dezembro 10, 2015


Perdida na escola

Há um tempo atrás
Velho demais para mim
E um tempo para frente
Novo a não reconhecer

Este verso estranho e
Andrógino
Fica no meio

Nem é aqui
Que me acho.

Adriane Garcia

Arte: Pintura de Marlene Dumas

agosto 21, 2015


AS CORES DA CIDADE

Cidades coloniais teriam um aspecto branco e limpo, remetendo ao Algarve e ao Mediterrâneo. Não se pintavam as casas, caiavam-se: além de bonito e luminoso, contribuía, ao menos parcialmente, para combater parasitas e insetos alojados nas frestas das precárias taipas. De resto, essa provável beleza era ilusória: essas cidades eram sujas e fedidas. Para os nossos padrões contemporâneos, até mesmo inabitáveis. Mas – ainda se vê nas construções restauradas – o branco das alvenarias, em contraste como verde ou o azul intensos, aplicados às madeiras, contribuía para homogeneizar a paisagem urbana. Essas cores, à base de óleo de linhaça, protegiam as madeiras da umidade.

Quando, a partir do início do século XIX esses padrões começaram a mudar, outros aglutinantes e outras cores passam a ser usados. Mas, basicamente, os tons pastel passam a predominar: o rosa-velho; o amarelo-canário, o verde alface e o que hoje chamamos de azul-calcinha. Cores ainda bastante usadas, predominantes mesmo, externa como internamente. Qualquer pessoa – que tenha idade para tanto, é claro – lembra dos interiores dos anos sessenta, com móveis pé-de-palito e as paredes do ambiente, cada uma em uma das cores mencionadas.

Nos primórdios do Modernismo, sob a vigência do art-déco, tudo devia ser industrializado – ou pelo menos, ter essa aparência. Usou-se então um revestimento à base de pedra moída, que supostamente não precisaria ser pintado: lavar e escovar seria suficiente. A cor escura – cinza grafite – era compensada pelos diminutos grãos brilhantes de mica contidos na pedra. Atualmente, temos o cinza-poluição, que encobre todas as cores...As tintas contemporâneas, com várias bases sintéticas, são inquestionavelmente mais duráveis e eficientes do ponto de vista higiênico. A ilimitada paleta de cores dá ao comprador uma grande liberdade de escolha quanto à cor e à tonalidade – o que às vezes é usado, digamos, com uma certa falta de noção.

Pessoas que provavelmente viveram os anos da “estética psicodélica” dos anos sessenta e setenta, pintam suas casas de amarelo-limão, rosa-choque e azul “Lucy-in-the-sky-with-diamonds”...Bem, para essas pessoas, o resultado é apenas alegre e vistoso.Como dizia o grande Rosa – que já tinha nome de cor – “pão pães, questão de opiniães”. De qualquer forma, esse aspecto da arquitetura é o mais fácil de neutralizar quando não agrada: é só pintar de novo. Ao contrário de certos delírios ornamentais, que são desesperadoramente permanentes.

KEY IMAGUIRE JR


O autor do texto é arquiteto e professor de arquitetura na Universidade Federal do Paraná.

julho 22, 2015




QUANDO TIVE PRESSA ME DEU PRECE. 
QUANDO TIVE PRECE ME DEU PRESSA.
(Beto Palaio)

julho 04, 2015




O presente estaria cheio de todos os futuros, se já o passado não projetasse sobre ele uma história. Mas, infelizmente, um único passado propõe um único futuro - projeta-o diante de nós como um ponto infinito sobre o espaço. 


André Gide

Ilustração de Jean-Michel Folon

fevereiro 16, 2015

O LIVRO DO DESASSOSSEGO


Pasmo sempre quando acabo qualquer coisa. Pasmo e desolo-me. O meu instinto de perfeição deveria inibir-me de acabar; deveria inibir-me até de dar começo. Mas distraio-me e faço. O que consigo é um produto, em mim, não de uma aplicação de vontade, mas de uma cedência dela. Começo porque não tenho força para pensar; acabo porque não tenho alma para suspender. Este livro é a minha cobardia.

A razão por que tantas vezes interrompo um pensamento com um trecho de paisagem, que de algum modo se integra no esquema, real ou suposto, das minhas impressões, é que essa paisagem é uma porta por onde fujo ao conhecimento da minha impotência criadora. Tenho a necessidade, em meio das conversas comigo que formam as palavras deste livro, de falar de repente com outra pessoa, e dirijo-me à luz que paira, como agora, sobre os telhados das casas, que parecem molhados de tê-la de lado; ao agitar brando das árvores altas na encosta citadina, que parecem perto, numa possibilidade de desabamento mudo; aos cartazes sobrepostos das casas ingremadas, com janelas por letras onde o sol morto doira goma húmida.

Por que escrevo, se não escrevo melhor? Mas que seria de mim se não escrevesse o que consigo escrever, por inferior a mim mesmo que nisso seja? Sou um plebeu da aspiração, porque tento realizar; não ouso o silêncio como quem receia um quarto escuro. Sou como os que prezam a medalha mais que o esforço, e gozam a glória na peliça.

Para mim, escrever é desprezar-me; mas não posso deixar de escrever. Escrever é como a droga que repugno e tomo, o vício que desprezo e em que vivo. Há venenos necessários, e há-os subtilíssimos, compostos de ingredientes da alma, ervas colhidas nos recantos das ruínas dos sonhos, papoilas negras achadas ao pé das sepulturas [...], folhas longas de árvores obscenas que agitam os ramos nas margens ouvidas dos rios infernais da alma.

Escrever, sim, é perder-me, mas todos se perdem, porque tudo é perda. Porém eu perco-me sem alegria, não como o rio na foz para que nasceu incógnito, mas como o lago feito na praia pela maré alta, e cuja água sumida nunca mais regressa ao mar.

Fernando Pessoa

fevereiro 07, 2015


CARTILHA

A

Não quero meu poema apenas pedra
nem seu avesso explicado
nas mesas de operação.

E

Não quero os sóis que praticam
as mil fotos do objeto, a noite sempre
nascendo da noite em revelação.
Preciso
da palavra que me vista não
da memória do susto
mas da véspera do trapezista.

I

A sede neste deserto
não me conduz ao mirante, ou antes:
olho selvagem.
A sede ultrapassa a sede onde
renasce o objeto, sua
resposta miragem.

O

Há seres insuspeitados no gênio
deste cavalo.
A lucidez desta pedra oculta cada
manhã
seu cadáver delicado, este mistério
que pulsa nos olhos da borboleta.

U

Quero meu poema apenas pedra:
ou seu fantasma emergindo
por onde dentros e foras.

CACASO