MATÉRIA DE POESIA
Todas as coisas cujos valores
podem ser disputados no cuspe à distância servem para a poesia. O homem que
possui um pente e uma árvore serve para poesia. Terreno de 10×20, sujo de mato
– os que nele gorjeiam: detritos semoventes, latas, servem para poesia. Um
chevrolé gosmento. Coleção de besouros abstêmios. O bule de Braque sem boca são
bons para poesia. As coisas que não levam a nada têm grande importância. Cada
coisa ordinária é um elemento de estima. Cada coisa sem préstimo tem seu lugar na
poesia ou na geral. O que se encontra em ninho de joão-ferreira: caco de vidro,
grampos, retratos de formatura, servem demais para poesia. As coisas que não
pretendem, como por exemplo: pedras que cheiram água, homens que atravessam
períodos de árvore, se prestam para poesia. Tudo aquilo que nos leva a coisa
nenhuma e que você não pode vender no mercado como, por exemplo, o coração
verde dos pássaros, serve para poesia. As coisas que os líquenes comem –
sapatos, adjetivos – tem muita importância para os pulmões da poesia. Tudo aquilo
que a nossa civilização rejeita, pisa e mija em cima, serve para poesia. Os
loucos de água e estandarte servem demais. O traste é ótimo. O pobre-diabo é
colosso. Tudo que explique o alicate cremoso e o lodo das estrelas serve demais
da conta. Pessoas desimportantes dão para poesia qualquer pessoa ou escada. Tudo
que explique a lagartixa de esteira e a laminação de sabiás é muito importante
para a poesia. O que é bom para o lixo é bom para poesia. Importante
sobremaneira é a palavra repositório; a palavra repositório eu conheço bem: tem
muitas repercussões como um algibe entupido de silêncio sabe a destroços. As
coisas jogadas fora têm grande importância – como um homem jogado fora. Aliás, é
também objeto de poesia saber qual o período médio que um homem jogado
fora pode permanecer na Terra sem nascerem em sua boca as raízes da escória. As
coisa sem importância são bens de poesia, pois é assim que um chevrolé gosmento
chega ao poema, e às andorinhas de junho.
MANUEL DE BARROS
Fragmento 1 do poema de abertura, Matéria de Poesia,
1974
Arte: Antonio Dias, em obra sem título de 1986.
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