março 31, 2013



LE BLON, MORENA FLOR E O GOLPE DE ESTADO.

Le Blon apenas folheou o jornal. Para o que viria logo a seguir. Acomodado. Com o fato de. Sentar-se sozinho no sofá da sala. Ele semi-acordado. Olhando sem ler o caderno que discorre sobre crimes políticos. Ao bocejo das seis da manhã. Le Blon estava por demais entretido com a presença física daquele jornal. Entretanto isto não lhe seria propício. Dormira ele, noite em claro, entretanto, com Lorene, sua boneca inflável. Antes que ele próprio percebesse sua esdrúxula situação. A mão do vento contrário na maçaneta da porta de sua alma. A solidão só arde na face de quem apimenta. O vazio que apavora aos descontentes. Solitário é o lobo na estepe e o condor nas alturas. Entretanto. Não há nada de filosófico que sustente o viver apátrida de Le Blon. Ele próprio um humanista consagrado. Houve esse tempo. No arremedo de fatos socialmente vultosos. Disposto a conseguir uma profissão de destaque. Le Blon ainda era jovem e forte e alto e determinado. Quando. Levantava taças com o porte de um campeão, objetivado a ser carinhoso com as moças casadoiras e bruto com as prostitutas. Isto em 1964 quando Le Blon acidentalmente agredira, batendo com um taco de bilhar, uma mulher denominada Morena Flor, outrora tida como deusa naquele lugar. Esta tola agressão originou-se por motivo torpe. É que Farenheit, o ex-gigolô da moça agredida, dera dois passos rápidos em direção à figura bêbada de Le Blon. Este agilmente levantou uma das botas e, deliberadamente, desferiu-a com toda a sua força e peso, acertando um golpe certeiro no antebraço de Farenheit que se inclinou ferido em direção ao balcão do bar. Morena Flor estava por ali. Assistindo a tudo. Ela conhecera Farenheit durante sua breve carreira de dançarina nas Folias da Urca. Ambos se apaixonaram assim que se viram. O ano era de 1958. O Brasil acabava de ser consagrado Campeão Mundial de Futebol. Entre confetes e serpentinas. Havia alegria nas ruas do Rio de Janeiro. Num início de namoro. Morena Flor foi sendo acariciada por Farenheit desde o tropel comemorativo da Avenida Central até o sórdido apartamento que ele mantinha nas cercanias da velha Lapa. Ali ele a mimou com acalorados afetos. Fez-lhe o favor de retribuir o sexo oral que ela lhe oferecia. Num sessenta-e-nove insano. Morena Flor gozara pela primeira vez na vida. Ela estivera casada em Belo Horizonte com um mofino empresário do ramo dos secos e molhados. Ficou ao lado deste engravatado senhor apenas um mês e meio. Nem sequer fizeram sexo durante a lua-de-mel, ou nos dias que sucederam o enlace matrimonial. Com isto ela pegou uma gastura de seu marido. Em arremate a isto. Acabou por fugir com uma amiga de infância para o Rio de Janeiro. Procuram por uma colocação imediata. Assim. Ambas foram contratadas como dançarinas aprendizes no Folias da Urca. Mas logo ela conheceria um malandro por nome Farenheit. Ele brancarrão, estupefaciente, confiante em si mesmo e sem dinheiro nenhum. Para este homem albino, Morena Flor entregou os pontos. “Você pode me pedir o que quiser, Farenheit, por você vou até ao inferno”. Ele mediu as palavras dela e logo a colocou na zona para lhe dar sustento. Farenheit possuía um passado pouco nobre. Contava com a coleção de alguns crimes afiançáveis: um por estelionato, dois por assalto a mão armada, três por aliciamento de menores, quatro por desacato às autoridades, cinco por incitamento ao meretrício. Mas Morena Flor nem tinha receios em relação ao passado de Farenheit. O que interessava para ela era que o ano de 1959 acabava de ser inaugurado e que sua vida iria melhorar. Sem dúvida que sim. Com sua breve iniciação na arte de vender o próprio corpo, Morena Flor foi orientada a nunca se apaixonar pelo seu cliente. “Goze se quiser, minha querida, mas se puder não goze, tá?”, isto lhe disse Farenheit, com cara de mau, exibindo a cicatriz que trazia no rosto, feita por uma navalhada que tomara em uma briga de botequim. Entretanto Morena Flor logo ficou escolada em como acariciar um homem para levá-lo à loucura. Com isto ela conheceu um cavalheiro que dizia ser advogado e que estava deveras enfastiado de sua verdadeira esposa, a qual abandonaria prontamente se Morena Flor aceitasse viver com ele. Era uma dessas conversas chinfrins que discorrem todos os casados no momento de dividir o travesseiro com outra mulher, mas Morena Flor acreditou nele. Lucas Alviedo era o nome deste advogado. Ele levou-a a ignorar as leis do meretrício, quando Morena Flor passou a fazer sexo de graça com este homem, algo deveras absurdo, pois isto correspondia a enganar Farenheit, até que este descobriu tudo. O ano era 1960. Morena Flor tentou convencer Lucas Alviedo a deixar de vez a esposa e fugirem juntos para Belo Horizonte. No entanto Farenheit agiu com precisão e frieza. Ele seqüestrou Morena Flor, a qual manteve presa no apartamento da Lapa até que ela ficasse fraca pela má alimentação, condição que fez com que ela trouxesse à furo uma doença venérea incurável chamada sífilis. Para o bom entendedor de estórias absurdas. Foi essa mulher sifilítica que, por acaso, Le Blon agredira em 1964. Ele nem sequer a conhecia de fato. Houve esse acidente em que Le Blon lhe acertara de raspão com o taco de bilhar quando de sua briga com Farenheit por motivos de jogatina. Tal como, amiúde, ocorreria num filme de terceira categoria. Naquele momento em que Le Blon acertou o chute derrubando Farenheit, houve que Morena Flor tomou as dores de seu antigo gigolô e se aproximou por detrás de Le Blon, desferindo nele uma breve punhalada. Ocorre que Morena Flor estava naufragando em trajetória social deveras promíscua. Como uma prostituta sifilítica viciada em álcool e heroína. Ela portava antecedentes tão terríveis quanto seu antigo protetor Farenheit. Contudo, para Le Blon, a punhalada que recebera não seria fatal. A bem da verdade. Ele caiu inapelavelmente. Naquele dia 31 de Março de 1964. Com aquela estocada. Acabaria por ficar adernado num piso esfarrapado e sujo. Depois foi levado ao hospital onde acorda pedindo para voltar para casa. Tudo o que ele quer é reencontrar-se com Lorene, sua boneca inflável. Num repetido desconexo. Junto à Lorene ele mantinha um romance de textura obscura e misteriosa. Eis o desfecho absurdamente desumano. Justo neste ínterim. Le Blon consegue ir para casa e promete para Lorene, sua amante indissolúvel, que nunca mais vai abandoná-la. Isto somado à sensação de solidão e abandono desta narrativa. O final da estória é realmente tocante. Le Blon faz amor diariamente com a sua impecável Lorene. Beija-lhe a boca elástica. Goza em seu interior. Depois adormece. Vivo como um peixe saudável no aquário. Pronto para sofrer calado. Na ditadura que se seguiu ao golpe de Estado. Prisioneiros da calvície, da mesmice, da caretice e da brasileirice canhestra. Avesso aos atavios, abobado nas suas falsas promessas de liberdade. Ao plano de um militarismo inconteste. Vigiadíssimos. Dentro daquele clima de um único dia durar por quase vinte anos. Na falsa ordem que ilude e apenas se desmascara quando a análise extemporânea investe nos pressupostos. Prisioneiro político do amor abortado na raiz. Le Blon, o calor adiado, e sua injustificável amante, a geleira em formato humano.

Beto Palaio

Foto: time campeão mundial de futebol em 1958.

março 28, 2013




SAMÉL E LINDÓCA VISTOS DA ALAMEDA

Avista-se da alameda uma neblina matinal em espelho de nuvens. Imperceptivelmente. Por ali vinha esse menino. Molhando a barra da calça no orvalho da manhã. Ao passar por um bom trecho de capim-gordura. Haja friagem com o sol ainda nas entrefolhas. Samél nem queria parar para nada. Segue distraído. Em missões suas. Avista-se da alameda um bosque que um muro alto proibia. Ele saíra de casa de manhãzinha. Tão cedo que sua mãe ainda dormia. Tudo para ajudar no orçamento, o menino cismara com a idéia de ir até a cidade procurar serviço. Avista-se da alameda umas casas humildes que ainda dormem. Samél já tinha completado doze anos e era um menino muito esperto. Sabia das limitações do orçamento caseiro. Sofria calado. Queria somente ajudar, fosse no que fosse. Avista-se da alameda um vulto branco por demais solitário. Foi nesse mesmo dia em que ele planejou procurar emprego na cidade que ele conheceu Lindóca. Ele estava vindo no caminho traçado quando, do alto de um barranco, Samél viu uma égua branca parada na entrada de um caramanchão que encimava uma antiga porteira. Avista-se da alameda uma escadaria, ao natural, esculpida na terra. A égua queria voltar para dentro da propriedade. Por certo fugira e sabia o caminho de volta, mas a porteira a impedia de fazer isto. Parada diante deste empecilho, agora ela estava ali esperando que alguém lhe abrisse a porteira. Avista-se da alameda uma indefinida inquietude. Samél decide então descer o pequeno trecho de terra e abrir a porteira para a égua fujona. O animal nem estranhou a presença dele, pareceu mesmo agradecer quando ele abriu a porteira para ela entrar. Avista-se da alameda uma demonstração de amizade. A égua passou por ele, sapateando no liso do areão, dando a impressão de estar indo devagar demais, algo demonstrava que sim, Lindóca parecia esperar por Samél, já postada no lado de dentro da propriedade. Avista-se da alameda um aceno de confiança. Tão logo, incontinenti, a porteira bateu nos gonzos, voltando a ficar fechada, o menino percebeu que a égua não corria de sua presença. Mostrou-se estar agradecida por ele ter aberto a porteira. Avista-se da alameda uma certeza. Lindóca era linda, toda branquinha, mas também parecia estar um tanto desleixada: algo suja de terra vermelha, cheia de carrapatos e sementes de picão. Avista-se da alameda uma forma de retribuição. Samél nem estranhou da égua estar ali parada. Ele se aproximou dela, fez carinho na pelagem, depois na crina e por fim na cara da égua que ele imediatamente batizou por Lindóca: “oi, Lindóca... Estou achando que você quer me dar um emprego... Me leve então até seu dono”, Samél falou isso sem propósito e tomou tento para subir em pelo na Lindóca, já com ela rumando para dentro da fazendola. Avista-se da alameda um cavaleiro pálido montado num cavalo pálido. Ao percorrerem chão de terra arenosa. Trotando eles passaram por um trecho de cerrado, com cagaiteiras retorcidas, capins de sopé, e arbustos de gabirobas. Depois surgiria um caminho fundo com muitas folhagens graúdas, espigões de palmiteiros e a presença de árvores de lei que conferiam uma sombra lúgubre para quem por ali passasse. Avista-se da alameda uma passagem sombria no meio do caminho. Logo eles adentraram as posses e benfeitorias do fazendeiro. À vista, na passagem, bom trecho de milharal com suas espigas pensas, já secas e esperando a colheita. Depois atravessaram uma baixada repleta de pés de fumo. Avista-se da alameda um longo desfilar de arames farpados. Logo Samél avista um telheiro, à sombra do qual meia-dúzia de operários recolhiam as folhas de fumo secas e arranjavam em fardos para amarração. Samél e Lindóca vão seguindo em frente até que ele avista um tipo de praça onde uma paineira centenária reinava em meio a bancos de madeira já há muito carcomidos pelo tempo. Avista-se da alameda um retiro para o viajante cansado. Ali ele apeou de Lindóca e foi falar com uma mulher que carregava uma lata d´água equilibrada no alto de sua cabeça. A mulher lhe indicou onde ele encontraria o Seu Ramiro, que era o capataz da fazenda, com quem deveria falar sobre serviço. Avista-se da alameda uma chance em um milhão. Quando ele encontrou o Seu Ramiro este nem estranhou o pedido de Samél, parecia até que ele esperava pelo menino: “pode trabalhar sim... A troco da comida e da vestida... Se quiser começar o serviço, aproveite que já está com essa égua fujona e dê uma volta na propriedade reunindo os outros cavalos... Depois guarde todos ali naquele cercado”. Isto Seu Ramiro disse, sem dar detalhes onde Samél moraria, o que comeria, ou o quanto realmente ganharia. Essas coisas que se acerta desde o início de qualquer trabalho na roça. Avista-se da alameda uma tarefa insana. No entanto. Samél, contente de tudo, subiu outra vez em Lindóca e demorou cerca de quatro horas para reunir uma dezena de cavalos que acomodou em uma cocheira improvisada, a qual Seu Ramiro lhe falara como sendo “cercado”. Ali ele passou o resto do dia sozinho, limpando os cavalos dos bernes e dos grudes de picão. Depois o menino os lavou demoradamente, cada um deles, para finalmente os escovar e deixá-los tal qual uma tropa de elite. Avista-se da alameda um desejo de ser feliz. Já era noite quando uma criança local veio até ele com uma marmita repleta de arroz, feijão, ovo frito e farinha. Essa mesma criança apontou o paiol de milho e falou que Samél poderia dormir por ali mesmo. No dia seguinte, ao acordar cedo, Samél vê que o milho guardado no paiól já estava no ponto o fabrico do fubá. Avista-se da alameda um desperdício de farturas. Ele também nota que há por ali, no acesso da bancada, uma máquina quebrada que uma vez, lá no passado, se encarregara de fabricar a farinha de milho. Samél passou aquele dia desmontando a máquina, trocando parafusos enferrujados, oleando engrenagens, ajeitando correias até que, no final do dia, ele liga a máquina e joga dentro dela um punhado de espigas de milho. Avista-se da alameda o futuro se espremendo para caber no presente. Como por milagre o fubá começou a se acumular nas bandejas, dando um toque de elegância ao todo daquele paiol que vergava sob um madeirame centenário. Logo surge o Seu Ramiro e aprecia longamente a obra de Samél: “eita moleque esperto... Limpou os cavalos... Arrumou a máquina de farinha... O que mais você sabe fazer?”. O menino pensou um pouco e disse: “sei um pouco de tudo, sim senhor”. Avista-se da alameda um contrato de trabalho definitivo. Os dias correm como um ribeirão esperto. Em menos de um mês tudo naquela propriedade passara pela manutenção da mão-de-obra de Samél: o cata-vento que puxava água do poço foi consertado, as pranchas que ajeitavam o açude para criação de curimbatás foram trocadas, as espigas de milho secas no pé foram recolhidas, os ninhos das galinhas poedeiras foram ajeitados. Deste modo passou aquele ano. E depois outro. E depois outro. Até o dia em que Lindóca fugiu novamente. Avista-se da alameda a projeção de um filme ao contrário. Foi seguindo atrás da égua fujona que Samél percebeu que já era um homem. Ele tinha um porte atlético pelo muito trabalho, e usava uma barba escorrida no rosto. Samél nunca tinha saído daquela propriedade, e isto nunca o incomodou. Passara mais de quinze anos na labuta. Mas ao dar falta da Lindóca ele seguiu o caminho de volta. O mesmo trajeto que fizera há quase vinte anos atrás, até que chegou na porteira do caramanchão. Avista-se da alameda um retorno ao começo. Ali ele atravessou seguindo o rasto da égua que fugira. Quando ele atravessou a porteira notou uma ventania e um redemoinho de poeira que parecia o seguir. Vindo de reverso. As imagens se alongaram em prenúncio de estranhamento. Avista-se da alameda um homem diante de seu destino. Logo Samél olhou para trás e não reconheceu nada do que avistava. Tudo havia desaparecido na poeira. A bem da verdade não havia ali fazenda nenhuma. Apenas uma estrada asfaltada que passava ao alto, ao alcance de um barranco que ele tinha de subir, o mesmo barranco da estradinha de terra que ele descera vinte anos antes. Avista-se da alameda o encontro do personagem com o seu verdadeiro caminho. Quando chegou ao alto ele viu que não havia mais porteira e que tudo ali estava tomado por plantação de eucaliptos, a perder de vista. Sem entender nada ele tomou aquela estrada asfaltada, algo novo também para ele, e rumou de volta para sua velha casa, aquela que deixou quando saiu para procurar trabalho, tantos anos já passados. Avista-se da alameda uma alma recomposta. Mas nem tinha pressa de chegar lá, parecia mesmo que voava, com seu corpo leve começando a flutuar, aos modos de paina. Assim, suspenso no ar, voando como um passarinho, Samél vê o bairro de sua infância, mas tudo estava mudado. No lugar de seu antigo bairro havia agora um gramado que do alto lhe parecia verde demais. Avista-se da alameda um sinal de glória. No meio desse gramado ele avista a Lindóca. Ela assemelhou que também o vira no alto, indo embora, flutuando no ar. Deu um relincho e agitou sua bela cabeça animal, como costumava fazer quando concordava que estava muito feliz. Avista-se da alameda o despertar de um mundo novo.

Beto Palaio


Imagem: Filme "O Cavalo Branco" de Albert Lamorisse.

março 24, 2013



MARIA HELENA, ÉS TU?

Eis o texto nosso de cada dia. Ao transgredir tudo o que, aos nossos olhos, pareça apropriado. Entretanto sendo portador da fome de jovialidade que nos assalta. Neste ninho de estrelas da palavra, a alma pode encontrar-se insaciável. Algo para reduzi-la à mera astrônoma de vogais e consoantes. Tudo se condicionando a um deslumbrado mapeamento. Donde surgisse uma linha, pingo que fosse, de entendimento. Isto vem aumentar nosso desejo de busca pela palavra maior. Qualquer coisa. Que por todos é conhecido pelo vocábulo “felicidade”. Quando, pé ante pé, uma estória se aproxima. Logo montamos um circo para recepcioná-la. Eis, senões. Será que os cegos compram lâmpadas para seus apartamentos? Como adivinhar a necessidade de sentidos opostos aos nossos? A palavra aos poucos cede aos nossos pés. Abre-se uma cratera donde caímos sem possibilidade de resgate. O escritor desmiolou? Está com fome do concebido? Mesmo que haja desarrumação. Todo dia ele tem de bater na porta do texto. A essência da escrita é perversa de ardida, feito pimenta-malagueta, mas também é doce e gentil tal Iáiá e seus quindins. Na raspa do tacho. Haja, najas, jardins, prazos. O literato sempre consente em dar um jeitinho de abrigar um chamamento. O texto é como um saci-pererê. Ele vive escondido nas grotas. Gira em redemoinhos. Dorme no santuário das ostras. Em tantos becos. Parafusos que emperram o verso. Argila que sorve as idéias. Iceberg que só se mostra um bocadinho. Sorvete que só dura o tempo de derreter. “A palavra me encontrou, sou agora como um prisma derretido”, isto disse Ardiles olhando para a luz vermelha que indicava a plena funcionalidade do microfone da estação de rádio que transmitia a novela das dezessete horas. Maria Helena, sua namorada na novela, não entendeu nada, mas falou o que seu script previa: “sim, meu amor, esta é a chance de mamãe autorizar nosso casamento”. Ardiles parecia mais confuso ainda. Sua fala seguinte deveria ser: “Maria Helena, meu bem, chegou o momento que esperava, agora posso até pedir aumento na repartição. Nós vamos nos casar... Finalmente vamos nos casar, meu amor!”. No entanto Ardiles disse isso: “sou pelas vadias, não me casarei nem amarrado em fio de aço”. A novela estava mesmo para acabar. Seu capítulo final havia sido anunciado pelos patrocinadores. Neste sentido o público ficou boquiaberto. Ocorrera um final deveras trágico para os costumes sociais consagrados ao ano de mil novecentos e cinqüenta e quatro. No entanto. Maria Helena fica ao lado da porta da estação de rádio. Ela era uma mulher alta e elegante, com uma cor morena suave para a pele que os fãs da novela de rádio imaginavam ser negra. Ela nem esperou pela saída de Ardiles e dirigiu-se para a edícula que alugara de uma senhora cristã no bairro da burguesia local.  Agora, no arremate do mês de julho, o sótão estava quente. Anos atrás, quando ela ganhara a posse como professora-adjunta naquela cidade, o reitor ofereceu-lhe um apartamento do mais moderno, mais próximo ao campus. Mas ela recusou. Ela sempre apreciara um sótão, talvez pelo perfume das madeiras, somado ao seu mistério, seus nichos e recantos, onde alguém nunca poderia encontrá-la de chofre. Onde também ela poderia se refugiar quando quisesse. Além disto, ali ela tem uma luz maravilhosa. Raios de luz solar entravam pela imensa janela, conferindo enxames inquietos às partículas de poeira, como se o ar estivesse alegremente vivo. “Ardiles estragou tudo, pensou Maria Helena”. Ela mesma estava preocupada com o vazio que se avizinha dentro de seu ser. Solteira e sem familiares, ela é o que se poderia chamar de “uma pérola solitária”. Tudo o que ela deixara para trás, inclusive alguns colegas próximos, agora ela estava prestes a se aposentar, e seus alunos, aqueles imberbes com pretensões literárias, ela espera que cada um deles consiga editar seu livro, algo que viesse a ter sucesso no hall da fama da literatura nacional. Desde que saíra da novela. Isto ela imaginava que sim. Ela liga o radinho de pilha. Há um chamado no ar para que os artistas voltem para o estúdio. Agora a direção da novela está anunciando que houve um engano na leitura no final da novela. A transmissão não chegou a se completar, isto para a alegria do patrocinador, pois o contra-regra, aquele que consegue fazer um cavalo trotar batendo no fundo de uma casca de coco, e consegue fazer chover agitando uma folha de zinco, ele, o contra-regra, quando viu que Ardiles iniciou uma frase fora do contexto, correu para desligar o que estivesse a seu alcance, inclusive, revestido de juízo, no calor do momento, a chave principal do transmissor da estação de rádio. Agora Maria Helena está em sua edícula e ouve o chamado para que todos os artistas da novela voltem para a retomada do último programa. Inclusive Dona Gessy, a proprietária da casa aonde mora, vem lhe chamar batendo discretamente na porta: “Maria Helena... Ouça bem, minha filha... Você tem de voltar para a estação de rádio... Estão chamando os artistas de volta”. Uma buzina toca em frente ao portão da casa. A buzina toca novamente. Maria Helena não acredita que isto esteja acontecendo. Ela vem até a janela do sótão e avista o carro de Ardiles. Ele está impaciente e toca a buzina novamente. Maria Helena se veste com bastante pressa. Nem sequer faz a maquiagem, pois imagina que fará isto no carro de Ardiles enquanto rumam para a estação de rádio. Quando ela desce as escadarias do sótão, passa voando pela sala, dá um beijo rápido em Dona Gessy, abre a porta da casa, vê o carro de Ardiles, mas não vê ninguém no volante, Maria Helena se assusta. “Mas onde estará o Ardiles?”. Logo ela o avista dentro de uma cabine telefônica próxima. Sem demora ele volta para o carro. Ardiles está vermelho de raiva. Senta-se ao volante. Murmura algo incompreensível. Depois fala para Maria Helena: “viu só o que você fez?”. Ela está atônita: “como?... Eu não fiz nada de errado!”. Ardiles parece não ter pressa de voltar para a estação de rádio, onde todos os esperam para que retomem o último capítulo da novela: “todo mundo parece estar sempre saindo de férias... Não parece?”... Maria Helena não entende onde Ardiles quer chegar. Ele liga o motor do carro e logo zarpa à toda velocidade rumo à rodovia local. Maria Helena subitamente entende que está sendo raptada e que Ardiles está fugindo para não ter de completar o último capítulo da novela. “Será uma longa viagem até a Flórida”, ele diz com um sorriso enigmático. Maria Helena sente um tipo de enjôo causado pelo sentimento de revolta e medo. Assim transtornada. A moça coloca a mão no trinco da porta do carro em movimento e abre-a, pronta para saltar. Depois ela se arrepende, volta a se ajeitar no banco do carro, e fecha aquela porta silenciosamente.


Beto Palaio

março 17, 2013



A NOVIDADE 

Vejo dois palhaços. Quem cortou a linha de acesso ao telefone do andar de cima foi um deles. Amanhã um oficial de justiça virá até minha casa. Não temo por ter de alugar um outro espaço para morar. Tudo é arte. Mesmo escrever algo com o pensamento na lotérica da esquina. O fato é este. Essa é que é minha verdade. Preciso urgentemente ganhar na loteria. As contas se acumularam de tal forma que não houve jeito de pagar o que quer que fosse.  Também estou sem carro. Mas com saúde boa. Ainda tenho vizinhos que me socorrem. Não há possibilidade de erro. Bato na casa ao lado por meio quilo de arroz. Bato na porta da frente por uma xícara de feijão. Até que bati na casa de uma nova vizinha. Logo de cara ela me impressionou. Nunca a vira antes nos arredores. E foi ela mesma quem atendeu à porta. Entretanto, nem sequer ouvira o que lhe pedi. Novitas se adiantou e, depois de dizer seu nome, me fez o convite para que entrasse. Ela era bastante jovial, apesar de apresentar discretas rugas que denunciavam a proximidade dos quarenta anos. Com incrível determinação, Novitas me convidou a sentar. “Quais são as novidades?”, me perguntou ela sem rodeios. Olhei para aquela criatura simpática e pensei em não responder. Tenho evitado ler os jornais, portanto não sei de muita coisa nova. Entretanto, a novidade era mesmo eu estar ali dentro daquela casa com uma mulher misteriosa, linda, interessante, sexy com certeza. Mas. Sou o que sou. E a isto é que me resumo. Não nego minhas tramóias. “A novidade é que meu emprego se foi, minha ex-mulher concordou com o divórcio, meu senhorio me pediu o apartamento e meus amigos me evitam declaradamente”. Novitas pareceu não me escutar: “E quais são as novidades?”, insistentemente repetiu ela, mas notei que desta vez ela colocou a letra “e” antes da pergunta propriamente dita. “Bom, as novidades são as mesmas”, repeti eu, sem vontade de falar o que já dissera antes. “Sim... Mas quais são as novidades?”, Novitas tornou a insistir, sendo que desta vez concordou com algo que eu falara antes, pois disse a palavra “sim” como determinante dessa concordância. “Olha... Não consigo fingir... A grande novidade é essa mesma”. Ela concordou, piscando afirmativamente os olhos, dizendo que entendera por fim qual seria a novidade. Depois ela sentou-se ao meu lado, no sofá fronteiriço ao dela. Sem pressa nenhuma. Novitas então me mostrou uma embalagem de papelão, quadrada e achatada, decorada com barbantes dourados, a qual me abriu de pronto e, com incontido orgulho, me repetiu: “gostei da sua novidade... Mas veja agora a minha novidade”. Novitas parecia emocionada ao destampar a caixa de papelão. Dentro dela havia uma única fotografia. Nela Novitas estava totalmente nua segurando um gato negro, um animal de pelagem luzidia, um tanto estranho, bastante esquisito, aliás. Eu prestei atenção ao pelo do gato e à destacada penugem negra que cobria a vagina de Novitas. Elas eram idênticas. Eu poderia jurar que tanto o gato quanto a vagina eram cobertos com o mesmo tipo de pelo. “Viu a novidade?”, disse-me Novitas um tanto apressada em saber minha opinião. “Vi a coincidência da penugem... Pelinhos... Os pentelhos... Se é que me entende”. Novitas fez notar que eu não enxergara a novidade, mas mostrou-se determinada para que eu mesmo a encontrasse. Ela retirou a foto da caixa de papelão e me entregou para que eu a analisasse com mais vagar. Aqui faço um preâmbulo. Eu tenho de dizer que a liberdade de escolha por vezes é quase insuportável para mim. Eu muitas vezes me pego pensando mais sobre a estrada não tomada do que aquela que escolhi. Como resultado, eu fico muito confuso com minhas opções. Eu tenho a tendência de ficar paralisado pela escolha tomada seja ela qual for, então acabo entrando em paranóia, curto-circuito. Fico neutralizado diante disso. Claro está que este fato determinante na formação da minha personalidade não permitiu que eu visse na foto algo mais do que já vira. Mas tentei descobrir qual era o jogo de Novitas. Olhei para a foto como Sherlock Holmes olharia para uma pegada fresca na trilha de um crime. Analisei o todo daquela mulher nua e vi que ela era deveras interessante. Parecia que ao apreciar atentamente aquela foto, havia um entranho convite em seu olhar. Algo de cumplicidade, conluio de entregas lascivas, uivos de alguém carente por um arroubo conquistador. Olhei atento para a fotografia, isto é crucial, e não achei novidade nenhuma, por isso voltei a falar da coincidência do púbis se parecer com a pelagem do gato que Novitas segurava na foto. “Acho que é isto mesmo”, disse devolvendo a foto para Novitas. Ela balançou a cabeça negativamente e recolocou a foto na caixa me olhando com censura, como se eu de fato fosse obrigado a adivinhar algo apenas observando uma determinada imagem fotográfica. Depois Novitas se levantou e disse que ela teria de insistir neste tema, assim iria me fazer a pergunta de modo mais incisivo. Foi desse modo que Novitas saiu da sala e demorou cerca de cinco minutos para retornar. Quando voltou ela estava lindamente nua e trazia ao colo um belo gato negro. Eis sua atuação performática. Agora Novitas desfilava diante de mim, na esteira de uma possível mudança na minha dramática existência. Algo que entendo como plausível, o fato do sexo haver fugido pela porta dos fundos de um homem traumatizado pelas dívidas, do ser inadequado para um emprego fixo quando, no extremo do presumível, haveria uma probabilidade de mudança inesperada em sua insípida vida sexual. A verdade é que tremi diante daquela linda mulher nua. Não tanto pela possibilidade de satisfação das minhas reivindicações imediatas. Mas aquilo era mesmo um belo regalo fora de hora. Por certo me senti um privilegiado diante dos jogos do destino. Verdadeiro é o chamado de consciência que me arrebatou, digo, inclusive com bastante facilidade. Pois outro fato inerente em mim, eu chamaria de "relógio biológico". O relógio biológico é uma entidade que reconheço existir, creio realmente que ele exista. Afirmo categoricamente que esse mecanismo rege apenas o palpitar dos corações masculinos, porque as mulheres nunca querem se adequar para permitir que um marcador de tempo paralelo se instale nelas de forma tão veemente. Mas o relógio biológico com certeza existe para os homens. É uma questão enlouquecedora para as mulheres que vigore a brevidade de seus invisíveis relógios em relação à longevidade dos relógios masculinos. Essa comparação me deu a oportunidade de experimentar um novo tipo de afeição que não surgira apenas com base nas atrações carnais. Na melhor das hipóteses um tempo complementar se abriu para mim. Isso me fez ficar confiante. Esse algo mais me excitava para adentrar as carnes de Novitas. “Sim... Gostei demais da novidade... Posso experimentar a novidade?”, perguntei para Novitas que já deixava fugir o gato e fez um gesto afirmativo com a cabeça. Foi assim que a novidade adentrou festivamente em minha vida.


Beto Palaio

março 15, 2013




OS CRIMES DE SIL N. N. LIS

Para muitos aquilo seria um pecado capital. Entretanto, Silene Enelis havia mordido sem piedade aquela finíssima pele elaborada com farinha de trigo. Logo ela descobriria. Não havia nada de errado em mastigar uma hóstia. Entretanto. De fato ela se sentiu uma bastarda. Embora uma bastarda um tanto justificável. Tinha de ser ela a executar aquele ato pusilânime aos olhos de qualquer seguidor da religião católica. Ela que tivera um passado conturbado sendo seguidora de seitas ditas trogloditas e espiritualistas na velha Londres. Nesta outra ocasião  um motorista de táxi um tanto míope olha para ela enquanto lhe entrega uma pesada mala de viagem nas dependências do aeroporto Santos Dumont: “incrível, madame, a senhora está carregando algum defunto nessa mala?”. Silene Enelis se incomodou com aquele comentário absurdo. Ela permanecera longe do Rio de Janeiro por quase toda década de cinqüenta, agora estava viajando novamente, sobremaneira protegida por xales de lã e uma pesada manta de inverno. Ainda assim, mesmo que aquele motorista nanico a confundisse com alguma criminosa, Silene Enelis tomou como pode sua pesada mala e atravessou o saguão do aeroporto em direção à pequena e discreta livraria que se instalara ali por essa época. “Brochuras pecadoras, se cuidem, estou chegando!”. Quatro meses antes, ainda em Londres, Silene Enelis manteve os olhos fixos em suas mãos cruzadas na frente daquele amante ocasional. Ela olhava fixamente para os nós dos seus próprios dedos brancos enquanto ele tentava controlar sua raiva ao ser tratado como uma criança. O homem estivera fazendo um trabalho desumano numa fábrica de cimento desde que ele tinha quatorze anos, seu torso bronzeado e suas mãos maltratadas eram evidências desse fato. O que ele realmente precisava era de uma cerveja e um par de doses de tequila para ordenar a bagunça toda que também afetara sua cabeça operária. Entretanto Silene lhe oferecia mais do que isso. Ao abrir sua bolsa ela desfilou pelo quarto, enquanto ensaiava um titubeante tango argentino. Neste ato ela exibia um envelope pardo ao qual tecia loas por conter um barato que valeria por um milhão de tequilas e cervejas. Depois, por agir de maneira afoita, as pílulas de LSD haviam deslizado para a madeira não polida, cheia de poeira, do criado-mudo. Os dois estavam no quarto dos fundos de uma casa abandonada nos arredores de uma fábrica de cimento. Eles haviam se conhecido meia hora antes num pub da região. Logo se entenderam de passar a noite no quarto daquele homem que tinha a aparência desleixada e rude de um estivador. Ela riu ao adentrar aquele quarto imundo. Contudo, ambos sequer falaram sobre a poeira de cimento reinante por ali, aliás nem estavam atentos para aquela poeira. Contudo. Todas as frinchas daquele quarto abandonado lançavam fachos da nascente luz solar que atingem, inclusive, com reverberação incontida, seus corpos nus. James King, o operário do cimento, acordara mais cedo. Silene Enelis ao abrir os olhos sentiu um asco tremendo. Naquele quarto repleto de pó de cimento, ela se assustara com o corpo de um homem estendido no chão. Ela estava confusa pelo LSD ingerido na madrugada. Silene estivera viajando num mundo de celofanes multicoloridos. Onde. A cada dose a realidade se afogava em indizíveis formas, diante dos caleidoscópios vivos que se tornaram seus olhos. Tudo amealhava fantasias, diante de um céu composto por diamantes lindíssimos. Mas Silene despertou com James gemendo de dor. E ele, sobremaneira, a assustou com seus gemidos, por ter uma faca cravada nas costas. Diante desta visão ela desmaia. O promotor do condado utiliza-se de um lápis amarelo que ele estava usando como um bastão para conduzir a ladainha sobre certos crimes ocorridos na periferia de Londres. O promotor se virou para olhar para aquela moça de dezenove anos de idade que viera à sua mesa sendo acompanhada por dois guardas que a acompanharam desde o setor gradeado, passando por um corredor estreito, sendo dirigida até a sala de audiência. "Meritíssimo, esta moça de aparência inocente tem várias prisões em seu registro, incluindo dirigir sem licença, beber em locais proibidos para estrangeiros, destruição maliciosa de propriedade pública ao urinar premeditadamente na bandeira da Inglaterra, e também assalto... Assalto a mão armada... Senhor Juiz, eu estou sendo apressado na leitura desta ficha criminal... Para mencionar... Outras coisas de que esta moça poderia ser acusada... Como, por exemplo, a morte do operário James King...”. O dia amanhece naquela cidade satélite de Londres. Silene está com James King no quarto dos fundos de sua casa de campo. Há relinchos de cavalos vindos de uma cocheira anexa ao luxuoso quarto de James. Eles se conheceram num pub local e, duas horas depois, ali estavam em conluio de vicio, dividindo alguns comprimidos de LSD. Ela se apresenta totalmente nua e um dos comprimidos de LSD lhe escapa pelo vão dos dedos. Quando Silene o recolhe do chão, o comprimido se apresenta alongado e lembra muito a aparência de uma hóstia. Silene então mastiga a hóstia, e ela está com gosto de sexo e pecado. Silene adormece. Agora, na audiência pública, a mãe de James King, a quem o promotor brincou ao tratá-la por “rainha”, suspirou e, ainda sem se virar para olhar atentamente para Silene Enelis, a qual estava sentada num dos bancos fronteiriços que se destacava naquela pequena sala do tribunal. A mãe de King não olhou, mas sabia que ela estava balançando a cabeça negando o crime, tentando fugir como uma cadela, mas ainda com o gosto da isca de veneno em sua boca. Ao fundo da sala de audiência. Sentado tão longe da mãe de King o quanto possível, Mr. Alfonsus, o pai adotivo da vitima, inclinou-se contra a parede, algo sobremaneira rude, tanto que seu chapéu de vaqueiro lhe caiu sobre os olhos. Era como se ele estivesse dormindo, de braços cruzados, com as mangas da camisa preta desbotada, algo enroladas até os cotovelos, de modo que a turva tatuagem da silhueta de uma mulher nua parecia estar ao longo de seu antebraço como um lagarto esmaecido. Num repente o promotor vira-se para o advogado de Silene Enelis, um homem de pele encarquilhada e de aparência cansada, posto em sossego, aos modos de reles testemunha, nas arquibancadas do fórum. O promotor limpou a garganta ao se dirigir à ele: “o senhor teria algo para acrescentar?”. O velho advogado abriu os braços como se não estivesse entendendo a pergunta e responde um “talvez” de forma até cômica. Algo inusitado por certo, tanto que o juiz levantou a mão e, enquanto escrevia notas sobre o caso em questão, olhou demoradamente para Silene e depois para seu advogado. Em seguida o juiz voltou a rascunhar algo em suas notações para logo retornar à sua posição estática de rábula experimentado em audiências enfadonhas. Súbito um zumbido de mosca. Silene Enelis sente calor dentro da imunda edícula em que dormira na fábrica de cimento. Ela acorda, se espreguiça, e não vê James King ao seu lado. Imediatamente ela se levanta e olha através das frinchas daquele quarto repleto de poeira de cimento. Lá fora ela vê James King que troca diálogos ríspidos com um senhor estranho que está montado num cavalo negro deveras ensopado de suor. Silene reconhece este senhor como sendo Mr. Alfonsus, o pai adotivo de James. Ela continua observando os dois enquanto James se afasta e, para seu extremo horror, observa Mr. Alfonsus descer lentamente do cavalo e apunhalar James King pelas costas. Silene se põe a gritar sem parar, principalmente quando James adentra o quartinho de forma abrupta, já sem sentidos, e cai aos seus pés. Silene tenta arrancar o punhal cravado nas costas de James, muito embora, com isto, ela se incrimina ao deixar ali suas impressões digitais. Silene Enelis tem essa visão crítica enquanto está sendo confrontada com os fatos, agora sentada no banco das testemunhas. Subitamente, na audiência, ela deixa todos boquiabertos, pois alega ao juiz que possuía algumas evidências que iriam mudar o rumo das investigações. Todos estavam esperando pelas tais evidências quando justamente Silene aponta para o fundo da sala, em direção à Mr. Alfonsus: “ele é o criminoso!”. Mr. Alfonsus nem sequer se assusta, pois está com o rosto um tanto tombado para a direita, donde lhe cai uma baba pelo canto da boca, logo amparado por uma enfermeira que o assiste na condição de um entrevado, martirizado que está, há mais de dez anos, preso à uma cadeira de rodas. Todos riem no tribunal e Silene Enelis deixa de lado aquele livro barato que estava lendo no saguão de espera do Aeroporto Santos Dumont. O alto-falante anunciava o próximo vôo para Nova York. Ela teme perder aquele vôo, quando se levanta apressada e deixa aquele pequeno livro de aventuras jogado no banco. Com isto Silene Enelis, a qual durante a breve leitura se sentira no lugar da ré, jamais saberá quem realmente matou James King.


Beto Palaio

março 10, 2013





UM LIVRO EM BRANCO

Numas. Safadezas em voga no escurinho do cinema. Desmaia as pontas dos dedos na meia de seda. Ao adivinhar o reduto de rendas, ao fundo de pernas pecadoras. Ela. Entrega-se à passadeira. De mãos. Com uma fita americana desfolhando. Na saborosa matinê. Ele. Despenteia limas doces. Línguas dulcoram em hortelãs. Em respirar profundo. Cenas dirigidas. E estão. Mais que. Comprovadas. Aquém do território de cetim. As ligas. Aconselham desabotoares. Beijos zunem. Imunidades. Perfumes vadios. Dedos deslizam. Em permissão. Ao frenesi. Das beiradas. O generoso púbis. De pronto. O filme saiu da penumbra. Os personagens caminham num ambiente tipicamente rural. Flashes de luzes siderais. A menina está feliz com seu cão. Acomodada sobre uma carroça de feno. Doroty domina a tela inteira. Em preto e branco. A chamar pelo seu boneco de lata. Além do arco-íris. Passeia um coração juvenil. Com seus sapatinhos de rubi. Entretanto. No lado de fora. No compasso do mundo real. Observa-se um trecho da calçada. Já longe do cinema. Um perfume de pipoca feita na hora. Os namorados, atrevidos no escurinho, jamais serão os mesmos. Eles apenas se dão as mãos. Falam do filme. Dos temas musicais. Dos atropelos de Doroty. Da excelsa magnitude da sétima arte. Tudo não passava agora de uma esmerada ilusão. Pois. O cinema é cachoeira. Urdido em industriosa técnica. Borrões no tanto que ilude. Nestas. Notações à margem do papel onde se escreve uma estória verídica. Hoje só escrevo para, com justiça, declarar que um dia amei de fato esta mulher. Registro estes acontecimentos, então, leia e, se puder, releve ou, caso contrário, esqueça o que escrevo. Vínhamos pela Cinelândia. Compenetrado era o andar, no tempo dos bondes, pelo centro do Rio de Janeiro. Logo ao sairmos do cinema. Ela era uma outra pessoa. Não passava de uma estranha para mim. Será que éramos monstros do desejo apenas no escurinho do cinema? Então, às vezes, de repente, todas as chamas estão na captura de um ar em que respire. Quando outra vez eu estava ofegante. E tentava beijá-la no meio da rua. Mas ela se esgueirou em negativas. Temia pelas pessoas que nos olhavam. Imaginava dessas pessoas serem amigas de seus pais. Isso até lhe dava dores de cabeça. Em azafama. Nem lembro quanto tempo nós vagamos, desde a Cinelândia, até o ponto do bonde para o Catete. Falávamos pelos cotovelos, em atropelo, dentro de meus pensamentos, ofendia minha incompetência, à olhos vistos, num tal arroubo, para a pessoa que me tornara um ciclone de amor, um azougue no escurinho do cinema, agora na calçada umedecida pela chuva da tarde, este pecador se fez de morto. As coisas estariam se descartando? Por que ela me via como uma ameaça assustadora? Ilegítima em sua essência? Eu sei que ela nunca iria me responder, nunca respondeu, aliás. Ela, a minha namorada, mesmo após efêmeras entregas, entrou naquele bonde e sequer olhou em direção à calçada. “Será que ela vai olhar para mim?”. Mas não olhou. “Que fazer? Depois ligo para ela? Agendarei novamente um cinema para o próximo Sábado?”. Ao andar a pé, solitário, eu observo os outros, transeuntes anônimos, evidentes exemplos de uma cidade inteira, estes passam por mim. Inclusive. Ao melhor do exemplificado. Observei um casal sentado num banco de praça. Tentava ficar indiferente à mágoa que me invadia. Entretanto. Bem ali na minha frente. Um homem e uma mulher estavam voltados para o amor incontido. Beijando-se na boca. Incansáveis carícias aos olhos de todos. Estariam errados os dois? Todos aqueles minutos que andei a esmo. Vinha eu pela Riachuelo, rumo Lapa. Na pensão onde morava, apenas o fiel cão da proprietária me fez festa. Algo me dizia que o amor era um erro. Em alguns momentos, o amor se oferecia para mim com vozes feitas de carne, em outras ocasiões, o amor era apenas uma vaga referência. Com este qüiproquó instalado. Eram múltiplos os tons de significado, embora, no final, tudo o que restasse era a ausência da pessoa amada. Ficou em mim a dúvida. Por que ela se afastara de mim ao sairmos do cinema? A nossa paixão tórrida, quando até ignorávamos o filme, não teria valido de nada? Tanto aquilo me incomodou que naquela mesma noite tive um sonho bem realista, onde a minha amada participava. Neste sonho nós vínhamos por uma alameda arborizada que logo nos leva aos estreitos corredores de um cemitério. Ali, entre cruzes, inscrições e centenas de fotos anônimas, ela começou a me jogar pedras. Umas. Ouvia claramente o clique das pedras coletadas por ela ao chão. Eu estava perto de um arbusto, fugindo das pedras, quando olho para trás e vejo um abismo que se abre. Neste abismo eu caio. Mesmo agora, os detalhes crescem em mim numa sensação de desmaio. Eu tento esquecer deste sonho. Banir tudo da minha mente. Rolo na cama. Uma insônia terrível se instala, embora parte de mim quer se lembrar daquele sonho. Quando volto a dormir esse mesmo sonho tem continuidade. Ela, a minha namorada, agora surgia como uma criança que me apontava o túmulo de sua mãe. Desta vez, sem pressa, sentei-me atrás dos arbustos acompanhado de alguns de meus livros. Uma vez que, brevemente, ela me pediu para que lesse para ela um poema. Neste sonho singular eu me atrevi a abrir um livro qualquer. A minha voz ficou embargada ao tentar ler o que via. E o que via era o nada: as páginas daquele livro estavam em branco. Ainda assim olhei para aquela menina—minha namorada, por certo—e a vi sentada no recesso de uma pedra de mármore, anexo ao túmulo de sua mãe. Mostrei-lhe então o livro em branco. Ela fez um sinal que entendia o que eu lhe mostrava. Depois falou diretamente para mim de uma forma, inclusive, petulante: “eu sei que o livro da nossa vida está em branco”. Mas me inquietou mais ainda o que ela disse depois: “o que será escrito sobre a nossa união terrena está em seu poder”. Ela estava sorrindo quando completou: “invente o nosso livro... Escreva você mesmo o que acontecerá no futuro de nós dois”.


Beto Palaio

março 05, 2013




A CAMA NA LAMA

Ela era a rainha da cama alheia. Dizia que me amava, mas também amava descaradamente a qualquer outro homem. Deixou de lado a xícara de café. Fustigava aflita, ao jornal da manhã. Aborrecida por ali não encontrar algo. No caminho solitário dela procurar por noticias vagas. Naquele periódico matutino de Domingo. Logo o dia passa. Final da tarde. Parece que ela encontrara a notícia do casamento de um amigo. Para isto ela se produziu aos requintes. Depois saiu vestida de branco. Havia chovido durante todo o dia. Para espanto dos que por ali passavam. Ela escorregou e caiu no recesso do acostamento de uma rua argilosa. O sol surgiu timidamente às cinco horas da tarde. Ela arfava enquanto eu olhava para ela sem ação. Tentei tirá-la da lama. Mas ela era tão pusilânime em suas determinações. Detestável criatura. Alguém mais tentou levantá-la do chão. Dei um sinal de snap com dois dedos, imediatamente esse bom samaritano recuou. Parecia que toda a rua estava tranqüila, exceto pelos martelos dos carpinteiros, batendo pregos num telhado vizinho. Eu nunca tinha visto tal abandono, ao meio do qual ela nem se mexia dentro da poça de lama. Deitada ela estava, deitada ficou. "A mulher está morta?”, perguntou um dos carpinteiros, se intrometendo num assunto de família. Olhei fixamente em direção ao telhado, então ele voltou a bater seu prego como se nada houvesse dito. Um menino passou de bicicleta e desferiu o seu veredicto: "a mulher enlameada está morta... ela está morta, ela está morta!”. Apesar das aparências, eu sabia que não era verdade. Ela era apenas um feixe de braços e pernas que não se esforçavam por ajudar o corpo a se levantar. Na lama ela se sentiu em casa. Ficou à vontade. Até acendeu um cigarro, um algo que surgiu de sua bolsa já completamente sujo de lama: “não valho nem isto”, disse ela levantando o cigarro manchado e úmido: “eu pensei que fosse uma pessoa vazia, mas esse casamento vai me deixar mais vazia ainda... tudo está consumado”. Contudo não deu para ela filosofar por muito tempo. Pois de uma casa próxima alguém lhe agitava um lenço, ou algo parecido. Sua mãe saiu da casa, e seu grito subiu as paredes em um uivo. De todos os lugares surgiram mais mulheres correndo. Sua mãe era magra e de aparência macilenta. Essa mulherzinha determinada apareceu com mais três amigas e, mantendo um cigarro grudado nos lábios magros, ajudou a carregar a enlameada até o pátio do jardim de sua própria casa. Logo surgiu uma demanda de primos, primas e mais alguns agregados da vizinhança. Alguém acendeu a luz do pátio. A enlameada virou-se de costas para a luz e disse: “Jesus fez isto comigo... no fundo ele tem ódio de mim”. Sua mãe ruminou uma resposta, dando baforadas no cigarro sem o tirar da boca: "não diga uma besteira dessas”. Depois a enlameada me puxou para perto dela, afoita, tanto que eu mal podia respirar: “faça alguma coisa, seu idiota, eu não quero mais ter de te trair”. Evidentemente ela estava se referindo ao casamento do amigo em homenagem a quem ela fez até o favor de cair, literalmente, na lama. Com o barulho no pórtico da casa, o seu padrasto acordou e veio até a porta bisbilhotar: “mas o que é isso?... alguma brincadeira de excelentíssimo bom gosto?”. Ela detestava seu padrasto e lhe respondeu de maneira lacônica: “vai se foder, Joãozão!”. Agora, no entanto, Joãozão poderia até ser considerado como seu “pai”—na verdade ele era seu pai de fato, algo que o próprio Joãozão nunca quis que admitissem—e também porque ele estava definitivamente casado, “no papel”, com sua mãe. Mesmo assim a enlameada nunca o chamara de pai. Ela tinha sido ensinada a chamá-lo de Joãozão. Ninguém sabia o porquê disto. "Você vai sujar de lama o piso do terraço... Depois quem se ferra para limpar isso sou eu!”. Isto disse Joãozão que logo desapareceu, pois sabia de antemão o teor de respostas de que seria capaz sua filha. Mas, ao invés de responder ao pai, ela me olhou demoradamente, havia um trecho de seu rosto que estava isento da lama, aquilo a deixava com a aparência estranha de um ser vindo de um outro mundo: “me ajudem a levantar... vou nesse casamento de qualquer maneira... alguém procure um táxi para mim... não fiquem me olhando com essas caras de idiotas... me chamem um táxi!”. Sua mãe estava tremendo. "Ela não pode fazer isso", disse ela. "Ela não faria uma coisa dessas!". Depois sua mãe atirou-se para frente e, tendo de passar ao meio de dois ou três curiosos, sussurrou ao meu ouvido: "menino, acho que basta de palhaçada... leva a louca da minha filha para sua casa e dá um banho nela”. Mas a enlameada pareceu adivinhar o que a mãe me pedia: "Salomé, sua bruxa, fique quieta!". Foi um grito que se ouviu desde a rua. Num repente sua mãe passou a gritar mais que ela. Aquilo feria meus ouvidos. Logo surgiu mais gente para ofender a enlameada. Sua irmã também gritou. Todas as mulheres estavam gritando. Apesar da comoção geral, sua mãe me segredou baixinho, como num sussurro: "trouxe essa mal-agradecida ao mundo... dei-lhe de mamar... cuidei para entregá-la gentilmente à vida... me diga o que ela faz para me agradecer?". Agora nem adiantava protestar. Sua filha enlameada entrou no táxi que a esperava ao portão e seguiu em frente, com lama até na alma, para assistir ao casamento do homem que mais amava.


Beto Palaio

março 02, 2013





VERBO EGO


O ego é um verbo. Tão intransitivo que por ele nada pode trafegar. Basta um capricho a mais. Ou ameno temor. Alfinetadas de solidão. Algo um carinho adiado por vinte anos. Miléia acostumou-se ao muito pouco amor. Para ela o amor era como uma bandagem, um pano mambembe, que cobre pessimamente ao ferimento. Um sortilégio para poucos. Enganação para sôfregos. Fabulas que mais desencantam que orientam. Grandes expectativas para tão pouca oferta. Isto tudo Miléia pensava do amor. Calhou de ser assim até que Miléia conheceu Canópio. Eles moravam numa cidade pequena. Claro que Miléia já havia visto Canópio uma vez ou outra. Ou na avenida principal da cidade. Ou bebendo com amigos. Ou circulando no seu fusca já um tanto enferrujado. Mas Miléia não tinha amizade declarada por ele. Nada contra. Apenas que Miléia era mesmo uma reclusa. Apesar de ainda estar na casa dos trinta anos. Ela pouco saía. Deixava sempre para amanhã se precisasse ir até a cidade. Preferia ficar com sua velha máquina de escrever. Ali o seu mundo abria-se ao incomensurável. Novidadeira como ninguém. Contadora das mais estapafúrdias estórias. Sua única companheira. Além da literatura, gentilmente escrita em um datilografar constante. Era sua cadela que chamava de Loba. Isto sendo uma homenagem. Pensava Miléia. À escritora inglesa Virgínia Woolf. “Vem minha linda Loba, chega de ficar me olhando escrever... Agora vamos passear no jardim”. Pois Loba era uma companheira inseparável. Miléia compartilhava com ela todos os momentos. Inclusive a cadela tinha uma paciência enorme de permanecer ao lado de Miléia enquanto ela destinava seu tempo em escrever frases, textos, pensamentos, poesias e poemas. Parecia que nada poderia romper esta parceria entre ela e Loba. Nada chegava a corromper esta inocência, ou perturbar o oscilante manto do silêncio no qual, semana após semana, naquele cômodo vazio de artifícios, ondulava o chamado distante de um bem-te-vi, o apitar da fábrica de tecidos, o zumbir dos insetos na ramagem do jardim, um latido eventual de um outro cão na rua, um grito alegre de criança a perseguir sua pipa e, no mais, um silêncio profundo envolvia os ternos momentos de Miléia e Loba. Mas logo um resumo de dor ocorreria. Inesperadamente. Loba desapareceu numa manhã de Domingo. Miléia se pôs verdadeiramente louca. Ela e Loba eram como carne e unha. Agora estavam separadas pela primeira vez desde que Loba ainda era filhote. Meio que sem saber aonde ir. Miléia andou todo o Domingo a perguntar pela sua Loba. Mas nada da cadela aparecer. Assim, de mãos vazias, Miléia voltou para casa e não teve ânimo para mais nada. Deixou-se abandonar na velha cadeira de balanço no pórtico. E ali ela permaneceu. Envolvia-a ao tudo, a casa vazia, na ausência de Loba, um terrível silêncio. Ela que tinha especial zelo em manter seu mundo em isolamento, agora estranhava tanto sossego. Miléia imaginava que Loba estivesse também procurando por ela em algum lugar ao longo da rodovia, ou no entorno da única lagoa do lugar, ou nas ruas da cidadezinha, ou nos monturos abandonados no pátio da fábrica de tecidos. Dois dias depois Miléia estava tentando escrever algo diante de sua escrivaninha quando ouve passos no quintal. Ela vê pela janela que alguém chega carregando Loba. Esse alguém era o moço Canópio. A alegria do seu reencontro com Loba se torna indescritível. Apesar disto um algo mais do que bom pairava no ar. A presença de um homem tão gentil. O que seria isto? Charme masculino? Retidão de caráter? Fosse o que fosse Canópio lhe transmitia isso. Miléia fica embevecida e também deveras agradecida por aquele gesto. “Quer café?... Tem bolinhos que fiz... Quer?”. Assim, pela primeira vez, um homem entrava naquele espaço da escritora reclusa. Um tanto surpreso. Canópio recebe festas também de Loba, que retornou para casa com essa novidade de um homem formoso estar adentrando um dos últimos redutos de virgindade do município. Miléia estava na cozinha preparando o café. Mas percebe de longe a alegria de Loba, ao ser acariciada por Canópio. Tão logo a palavra ''acariciada'' lhe ocorreu, ela a rejeitou. Um verbo ego ainda a cercava, além do perfume de café recém coado. De tudo o que existe nada é tão estranho quanto as relações humanas, com suas mudanças e impropriedades. O doar-se ao outro e os lampejos de uma extraordinária irracionalidade. Naqueles breves minutos. Miléia tinha certeza de estar ficando deslumbrada, ou algo assim. Sentia suas pernas bambearem. Começou a escutar sugestões de vozes, tanto que nem conseguia se concentrar nas xícaras e pires que colocava numa bandeja. Já na sala de visitas. Ela sentiu um agradável tremor quando percebe o perfume de um corpo masculino tão próximo, ao indicar a bandeja de café para Canópio. “Você me deu muita alegria em encontrar a Loba...”, ela disse, ainda um tanto tímida. Depois completou: “você foi bom para mim, como ninguém poderia ter sido”. Canópio sorvia o café com um orgulho incontido. Parecia medir as palavras que iria dizer. Neste intervalo o tiquetaquear do relógio da sala ganhou de tudo. Mas Canópio logo fala: “posso te perguntar algo?”. Miléia toma um susto, ela recebera com surpresa aquela pergunta. “Sim, claro”. Ele depositou a xícara na bandeja e fala: “quer ir ao cinema comigo qualquer dia desses?”. Era um momento indizível para Miléia. Seu coração parecia bater num mundo distante. Sua voz não saía de jeito nenhum. Mas ela fez um discreto sim com a cabeça. E depois sorriu.


Beto Palaio




Colagem: Toyen

março 01, 2013

Beto Palaio

AS LAPAS

Brinque, brinque, brinque.
E esqueça, esqueça, esqueça.
No Brasil tem tanta Lapa!
É Lapa de Cima, Lapa de Baixo. Inclusive a Lapinha da Serra do Cipó. Ou a Lapinha do Canto de Oxóssi.
Mas contemple a Lapa dos Arcos, carioca da gema, ou contente-se com a Lapa paulistana da Doze de Outubro.
Sim, de norte a sul tem muita Lapa!
Mas economize seu tempo e não ouça mais nada sobre lapas. Porque a lapa real é um vazio sem nada dentro.
Lapa  é buracão socavado na pedra.
Lapa é abismo, lapa é escuridão.
Inclusive tentaram salvar os desavisados dos perigos desta lapa. Tentaram dourar a pílula da lapa.
Mas lapa que é lapa nunca muda. Valha-me Nossa Senhora da Lapa! Com lapa não se pode brincar.
Mas esqueça, esqueça, esqueça.
E brinque, brinque, brinque...


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O EQUILIBRISTA

Minha vida é um trapézio
Sem rede para segurar minha queda
Olho para o vazio abaixo
Mas não caio

Meu andaime é a corda bamba
Com um equilibrador como cúmplice
Ao caminhar resoluto, bambeio
Mas não caio

O público ovaciona a travessia
Minha ex-mulher grita "tomara que caia"
Meu patrão rasga meu holerite
Mas não caio

A corda bamba é feita de arco-íris
Há um anjo em cada ponta, protetores,
Pula na corda um deus menino
Mas não caio

Uma diáfana mãe vem me seguir
Na corda com seu próprio equilibrador
Ela passa com receio que eu caia
Mas não caio

Há nesta corda um grifo nebuloso
O próprio universo que vem se regozijar
Do tempo que empresta e toma de volta
Nele eu caio.  

(Beto Palaio)


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