A CAMA NA
LAMA
Ela era a rainha da cama alheia.
Dizia que me amava, mas também amava descaradamente a qualquer outro homem.
Deixou de lado a xícara de café. Fustigava aflita, ao jornal da manhã.
Aborrecida por ali não encontrar algo. No caminho solitário dela procurar por
noticias vagas. Naquele periódico matutino de Domingo. Logo o dia passa. Final
da tarde. Parece que ela encontrara a notícia do casamento de um amigo. Para
isto ela se produziu aos requintes. Depois saiu vestida de branco. Havia
chovido durante todo o dia. Para espanto dos que por ali passavam. Ela
escorregou e caiu no recesso do acostamento de uma rua argilosa. O sol surgiu
timidamente às cinco horas da tarde. Ela arfava enquanto eu olhava para ela sem
ação. Tentei tirá-la da lama. Mas ela era tão pusilânime em suas determinações.
Detestável criatura. Alguém mais tentou levantá-la do chão. Dei um sinal de
snap com dois dedos, imediatamente esse bom samaritano recuou. Parecia que toda
a rua estava tranqüila, exceto pelos martelos dos carpinteiros, batendo pregos
num telhado vizinho. Eu nunca tinha visto tal abandono, ao meio do qual ela nem
se mexia dentro da poça de lama. Deitada ela estava, deitada ficou. "A
mulher está morta?”, perguntou um dos carpinteiros, se intrometendo num assunto
de família. Olhei fixamente em direção ao telhado, então ele voltou a bater seu
prego como se nada houvesse dito. Um menino passou de bicicleta e desferiu o
seu veredicto: "a mulher enlameada está morta... ela está morta, ela está
morta!”. Apesar das aparências, eu sabia que não era verdade. Ela era apenas um
feixe de braços e pernas que não se esforçavam por ajudar o corpo a se
levantar. Na lama ela se sentiu em casa. Ficou à vontade. Até acendeu um
cigarro, um algo que surgiu de sua bolsa já completamente sujo de lama: “não
valho nem isto”, disse ela levantando o cigarro manchado e úmido: “eu pensei
que fosse uma pessoa vazia, mas esse casamento vai me deixar mais vazia
ainda... tudo está consumado”. Contudo não deu para ela filosofar por muito
tempo. Pois de uma casa próxima alguém lhe agitava um lenço, ou algo parecido.
Sua mãe saiu da casa, e seu grito subiu as paredes em um uivo. De todos os
lugares surgiram mais mulheres correndo. Sua mãe era magra e de aparência
macilenta. Essa mulherzinha determinada apareceu com mais três amigas e,
mantendo um cigarro grudado nos lábios magros, ajudou a carregar a enlameada
até o pátio do jardim de sua própria casa. Logo surgiu uma demanda de primos,
primas e mais alguns agregados da vizinhança. Alguém acendeu a luz do pátio. A
enlameada virou-se de costas para a luz e disse: “Jesus fez isto comigo... no fundo
ele tem ódio de mim”. Sua mãe ruminou uma resposta, dando baforadas no cigarro
sem o tirar da boca: "não diga uma besteira dessas”. Depois a enlameada me
puxou para perto dela, afoita, tanto que eu mal podia respirar: “faça alguma
coisa, seu idiota, eu não quero mais ter de te trair”. Evidentemente ela estava
se referindo ao casamento do amigo em homenagem a quem ela fez até o favor de
cair, literalmente, na lama. Com o barulho no pórtico da casa, o seu padrasto
acordou e veio até a porta bisbilhotar: “mas o que é isso?... alguma
brincadeira de excelentíssimo bom gosto?”. Ela detestava seu padrasto e lhe
respondeu de maneira lacônica: “vai se foder, Joãozão!”. Agora, no entanto,
Joãozão poderia até ser considerado como seu “pai”—na verdade ele era seu pai
de fato, algo que o próprio Joãozão nunca quis que admitissem—e também porque
ele estava definitivamente casado, “no papel”, com sua mãe. Mesmo assim a
enlameada nunca o chamara de pai. Ela tinha sido ensinada a chamá-lo de
Joãozão. Ninguém sabia o porquê disto. "Você vai sujar de lama o piso do
terraço... Depois quem se ferra para limpar isso sou eu!”. Isto disse Joãozão
que logo desapareceu, pois sabia de antemão o teor de respostas de que seria
capaz sua filha. Mas, ao invés de responder ao pai, ela me olhou demoradamente,
havia um trecho de seu rosto que estava isento da lama, aquilo a deixava com a
aparência estranha de um ser vindo de um outro mundo: “me ajudem a levantar...
vou nesse casamento de qualquer maneira... alguém procure um táxi para mim...
não fiquem me olhando com essas caras de idiotas... me chamem um táxi!”. Sua
mãe estava tremendo. "Ela não pode fazer isso", disse ela. "Ela
não faria uma coisa dessas!". Depois sua mãe atirou-se para frente e,
tendo de passar ao meio de dois ou três curiosos, sussurrou ao meu ouvido:
"menino, acho que basta de palhaçada... leva a louca da minha filha para
sua casa e dá um banho nela”. Mas a enlameada pareceu adivinhar o que a mãe me
pedia: "Salomé, sua bruxa, fique quieta!". Foi um grito que se ouviu
desde a rua. Num repente sua mãe passou a gritar mais que ela. Aquilo feria
meus ouvidos. Logo surgiu mais gente para ofender a enlameada. Sua irmã também
gritou. Todas as mulheres estavam gritando. Apesar da comoção geral, sua mãe me
segredou baixinho, como num sussurro: "trouxe essa mal-agradecida ao
mundo... dei-lhe de mamar... cuidei para entregá-la gentilmente à vida... me
diga o que ela faz para me agradecer?". Agora nem adiantava protestar. Sua
filha enlameada entrou no táxi que a esperava ao portão e seguiu em frente, com
lama até na alma, para assistir ao casamento do homem que mais amava.
Beto
Palaio
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