MARIA
HELENA, ÉS TU?
Eis o texto nosso de cada dia. Ao
transgredir tudo o que, aos nossos olhos, pareça apropriado. Entretanto sendo
portador da fome de jovialidade que nos assalta. Neste ninho de estrelas da
palavra, a alma pode encontrar-se insaciável. Algo para reduzi-la à mera astrônoma
de vogais e consoantes. Tudo se condicionando a um deslumbrado mapeamento.
Donde surgisse uma linha, pingo que fosse, de entendimento. Isto vem aumentar
nosso desejo de busca pela palavra maior. Qualquer coisa. Que por todos é
conhecido pelo vocábulo “felicidade”. Quando, pé ante pé, uma estória se
aproxima. Logo montamos um circo para recepcioná-la. Eis, senões. Será que os
cegos compram lâmpadas para seus apartamentos? Como adivinhar a necessidade de
sentidos opostos aos nossos? A palavra aos poucos cede aos nossos pés. Abre-se
uma cratera donde caímos sem possibilidade de resgate. O escritor desmiolou?
Está com fome do concebido? Mesmo que haja desarrumação. Todo dia ele tem de
bater na porta do texto. A essência da escrita é perversa de ardida, feito
pimenta-malagueta, mas também é doce e gentil tal Iáiá e seus quindins. Na
raspa do tacho. Haja, najas, jardins, prazos. O literato sempre consente em dar
um jeitinho de abrigar um chamamento. O texto é como um saci-pererê. Ele vive
escondido nas grotas. Gira em redemoinhos. Dorme no santuário das ostras. Em
tantos becos. Parafusos que emperram o verso. Argila que sorve as idéias.
Iceberg que só se mostra um bocadinho. Sorvete que só dura o tempo de derreter.
“A palavra me encontrou, sou agora como um prisma derretido”, isto disse
Ardiles olhando para a luz vermelha que indicava a plena funcionalidade do
microfone da estação de rádio que transmitia a novela das dezessete horas. Maria
Helena, sua namorada na novela, não entendeu nada, mas falou o que seu script
previa: “sim, meu amor, esta é a chance de mamãe autorizar nosso casamento”.
Ardiles parecia mais confuso ainda. Sua fala seguinte deveria ser: “Maria
Helena, meu bem, chegou o momento que esperava, agora posso até pedir aumento
na repartição. Nós vamos nos casar... Finalmente vamos nos casar, meu amor!”.
No entanto Ardiles disse isso: “sou pelas vadias, não me casarei nem amarrado
em fio de aço”. A novela estava mesmo para acabar. Seu capítulo final havia
sido anunciado pelos patrocinadores. Neste sentido o público ficou boquiaberto.
Ocorrera um final deveras trágico para os costumes sociais consagrados ao ano
de mil novecentos e cinqüenta e quatro. No entanto. Maria Helena fica ao lado
da porta da estação de rádio. Ela era uma mulher alta e elegante, com uma cor
morena suave para a pele que os fãs da novela de rádio imaginavam ser negra.
Ela nem esperou pela saída de Ardiles e dirigiu-se para a edícula que alugara
de uma senhora cristã no bairro da burguesia local. Agora, no arremate do mês de julho, o sótão
estava quente. Anos atrás, quando ela ganhara a posse como professora-adjunta
naquela cidade, o reitor ofereceu-lhe um apartamento do mais moderno, mais
próximo ao campus. Mas ela recusou. Ela sempre apreciara um sótão, talvez pelo
perfume das madeiras, somado ao seu mistério, seus nichos e recantos, onde alguém
nunca poderia encontrá-la de chofre. Onde também ela poderia se refugiar quando
quisesse. Além disto, ali ela tem uma luz maravilhosa. Raios de luz solar entravam
pela imensa janela, conferindo enxames inquietos às partículas de poeira, como
se o ar estivesse alegremente vivo. “Ardiles estragou tudo, pensou Maria
Helena”. Ela mesma estava preocupada com o vazio que se avizinha dentro de seu
ser. Solteira e sem familiares, ela é o que se poderia chamar de “uma pérola
solitária”. Tudo o que ela deixara para trás, inclusive alguns colegas
próximos, agora ela estava prestes a se aposentar, e seus alunos, aqueles
imberbes com pretensões literárias, ela espera que cada um deles consiga editar
seu livro, algo que viesse a ter sucesso no hall da fama da literatura
nacional. Desde que saíra da novela. Isto ela imaginava que sim. Ela liga o
radinho de pilha. Há um chamado no ar para que os artistas voltem para o
estúdio. Agora a direção da novela está anunciando que houve um engano na
leitura no final da novela. A transmissão não chegou a se completar, isto para
a alegria do patrocinador, pois o contra-regra, aquele que consegue fazer um
cavalo trotar batendo no fundo de uma casca de coco, e consegue fazer chover
agitando uma folha de zinco, ele, o contra-regra, quando viu que Ardiles
iniciou uma frase fora do contexto, correu para desligar o que estivesse a seu
alcance, inclusive, revestido de juízo, no calor do momento, a chave principal
do transmissor da estação de rádio. Agora Maria Helena está em sua edícula e
ouve o chamado para que todos os artistas da novela voltem para a retomada do
último programa. Inclusive Dona Gessy, a proprietária da casa aonde mora, vem
lhe chamar batendo discretamente na porta: “Maria Helena... Ouça bem, minha
filha... Você tem de voltar para a estação de rádio... Estão chamando os
artistas de volta”. Uma buzina toca em frente ao portão da casa. A buzina toca
novamente. Maria Helena não acredita que isto esteja acontecendo. Ela vem até a
janela do sótão e avista o carro de Ardiles. Ele está impaciente e toca a buzina
novamente. Maria Helena se veste com bastante pressa. Nem sequer faz a
maquiagem, pois imagina que fará isto no carro de Ardiles enquanto rumam para a estação de rádio. Quando ela desce as escadarias do sótão, passa voando
pela sala, dá um beijo rápido em Dona Gessy, abre a porta da casa, vê o carro
de Ardiles, mas não vê ninguém no volante, Maria Helena se assusta. “Mas onde
estará o Ardiles?”. Logo ela o avista dentro de uma cabine telefônica próxima. Sem
demora ele volta para o carro. Ardiles está vermelho de raiva. Senta-se ao
volante. Murmura algo incompreensível. Depois fala para Maria Helena: “viu só o
que você fez?”. Ela está atônita: “como?... Eu não fiz nada de errado!”.
Ardiles parece não ter pressa de voltar para a estação de rádio, onde todos os
esperam para que retomem o último capítulo da novela: “todo mundo parece estar
sempre saindo de férias... Não parece?”... Maria Helena não entende onde
Ardiles quer chegar. Ele liga o motor do carro e logo zarpa à toda velocidade
rumo à rodovia local. Maria Helena subitamente entende que está sendo raptada e
que Ardiles está fugindo para não ter de completar o último capítulo da novela.
“Será uma longa viagem até a Flórida”, ele diz com um sorriso enigmático. Maria
Helena sente um tipo de enjôo causado pelo sentimento de revolta e medo. Assim
transtornada. A moça coloca a mão no trinco da porta do carro em movimento e
abre-a, pronta para saltar. Depois ela se arrepende, volta a se ajeitar no
banco do carro, e fecha aquela porta silenciosamente.
Beto
Palaio
Nenhum comentário:
Postar um comentário