramente, nem queria
pensar no sufoco que isso seria. Quis fugir dessa possibilidade de ser esfolado
num porão de delegacia. Sabe-se lá o que se passa na cabeça desses
carniceiros...
Estou dispensando
vaginas. Em outras palavras. Matei você dentro de mim. Pensei em escrever isto
para Marta. Mas a minha mão está fria. Não há uma viva alma nesta rua deserta
em Santiago do Chile. Vez por outra eu ligo o radinho de pilha. Uma canção inca
toca como um lamento. Flauta sem cavaquinho. Vê-se que estou bem longe do
Brasil. Coisa ou cousa? Calango ou calangro? Toicinho ou toucinho? Queria poder
descrever as coisas brasileiras que mais sinto falta. Marta me pareceu algo
inesperadamente lúdico. Como uma tenra carne apetitosa que se torna,
subitamente, em ser humano. Imagino-a nua. Marta entra pela janela do banheiro.
Ajeita minha mão em direção ao mastro convulso que se tornara meu pênis. Marta
me beija. Fecho bem os olhos enquanto ela me beija. Sinto minhas mãos
deslizarem pelas suas meias de seda quando nos conhecemos naquele cinema de
bairro. Eu toco o cetim macio que oculta o maior tesouro que Marta me oferece
agora. Neste momento. Um chupão, um ardor, uma vontade de me aprofundar
definitivamente dentro de Marta. Ela sussurra que me adora. Pede para que eu
goze junto com ela. E eu vou. Vou indo. Vou indo. Vou indo. E gozo profusamente
dentro de Marta que logo vejo ser somente a palma de minha mão.
Se você confunde seu
amor com cheiro de esperma. Que posso fazer? Minhas necessidades são diversas
das tuas. Se não procuro nos braços de outro, onde encontrarei o amor? Recebi
uma carta de Marta um dia desses. Quase quatro anos exilado no Chile, nem sei
mais o que dizer a ela. Arranho no portunhól quando se trata de uma comunicação
com alguém por aqui. Uma chilena do Partido Comunista foi com minha cara. Onde
encontrarei o amor? Fica o dito pelo não dito. Faça o que digo, mas não faça o
que eu faço. E eu? Eu tenho feito o que posso. Doa a quem doer. Você acha Marta
que estou aqui exilado como um veterano de guerra? Bem o contrário disso. Fui
proibido de voltar para meu país porque evitei fazer uma guerra. Ideologias
todos têm. Volto a me incomodar com isto. A quem serve um cidadão como eu estar
vetado para o trabalho útil e progressista? Dia desses um membro do partido me
falou que o trabalho nem sempre enobrece uma pessoa. Quer saber, Marta? Tomei
uma birra, um entojo, desses comunistas. Pensei em escrever diretamente para o
presidente da república do Brasil e confessar isto a ele. Quem sabe eu receba
um indulto de Natal, uma permissão para que veja o pôr-do-sol no meu país, que
é tão meu quanto dele. Com o indulto eu me vejo até sentado numa praia do Rio
de Janeiro que idealizo cálida e receptiva. Quanto aos meus vícios pessoais,
isto não teria coragem de revelar ao presidente, inclusive da minha pobreza de
espírito em debelá-los. Quer saber mesmo? Acho que chegou a hora da verdade.
Posso te pedir uma coisa? Tente viver a sua vida, e não se preocupe mais
comigo. Vaya com Dios, o que mais posso dizer agora?
Será a realidade um
mesclado? Será? Espírito e corpo? Basbaques que se lixem. Chovia sem parar em
Santiago do Chile. Foi neste dia frio e triste que tive a visão do fantasma de
Crespo Aguiar, meu avô. Uma experiência para lá de rica. Um embate milionário,
eu diria, com os fatos oriundos de além-túmulo. Meu avô surgiu para mim desta
forma, na penumbra desse dia frio como se fosse uma bandeira desfraldada. Tomou
conta de um canto do quarto. Como um farol. Brilhava. Mais parecia uma mentira
em que eu divagava. Mas ele me falou do Capitão Lamarca. Disse isto como se
faltassem assuntos brasileiros que me completassem. Logo agora que decidi
abandonar o ideário comunista. Surge para mim esse espectro de Crespo Aguiar,
meu avô, que me causou certo incômodo, mas não medo, e vem contar certos causos
ditos verídicos, afirmava Crespo, das entrelinhas de momentos contraditórios
vividos no submundo da ditadura por Carlos Lamarca. Anjos e aeronaves
alienígenas não me causariam tanto desconforto quanto ouvir meu avô discorrer
fatos que ele ouvira ao pé de uma fogueira espiritual, diretamente do mais
temido terrorista que jamais houvera no Brasil. Aquele culto, um santuário, que
dediquei ao ouvir fatos discorridos por dias e dias. Até que disse ao meu avô
que não queria mais ouvir dessas arengas revolucionárias. Ele que se
materializasse com outras cartilhas. Para mim bastava o que já houvera dito.
Quem sabe ele ficara zangado. Ou trocou de mal comigo. O certo é que. Por
alguns dias, Crespo Aguiar, meu avô, desaparecera. Mas uma tarde, quase sem
brilho, ele surgiu novamente. Desta vez estava sentado no sofá e trazia ao lado
uma antiga conhecida de infância, com quem convivi no bairro de Pinheiros, onde
cresci. Esta amiguinha havia morrido, em longínquos dias, de sarampo mal
curado. Foi Aninha, essa menina, quem falou comigo. Meu avô Crespo só fazia
ouvir. Disse Aninha que estava ali para me dar algum conforto na solidão em que
vivia. Chamou-me de “porqueira”, depois de “barra limpa”, depois de “cara
legal”. Depois conversamos de fato. E outros fantasmas foram surgindo.
Sentavam-se ao redor. Todos bem brasileiros. Meu avô estava feliz. Parece que
desta vez acertava. Ele finalmente estava conseguindo transferir todo o antigo
bairro de Pinheiros para dentro da minha sala em Santiago do Chile.
Beto Palaio
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