fevereiro 16, 2015

O LIVRO DO DESASSOSSEGO


Pasmo sempre quando acabo qualquer coisa. Pasmo e desolo-me. O meu instinto de perfeição deveria inibir-me de acabar; deveria inibir-me até de dar começo. Mas distraio-me e faço. O que consigo é um produto, em mim, não de uma aplicação de vontade, mas de uma cedência dela. Começo porque não tenho força para pensar; acabo porque não tenho alma para suspender. Este livro é a minha cobardia.

A razão por que tantas vezes interrompo um pensamento com um trecho de paisagem, que de algum modo se integra no esquema, real ou suposto, das minhas impressões, é que essa paisagem é uma porta por onde fujo ao conhecimento da minha impotência criadora. Tenho a necessidade, em meio das conversas comigo que formam as palavras deste livro, de falar de repente com outra pessoa, e dirijo-me à luz que paira, como agora, sobre os telhados das casas, que parecem molhados de tê-la de lado; ao agitar brando das árvores altas na encosta citadina, que parecem perto, numa possibilidade de desabamento mudo; aos cartazes sobrepostos das casas ingremadas, com janelas por letras onde o sol morto doira goma húmida.

Por que escrevo, se não escrevo melhor? Mas que seria de mim se não escrevesse o que consigo escrever, por inferior a mim mesmo que nisso seja? Sou um plebeu da aspiração, porque tento realizar; não ouso o silêncio como quem receia um quarto escuro. Sou como os que prezam a medalha mais que o esforço, e gozam a glória na peliça.

Para mim, escrever é desprezar-me; mas não posso deixar de escrever. Escrever é como a droga que repugno e tomo, o vício que desprezo e em que vivo. Há venenos necessários, e há-os subtilíssimos, compostos de ingredientes da alma, ervas colhidas nos recantos das ruínas dos sonhos, papoilas negras achadas ao pé das sepulturas [...], folhas longas de árvores obscenas que agitam os ramos nas margens ouvidas dos rios infernais da alma.

Escrever, sim, é perder-me, mas todos se perdem, porque tudo é perda. Porém eu perco-me sem alegria, não como o rio na foz para que nasceu incógnito, mas como o lago feito na praia pela maré alta, e cuja água sumida nunca mais regressa ao mar.

Fernando Pessoa

fevereiro 07, 2015


CARTILHA

A

Não quero meu poema apenas pedra
nem seu avesso explicado
nas mesas de operação.

E

Não quero os sóis que praticam
as mil fotos do objeto, a noite sempre
nascendo da noite em revelação.
Preciso
da palavra que me vista não
da memória do susto
mas da véspera do trapezista.

I

A sede neste deserto
não me conduz ao mirante, ou antes:
olho selvagem.
A sede ultrapassa a sede onde
renasce o objeto, sua
resposta miragem.

O

Há seres insuspeitados no gênio
deste cavalo.
A lucidez desta pedra oculta cada
manhã
seu cadáver delicado, este mistério
que pulsa nos olhos da borboleta.

U

Quero meu poema apenas pedra:
ou seu fantasma emergindo
por onde dentros e foras.

CACASO