maio 27, 2014



A PRIMEIRA VEZ É SEMPRE INESQUECÍVEL


Forcejamos. Eu forcejei. Ela forcejou. Mas naquela noite não conseguíamos fazer amor. Quer marimba mais plangente que o sexo inconcluso? Logo adivinhamos de falar de nossas vidas pessoais, abrir nossos corações e revisitar o passado. Eu viajei na maionese. Contei xixicas de quase nada. Falei de uma ocasião em que mostrei para minha bisavó onde escondiam dela a garrafa de vinho. “Olha aqui, vózinha, desta vez eles colocaram debaixo da pia”. Com isto minha bisavó encheu um copo de vinho, depois ficou num canto do alpendre sorvendo seu tesouro mais sagrado. A seguir revelei que meu primeiro beijo tinha sido aos dez anos de idade, no rosto de uma garota, minha vizinha na época. Falei que o rosto dela estava cheio de espinhas e na hora peguei um nojo de beijar fosse quem fosse. Ouvindo isso, a minha bela parceira demonstrou ter se aborrecido por esta revelação mais que pueril. No entanto não foi para criticar minha postura de menino zangão. Ao contrário disso. A seguir ela falou claramente. “Minha primeira experiência sexual foi com um vizinho de sessenta anos”. Ambos rimos. Mas logo ela começou a revelar aquilo nos detalhes. “Foi estranho demais”, ela disse. “O problema é que na janela de meu quarto havia um defeito com a cortina. Ela não fechava convenientemente. Assim aconteceu de uma tarde eu ficar totalmente nua e desta forma fui vista por esse vizinho. Para minha surpresa de menina-moça ele não se portou como um intruso. Antes me fez um sinal de que estava ali por acaso, depois colocou sobre seu rosto, de forma pudica, uma capa de disco—o disco era Rubber Soul dos Beatles—e fez sinal com a outra mão para que eu fechasse a minha janela. No momento em que fechei a janela eu senti que ele estava ainda acolá, na janela dele, me esperando para falar algo. Coloquei uma blusa e abri a janela. Para minha definitiva surpresa ele estava agora com uma rosa colocada diante do rosto e, por detrás daquela rosa, ele sorria”. Ouvi a revelação dela com os olhos arregalados. Preguiçosamente acomodado nos travesseiros eu lhe disse que aquilo era muito brega. Mas ela logo me fez calar. “Não foi algo brega não. Quando ele colocou aquela rosa diante do rosto ele me ganhou no ato”. Às vezes as pessoas tomam estradas que apreciam sobremaneira, especialmente se o caminho for de ida e volta. Criam ali suas preferências pessoais. Não falo que isto seja algo para se preocupar. Todos agem desta forma. Sábados e domingos são dias sagrados para aqueles que nada esperam da vida. Pelo menos era o que pensava até ler um dos romances da escritora Rose Ridge. Ah, como venerei Rose Ridge na minha juventude! Ela que parecia tocar para mim uma música indizível. Levava-me a viajar num passeio admirável. Eu sempre fiquei absorto e infalivelmente envolvido pelas aventuras descritas de maneira exemplar por Rose Ridge. Com ressalvas, devo confessar agora para minha amante, que Rose Ridge passava longe dos detalhes do amor praticado entre seus personagens. Havia naquelas páginas um algo refrão, uma instância aquém do mundo real. Contudo, aliás. Revelações literárias à parte, a minha concubina estava era aflita por contar detalhes do seu caso com o vizinho de sessenta anos. No entanto. Indo e vindo nas lembranças que eu tinha dos livros de Rose Ridge, não consentia que ela entrasse nos detalhes, antes dei de ombros. Ela magoou. Fingiu que dormia. O assunto parecia perdido para sempre. Até que ela falou claramente. “Você fica tentando fugir da realidade para se esconder na literatura. Esses livros nunca vão resolver o que deve ser resolvido na vida real. Entende?”. Fácil para ela dizer isso. “Mas você já leu algo de Rose Ridge?”. Perguntei eu, algo inocente. Ela fez um sinal de enfado com uma das mãos agitando como se estivesse se despedindo de qualquer tipo de conversa. Então a surpreendi. “Você pelo menos poderia me levar contigo quando for entrar na casa do seu vizinho e me mostrar como fizeram seu primeiro sexo autorizado”. Ela então fingiu que estava atuando no teatro ou nas novelas em que trabalhava. Sim, por acaso não contei ainda que minha amantezinha era francesa e uma excelente atriz? Pois conto agora. Para ser realista com essa trama amigável e reveladora. Minha namorada pediu para eu sair do quarto e entrar de novo quando ela chamasse. Ri disso. Não iria fazer parte dessa pantomima. Mas subitamente meu cérebro congelou. Brincadeiras francesas me interessam, e minha adorada francesinha estava por demais convincente, diga-se, aliás, excepcionalmente convincente. Então saí do quarto e fiquei esperando. Como uma criança que aguarda o chamado do esconde-esconde após uma contagem de um a dez. Ela, depois de algum tempo, me autorizou a entrar. “Pode vir agora!”. Assim que entrei no quarto eu tomei uma surpresa. Ela estava novamente vestida e fizera o make-up. Estava com batom recém aplicado. Seus cabelos ajeitados num juvenil rabo-de-cavalo. E, ao mais, ela se produziu com uma minissaia xadrez e trazia uma blusa branca que exibia um recorte acima dos seios de forma bastante sensual. Parecia mesmo uma jovenzinha de não mais de dezesseis anos. “Mas o que é isso?”. Perguntei. Ela rapidamente colocou o dedo em riste sobre seus lábios. “Shhh!”. Era hora de fazer silêncio. Então obedeci a seu comando. Foi quando ela levantou aos poucos sua minissaia e revelou que estava sem calcinhas. Por tudo que é mais sagrado. A minha garota francesa me deixou absolutamente louco para fazer amor com ela. E foi o que fizemos. Então a ficha caiu. Claro que sim! Havia sido daquela maneira que ela se oferecera para iniciar-se em sua primeira transa. Foi exatamente assim que ela conquistou seu vizinho para sua aventura inicial no amor consentido. 


Beto Palaio

maio 23, 2014



CHOVE EM SANTIAGO DO CHILE.


Chove, chove, chove. Chove para caralho! Num dia desses o helicóptero da polícia ficou parado no ar, como que estacionado, bem em cima de minha casa. Naquela prontidão sem fim. Ventania que as hélices causavam. Havia uma mangueira no quintal que deixou cair todas as mangas maduras e também as de vez. Os verdadeiros terroristas buscavam por pessoas imaculadas. Caça e caçadores ficam frente a frente. Marta correu ligar para um advogado amigo, o qual vinha a ser primo do primo de um amigo da prima dela. Esperei que ela terminasse a ligação, não confiava na lei, muito menos em advogados, sobretudo na situação em que me encontrava. Queria ligar para alguém do Partido Comunista Brasileiro. Pedir conselho. Dizer que estava a disposição deles para me exilarem no Chile, ou em Cuba, ou na Argélia: fudido por fudido, fudido e meio. Eu era apenas mais um cabra marcado para morrer. Tinha ouvido falar de presos que eram torturados barbaramente, nem queria pensar no sufoco que isso seria. Quis fugir dessa possibilidade de ser esfolado num porão de delegacia. Sabe-se lá o que se passa na cabeça desses carniceiros...

Estou dispensando vaginas. Em outras palavras. Matei você dentro de mim. Pensei em escrever isto para Marta. Mas a minha mão está fria. Não há uma viva alma nesta rua deserta em Santiago do Chile. Vez por outra eu ligo o radinho de pilha. Uma canção inca toca como um lamento. Flauta sem cavaquinho. Vê-se que estou bem longe do Brasil. Coisa ou cousa? Calango ou calangro? Toicinho ou toucinho? Queria poder descrever as coisas brasileiras que mais sinto falta. Marta me pareceu algo inesperadamente lúdico. Como uma tenra carne apetitosa que se torna, subitamente, em ser humano. Imagino-a nua. Marta entra pela janela do banheiro. Ajeita minha mão em direção ao mastro convulso que se tornara meu pênis. Marta me beija. Fecho bem os olhos enquanto ela me beija. Sinto minhas mãos deslizarem pelas suas meias de seda quando nos conhecemos naquele cinema de bairro. Eu toco o cetim macio que oculta o maior tesouro que Marta me oferece agora. Neste momento. Um chupão, um ardor, uma vontade de me aprofundar definitivamente dentro de Marta. Ela sussurra que me adora. Pede para que eu goze junto com ela. E eu vou. Vou indo. Vou indo. Vou indo. E gozo profusamente dentro de Marta que logo vejo ser somente a palma de minha mão.

Se você confunde seu amor com cheiro de esperma. Que posso fazer? Minhas necessidades são diversas das tuas. Se não procuro nos braços de outro, onde encontrarei o amor? Recebi uma carta de Marta um dia desses. Quase quatro anos exilado no Chile, nem sei mais o que dizer a ela. Arranho no portunhól quando se trata de uma comunicação com alguém por aqui. Uma chilena do Partido Comunista foi com minha cara. Onde encontrarei o amor? Fica o dito pelo não dito. Faça o que digo, mas não faça o que eu faço. E eu? Eu tenho feito o que posso. Doa a quem doer. Você acha Marta que estou aqui exilado como um veterano de guerra? Bem o contrário disso. Fui proibido de voltar para meu país porque evitei fazer uma guerra. Ideologias todos têm. Volto a me incomodar com isto. A quem serve um cidadão como eu estar vetado para o trabalho útil e progressista? Dia desses um membro do partido me falou que o trabalho nem sempre enobrece uma pessoa. Quer saber, Marta? Tomei uma birra, um entojo, desses comunistas. Pensei em escrever diretamente para o presidente da república do Brasil e confessar isto a ele. Quem sabe eu receba um indulto de Natal, uma permissão para que veja o pôr-do-sol no meu país, que é tão meu quanto dele. Com o indulto eu me vejo até sentado numa praia do Rio de Janeiro que idealizo cálida e receptiva. Quanto aos meus vícios pessoais, isto não teria coragem de revelar ao presidente, inclusive da minha pobreza de espírito em debelá-los. Quer saber mesmo? Acho que chegou a hora da verdade. Posso te pedir uma coisa? Tente viver a sua vida, e não se preocupe mais comigo. Vaya com Dios, o que mais posso dizer agora?

Será a realidade um mesclado? Será? Espírito e corpo? Basbaques que se lixem. Chovia sem parar em Santiago do Chile. Foi neste dia frio e triste que tive a visão do fantasma de Crespo Aguiar, meu avô. Uma experiência para lá de rica. Um embate milionário, eu diria, com os fatos oriundos de além-túmulo. Meu avô surgiu para mim desta forma, na penumbra desse dia frio como se fosse uma bandeira desfraldada. Tomou conta de um canto do quarto. Como um farol. Brilhava. Mais parecia uma mentira em que eu divagava. Mas ele me falou do Capitão Lamarca. Disse isto como se faltassem assuntos brasileiros que me completassem. Logo agora que decidi abandonar o ideário comunista. Surge para mim esse espectro de Crespo Aguiar, meu avô, que me causou certo incômodo, mas não medo, e vem contar certos causos ditos verídicos, afirmava Crespo, das entrelinhas de momentos contraditórios vividos no submundo da ditadura por Carlos Lamarca. Anjos e aeronaves alienígenas não me causariam tanto desconforto quanto ouvir meu avô discorrer fatos que ele ouvira ao pé de uma fogueira espiritual, diretamente do mais temido terrorista que jamais houvera no Brasil. Aquele culto, um santuário, que dediquei ao ouvir fatos discorridos por dias e dias. Até que disse ao meu avô que não queria mais ouvir dessas arengas revolucionárias. Ele que se materializasse com outras cartilhas. Para mim bastava o que já houvera dito. Quem sabe ele ficara zangado. Ou trocou de mal comigo. O certo é que. Por alguns dias, Crespo Aguiar, meu avô, desaparecera. Mas uma tarde, quase sem brilho, ele surgiu novamente. Desta vez estava sentado no sofá e trazia ao lado uma antiga conhecida de infância, com quem convivi no bairro de Pinheiros, onde cresci. Esta amiguinha havia morrido, em longínquos dias, de sarampo mal curado. Foi Aninha, essa menina, quem falou comigo. Meu avô Crespo só fazia ouvir. Disse Aninha que estava ali para me dar algum conforto na solidão em que vivia. Chamou-me de “porqueira”, depois de “barra limpa”, depois de “cara legal”. Depois conversamos de fato. E outros fantasmas foram surgindo. Sentavam-se ao redor. Todos bem brasileiros. Meu avô estava feliz. Parece que desta vez acertava. Ele finalmente estava conseguindo transferir todo o antigo bairro de Pinheiros para dentro da minha sala em Santiago do Chile.



Beto Palaio