VERBO EGO
O ego é um
verbo. Tão intransitivo que por ele nada pode trafegar. Basta um capricho a
mais. Ou ameno temor. Alfinetadas de solidão. Algo um carinho adiado por vinte
anos. Miléia acostumou-se ao muito pouco amor. Para ela o amor era como uma
bandagem, um pano mambembe, que cobre pessimamente ao ferimento. Um sortilégio
para poucos. Enganação para sôfregos. Fabulas que mais desencantam que
orientam. Grandes expectativas para tão pouca oferta. Isto tudo Miléia pensava
do amor. Calhou de ser assim até que Miléia conheceu Canópio. Eles moravam numa
cidade pequena. Claro que Miléia já havia visto Canópio uma vez ou outra. Ou na
avenida principal da cidade. Ou bebendo com amigos. Ou circulando no seu fusca
já um tanto enferrujado. Mas Miléia não tinha amizade declarada por ele. Nada
contra. Apenas que Miléia era mesmo uma reclusa. Apesar de ainda estar na casa
dos trinta anos. Ela pouco saía. Deixava sempre para amanhã se precisasse ir até a cidade. Preferia ficar com sua velha máquina de escrever. Ali o seu
mundo abria-se ao incomensurável. Novidadeira como ninguém. Contadora das mais
estapafúrdias estórias. Sua única companheira. Além da literatura, gentilmente
escrita em um datilografar constante. Era sua cadela que chamava de Loba. Isto
sendo uma homenagem. Pensava Miléia. À escritora inglesa Virgínia Woolf. “Vem
minha linda Loba, chega de ficar me olhando escrever... Agora vamos passear no
jardim”. Pois Loba era uma companheira inseparável. Miléia compartilhava com
ela todos os momentos. Inclusive a cadela tinha uma paciência enorme de
permanecer ao lado de Miléia enquanto ela destinava seu tempo em escrever
frases, textos, pensamentos, poesias e poemas. Parecia que nada poderia romper
esta parceria entre ela e Loba. Nada chegava a corromper esta inocência, ou
perturbar o oscilante manto do silêncio no qual, semana após semana, naquele
cômodo vazio de artifícios, ondulava o chamado distante de um bem-te-vi, o
apitar da fábrica de tecidos, o zumbir dos insetos na ramagem do jardim, um
latido eventual de um outro cão na rua, um grito alegre de criança a perseguir
sua pipa e, no mais, um silêncio profundo envolvia os ternos momentos de Miléia
e Loba. Mas logo um resumo de dor ocorreria. Inesperadamente. Loba desapareceu
numa manhã de Domingo. Miléia se pôs verdadeiramente louca. Ela e Loba eram
como carne e unha. Agora estavam separadas pela primeira vez desde que Loba
ainda era filhote. Meio que sem saber aonde ir. Miléia andou todo o Domingo a
perguntar pela sua Loba. Mas nada da cadela aparecer. Assim, de mãos vazias,
Miléia voltou para casa e não teve ânimo para mais nada. Deixou-se abandonar na
velha cadeira de balanço no pórtico. E ali ela permaneceu. Envolvia-a ao tudo, a
casa vazia, na ausência de Loba, um terrível silêncio. Ela que tinha especial
zelo em manter seu mundo em isolamento, agora estranhava tanto sossego. Miléia
imaginava que Loba estivesse também procurando por ela em algum lugar ao longo
da rodovia, ou no entorno da única lagoa do lugar, ou nas ruas da cidadezinha,
ou nos monturos abandonados no pátio da fábrica de tecidos. Dois dias depois
Miléia estava tentando escrever algo diante de sua escrivaninha quando ouve
passos no quintal. Ela vê pela janela que alguém chega carregando Loba. Esse
alguém era o moço Canópio. A alegria do seu reencontro com Loba se torna
indescritível. Apesar disto um algo mais do que bom pairava no ar. A presença
de um homem tão gentil. O que seria isto? Charme masculino? Retidão de caráter?
Fosse o que fosse Canópio lhe transmitia isso. Miléia fica embevecida e também
deveras agradecida por aquele gesto. “Quer café?... Tem bolinhos que fiz...
Quer?”. Assim, pela primeira vez, um homem entrava naquele espaço da escritora
reclusa. Um tanto surpreso. Canópio recebe festas também de Loba, que retornou
para casa com essa novidade de um homem formoso estar adentrando um dos últimos
redutos de virgindade do município. Miléia estava na cozinha preparando o café.
Mas percebe de longe a alegria de Loba, ao ser acariciada por Canópio. Tão logo
a palavra ''acariciada'' lhe ocorreu, ela a rejeitou. Um verbo ego ainda a
cercava, além do perfume de café recém coado. De tudo o que existe nada é
tão estranho quanto as relações humanas, com suas mudanças e impropriedades. O
doar-se ao outro e os lampejos de uma extraordinária irracionalidade. Naqueles
breves minutos. Miléia tinha certeza de estar ficando deslumbrada, ou algo
assim. Sentia suas pernas bambearem. Começou a escutar sugestões de vozes,
tanto que nem conseguia se concentrar nas xícaras e pires que colocava numa
bandeja. Já na sala de visitas. Ela sentiu um agradável tremor quando percebe o
perfume de um corpo masculino tão próximo, ao indicar a bandeja de café para
Canópio. “Você me deu muita alegria em encontrar a Loba...”, ela disse, ainda
um tanto tímida. Depois completou: “você foi bom para mim, como ninguém poderia
ter sido”. Canópio sorvia o café com um orgulho incontido. Parecia medir as
palavras que iria dizer. Neste intervalo o tiquetaquear do relógio da sala
ganhou de tudo. Mas Canópio logo fala: “posso te perguntar algo?”. Miléia toma
um susto, ela recebera com surpresa aquela pergunta. “Sim, claro”. Ele
depositou a xícara na bandeja e fala: “quer ir ao cinema comigo qualquer dia
desses?”. Era um momento indizível para Miléia. Seu coração parecia bater num
mundo distante. Sua voz não saía de jeito nenhum. Mas ela fez um discreto sim
com a cabeça. E depois sorriu.
Beto Palaio
Colagem: Toyen
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