RAGNAROK,
O CREPÚSCULO DOS DEUSES
O homem perguntou "quanto
é?" apontando para o carrinho. A moça respondeu: "Não tem mais, tá
vazio".
- "Mas eu vi a fumaça do
gelo quando você abriu a portinha."
- "Sim, tem fumaça de gelo,
mas tá vazio. Não tem mais nenhum picolé".
Ela colocou na cara um ar de
riso congelado e saiu mascarada pelo parque. Só ia tirar o riso no final.
Tempo bom, sol ameno. Não era
inverno ainda. Mas quase. Terec, terec, terec, terec - as rodas nos saibros - e
ela nem queria mesmo o silêncio que não vinha. E o ritmo lhe trazia antigos
rostos conhecidos.
E matutava. "Nada acontece
na vida que a morte não saiba. Dindinha morreu sem saber que o marido lhe
traía, mas na hora de morrer ela adquiriu aquele ar de consciência completa,
brilhante, nos olhos secos e baços, mas cheios de perdão. Nem deu tempo para
ajudá-la na morte, ela morreu antes. Mas uma vez ajudei uma mulher caída e
desorientada na calçada. Ela era perfumada. Só ajudei porque ela era perfumada.
Não era uma mulher, era uma senhora. Diferente dos outros que vejo por aqui.
Todo dia tem nego querendo refrescar a cabeça, faça calor ou frio. Todo dia
esses guerreiros de rua. Operários calejados, cicatrizados, ferro na barriga. E
homens engravatados. Todos me esperam passar. Uns conversam comigo, outros não.
Não faço questão. Alguns soturnos, almas velhas que já viram de tudo e sentiram
todas as tristezas, cansados do mundo. Para eles é só meu trabalho levar gelo.
Gelado. Picolé é muito bom mesmo (ei, menina, de que que tem?). Todo dia. Para
os decepcionados com a sua própria estrada caminhada, os derrotados, cães do
sistema, creme. Outros riem à toa, crianções da cidade, e sem eles o parque
seria mais triste. Novos no espírito, parece que têm o cérebro preservado em
plástico. Riem muito. Morango. Há os que têm um quê de refinados. Falam
baixinho e gesticulam pouco, quase tímidos, almas que parecem pedir para viver
e vão pedir licença para morrer também. Não entendo muito essas almas que já
nascem com culpa. Limão. Abacaxi. Para equilibrar. Para entrar na vida com um
toque de acidez, discernimento e ação. Sabores antigos. Carrego comigo estes
sabores universais e antigos como a Lua. E venho me lembrando de meus mortos.
Minha avó chupava um picolé por dia. O sabor variava. Meu avô não gostava, era
maquinista de trem e era viciado em café, os dentes remanescentes escurecidos.
Carrego junto os meus mortos todos os dias. Tia Mariinha, rabugenta, morreu de
algo no fígado; tio Pedro, o louco, morreu no estrangeiro; tio Alcides e tia
Laura, velhinhos gentis, apagaram como velas de aniversário; tia Stella,
acidentou-se; o primo Zizinho, que não parava em emprego nenhum, suicidou-se. A
minha mãe. Lembrar da mãe morta é o arrependimento do que não sou. É a morte de
sonho atrás de sonho não nascidos. Abortados. Sem mãe. Eu sei que o amor após a
morte se intensifica, puro da matéria, mas não livra ninguém das lembranças
porque a morte carrega com ela cabeças em fogo, ex-votos empoeirados, templos
esquecidos, documentos vencidos."
- "Mocinha, de que que
tem?"
- "Nada, já acabou tudo, tô
indo pra casa. E vai escurecer rapidinho."
- "Você está todo dia aqui?
Qual é seu nome?"
- "Venho, sim, todos os
dias. Fico o dia inteiro. Até o sol quase ir embora. Meu nome é Valquíria, pode
me procurar. Ou eu te acho."
Jane
Chiesse Zandonadi
Arte: Pierre Alechinsky –1977
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