QUATRO, TRÊS, DOIS, UM...
No areal do mundo. Retirei da sola de um pé a areia. Agora resta o outro pé... Agora resta o outro pé... Agora resta o outro... Estávamos num bosque quando a fonte cantou suas eternidades. Uma maçã verde caiu no meio do caminho. O patrão, Sr. Juízo, nem saberá que comemos dessa maçã. O Sr. Juízo havia criado os primeiros seres humanos, deu-lhes os nomes de Solano e Trinidade. Ambos latinos. Num mundo sem réguas T, jornalistas, cuecas, sirenes e urubus. Mas o Sr. Juízo nos tratava, via Solano e Trinidade, como se fossemos do Terceiro Mundo. E nós não tínhamos a mínima idéia, a mais vaga que seja, do que seria um “terceiro mundo”. Apenas Solano e Trinidade existiam no mundo inteiro. “Aqui é aqui mesmo”, pensou Solano. Fazendo seu trajeto sozinho para casa. E sua casa era onde estava Trinidade. Ambos se atraíam como abelhas ao mel. O cacho de viver em profusão. Cascas, sempre novas, no ninho. O jamais do impresso calcinado, velho, despachado para os cinzentos mortais, o pó ao pó, nos vespais. Existirmos. Nem lágrima, nem matéria fina. Retinas sim, não conflitadas. Intactas. Cristalinas. Sua visão, a de Solano, sua, minha e nossa, das muitas vezes, ter de, secar as sementes e, também, as flores da tentação, que por ali vigiavam. Sementes se abrem com a enxó. Glabras. Ao bodum do araticum, num só aceno, nenhum. Tentação se debela com banho gelado de cachoeira. Semente que não bate no chão, não vai criar raízes, plantar-se, florescer-se. Tentação que não se enxaguava em água de cachoeira, essa é verdadeira, assim apenas insinuada, e ainda não se sabia de seus desenlaces. E o que poderia acontecer se não lavássemos a tentação? Tudo era encantado. Uma rolinha fogo-apagou cantava, um peixe-frito cantava. Isso nós vimos antes da liberdade, rasgada, de céu, e os mono-lábios de Trinidade, no mais, lisos como as divas da lilás orquídea, em direção à coxa, um anjo, sua visão mais bela, de cismas, nem um. Solano, dirigindo-se, quis. E desmontou a felicidade. Ao entulho dos ex. “Eu tô dizendu... Possamos ter, estar, ao enterro do coração de mudanças. O fio do sem goma. Mais quero, com tua flor nacarada, rosa-menina, ao cio, por esmero encarnada, e a partida”. No meio do caminho tem uma maçã verde. Suas pedras, muitas minhas, nenhuma. Ele, Solano, só no presente, no ter de procurar pelos serviçais, uma cachoeira gelada, momentos de limpeza plena, estes para sempre, preto e branco, como uma xilogravura, por dentro. “Quê?”. Um objeto de cores, de luz, corações partidos, emoções, audiência, e espalhar rumores através de cabeças de bonecas falantes. A realidade arfa onde o sono bateu no homem. Tudo tudo tudo é nação dormideira. Um farfalhar de sono acordado. Flautas tocando trinados de viuvinhas. “E encontrei você aqui. Abrace-me, te pedi. Fiquei ali no chão. Vencido e vencedor. Transitava entre flores. A consciência em Lucy. In the Sky with Diamonds. E você também se ajoelhou. No chão de terra seca. Na frente da porta escancarada. Seu maior receio era o cão. Da mentira. Do falsa emoção. Da ausência de sucesso. Do corrimão sem degraus. Da lágrima incontida. Do caminho sem retorno. Do amar sem retribuição. Da chuva glacial. Do país sem governo. Mas nada aconteceu. E o cão se afastou. Em direção à cidade. Que não muito longe dali. Já acendia suas luzes”. E Trinidade respondeu a Solano: “Ainda me diz, por quem choramos? O que quer dizer amar?”... Trinidade perguntava isto sinceramente. Crendo 100%. Que na cacimba da verdade. Toda poiesis não basta, para a imensidão do revelar, a poesia é bem diminuta. A palavra pecou, ao comer da maçã, do conhecimento. A palavra surgiu, poeira no redemoinho, da clara fonte. A palavra sussurra, coisas revolucionárias, ao ouvido ancestral. A palavra é algo, que acontece quando vivenciamos, outras coisas. As palavras se esmagam, nas entrelinhas, a procura da luz. “Você nunca me ofereceu nada. Somente suas piadinhas. E, no meio dessa chatice toda, você vem pedindo o divórcio”, Solano está descendo as escadarias do prédio de apartamentos onde moram. Trinidade vem na sacada se abraçando com todas as camisas de Solano que pode pegar no guarda-roupas. Ela joga as camisas quando o vê chegar à calçada. Um vôo de cortar o coração. Solano entra no carro, enquanto do céu chovem as suas camisas. “Aqui vou eu, mais uma vez”, Solano liga seu carro e vai embora. Em tudo há uma contagem regressiva: quatro, três, dois, um... “Pode ser apenas equívoco. Ficamos de nos falar. Embora sem compromisso. Quando aquilo aconteceu. Estávamos defrontes a um muro. Sem saída”, Solando tenta se explicar. Ao fato real. Tijolo por tijolo. Erguido solenemente. Por mãos humanas. Divisor concreto. De vidas que se separam. Aqui. Corta-se o tempo em dois. Como em talho de gilete. Um dos tempos é acéfalo. O outro não tem pés. E ambos passam por passar...
Beto Palaio
Ilustração: Birger Jersch