LE BLON, MORENA
FLOR E O GOLPE DE ESTADO.
Le Blon apenas folheou o jornal.
Para o que viria logo a seguir. Acomodado. Com o fato de. Sentar-se sozinho no
sofá da sala. Ele semi-acordado. Olhando sem ler o caderno que discorre sobre crimes
políticos. Ao bocejo das seis da manhã. Le Blon estava por demais entretido com
a presença física daquele jornal. Entretanto isto não lhe seria propício. Dormira
ele, noite em claro, entretanto, com Lorene, sua boneca inflável. Antes que ele
próprio percebesse sua esdrúxula situação. A mão do vento contrário na maçaneta
da porta de sua alma. A solidão só arde na face de quem apimenta. O vazio que
apavora aos descontentes. Solitário é o lobo na estepe e o condor nas alturas.
Entretanto. Não há nada de filosófico que sustente o viver apátrida de Le Blon.
Ele próprio um humanista consagrado. Houve esse tempo. No arremedo de fatos
socialmente vultosos. Disposto a conseguir uma profissão de destaque. Le Blon ainda
era jovem e forte e alto e determinado. Quando. Levantava taças com o porte de um
campeão, objetivado a ser carinhoso com as moças casadoiras e bruto com as prostitutas.
Isto em 1964 quando Le Blon acidentalmente agredira, batendo com um taco de
bilhar, uma mulher denominada Morena Flor, outrora tida como deusa naquele
lugar. Esta tola agressão originou-se por motivo torpe. É que Farenheit, o ex-gigolô
da moça agredida, dera dois passos rápidos em direção à figura bêbada de Le
Blon. Este agilmente levantou uma das botas e, deliberadamente, desferiu-a com
toda a sua força e peso, acertando um golpe certeiro no antebraço de Farenheit
que se inclinou ferido em direção ao balcão do bar. Morena Flor estava por ali.
Assistindo a tudo. Ela conhecera Farenheit durante sua breve carreira de
dançarina nas Folias da Urca. Ambos se apaixonaram assim que se viram. O ano
era de 1958. O Brasil acabava de ser consagrado Campeão Mundial de Futebol. Entre
confetes e serpentinas. Havia alegria nas ruas do Rio de Janeiro. Num início de
namoro. Morena Flor foi sendo acariciada por Farenheit desde o tropel
comemorativo da Avenida Central até o sórdido apartamento que ele mantinha nas
cercanias da velha Lapa. Ali ele a mimou com acalorados afetos. Fez-lhe o favor
de retribuir o sexo oral que ela lhe oferecia. Num sessenta-e-nove insano. Morena
Flor gozara pela primeira vez na vida. Ela estivera casada em Belo Horizonte
com um mofino empresário do ramo dos secos e molhados. Ficou ao lado deste
engravatado senhor apenas um mês e meio. Nem sequer fizeram sexo durante a
lua-de-mel, ou nos dias que sucederam o enlace matrimonial. Com isto ela pegou uma
gastura de seu marido. Em arremate a isto. Acabou por fugir com uma amiga de
infância para o Rio de Janeiro. Procuram por uma colocação imediata. Assim. Ambas
foram contratadas como dançarinas aprendizes no Folias da Urca. Mas logo ela
conheceria um malandro por nome Farenheit. Ele brancarrão, estupefaciente,
confiante em si mesmo e sem dinheiro nenhum. Para este homem albino, Morena
Flor entregou os pontos. “Você pode me pedir o que quiser, Farenheit, por você
vou até ao inferno”. Ele mediu as palavras dela e logo a colocou na zona para
lhe dar sustento. Farenheit possuía um passado pouco nobre. Contava com a
coleção de alguns crimes afiançáveis: um por estelionato, dois por assalto a
mão armada, três por aliciamento de menores, quatro por desacato às
autoridades, cinco por incitamento ao meretrício. Mas Morena Flor nem tinha
receios em relação ao passado de Farenheit. O que interessava para ela era que
o ano de 1959 acabava de ser inaugurado e que sua vida iria melhorar. Sem
dúvida que sim. Com sua breve iniciação na arte de vender o próprio corpo, Morena
Flor foi orientada a nunca se apaixonar pelo seu cliente. “Goze se quiser,
minha querida, mas se puder não goze, tá?”, isto lhe disse Farenheit, com cara
de mau, exibindo a cicatriz que trazia no rosto, feita por uma navalhada que
tomara em uma briga de botequim. Entretanto Morena Flor logo ficou escolada em
como acariciar um homem para levá-lo à loucura. Com isto ela conheceu um cavalheiro
que dizia ser advogado e que estava deveras enfastiado de sua verdadeira
esposa, a qual abandonaria prontamente se Morena Flor aceitasse viver com ele. Era
uma dessas conversas chinfrins que discorrem todos os casados no momento de
dividir o travesseiro com outra mulher, mas Morena Flor acreditou nele. Lucas
Alviedo era o nome deste advogado. Ele levou-a a ignorar as leis do meretrício,
quando Morena Flor passou a fazer sexo de graça com este homem, algo deveras
absurdo, pois isto correspondia a enganar Farenheit, até que este descobriu
tudo. O ano era 1960. Morena Flor tentou convencer Lucas Alviedo a deixar de
vez a esposa e fugirem juntos para Belo Horizonte. No entanto Farenheit agiu
com precisão e frieza. Ele seqüestrou Morena Flor, a qual manteve presa no
apartamento da Lapa até que ela ficasse fraca pela má alimentação, condição que
fez com que ela trouxesse à furo uma doença venérea incurável chamada sífilis. Para
o bom entendedor de estórias absurdas. Foi essa mulher sifilítica que, por
acaso, Le Blon agredira em 1964. Ele nem sequer a conhecia de fato. Houve esse
acidente em que Le Blon lhe acertara de raspão com o taco de bilhar quando de
sua briga com Farenheit por motivos de jogatina. Tal como, amiúde, ocorreria
num filme de terceira categoria. Naquele momento em que Le Blon acertou o chute
derrubando Farenheit, houve que Morena Flor tomou as dores de seu antigo gigolô
e se aproximou por detrás de Le Blon, desferindo nele uma breve punhalada. Ocorre
que Morena Flor estava naufragando em trajetória social deveras promíscua. Como uma prostituta
sifilítica viciada em álcool e heroína. Ela portava antecedentes tão terríveis
quanto seu antigo protetor Farenheit. Contudo, para Le Blon, a punhalada que recebera
não seria fatal. A bem da verdade. Ele caiu inapelavelmente. Naquele dia 31 de
Março de 1964. Com aquela estocada. Acabaria por ficar adernado num piso
esfarrapado e sujo. Depois foi levado ao hospital onde acorda pedindo para
voltar para casa. Tudo o que ele quer é reencontrar-se com Lorene, sua boneca
inflável. Num repetido desconexo. Junto à Lorene ele mantinha um romance de textura
obscura e misteriosa. Eis o desfecho absurdamente desumano. Justo neste
ínterim. Le Blon consegue ir para casa e promete para Lorene, sua amante indissolúvel,
que nunca mais vai abandoná-la. Isto somado à sensação de solidão e abandono desta
narrativa. O final da estória é realmente tocante. Le Blon faz amor diariamente
com a sua impecável Lorene. Beija-lhe a boca elástica. Goza em seu interior.
Depois adormece. Vivo como um peixe saudável no aquário. Pronto para sofrer
calado. Na ditadura que se seguiu ao golpe de Estado. Prisioneiros da calvície,
da mesmice, da caretice e da brasileirice canhestra. Avesso aos atavios,
abobado nas suas falsas promessas de liberdade. Ao plano de um militarismo
inconteste. Vigiadíssimos. Dentro daquele clima de um único dia durar por quase
vinte anos. Na falsa ordem que ilude e apenas se desmascara quando a análise
extemporânea investe nos pressupostos. Prisioneiro político do amor abortado na
raiz. Le Blon, o calor adiado, e sua injustificável amante, a geleira em
formato humano.
Beto Palaio
Foto: time campeão mundial de futebol em 1958.
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