março 28, 2014


A VELHA MORTALIDADE

Escrever. É apenas. Juntar palavras. Por vezes. De lá para cá. Vocábulos que se acumulam. Pareço um esquilo que percorre o bosque para coletar sementes que esconde no ninho. Ao escrever. Uso de um filtro semelhante ao papel que envolve a maçã. Escrevo alhures azuis. Venturas lilases. Por vezes trato a velha cultura com matizes esmaecidos. Cores de arrebol. Dizem. Quem lê esses contos avulsos. Embromação de romantismo tardio, sobre meus escritos anotou um dos raros críticos literários ainda em desempenho. Oras! Só sei que sigo em frente. Matizando as palavras sempre que possa recorrer a esse direito. Sobre o caso. Muito a contragosto. Revelo, no entanto, um aforismo de uso próprio: há excesso de doutrina na escrita, aqui somos compelidos a seguir regras e isto nos molda em estilo e significado. Como para fugir deste prefácio. Toda manhã de sol eu penso em coisas boas. Pelo menos eu tento. Esforço-me por absorver o melhor do dia. Mas no final deste dia. Poucos momentos, algures, eu tenho paz. Muito embora. Fico cismado com minha solidão. Transpareço em volúpias a insatisfação. Acho que fiz a coisa errada. Acabei perdendo a pessoa que mais amo. Mas quem vai se importar com minha estória pessoal? Será Lugar-comum? Mas há que findar este desconforto introdutório. É sexta-feira, meia-noite, digamos assim, mesmo que em palpos-de-aranha, bem-aventurado aquele que vive as mil-folhas de um amor-perfeito. Ao leva-e-traz no corre-corre, lufa-lufa sob os arranha-céus, num arco-íris de significados, em banho-maria. Pisa-mansinho aqui leitor. O pombo-correio desta estória é muito verídico. Solidão-a-dois. Até um leão geme suas dores. Em breve instância a saudade tece seu manto, pequenina que se apresente, e envolve-nos, ao todo, talhe e tal, bom corte, chances suturadas: então passa diretamente para o universo material, sufocando-nos, daí a dor que sentimos. 

- Abram as janelas... Deixem a luz entrar...

O outono chega ao fim e sinaliza para que o primeiro toque de inverno se instale. Qualquer um poderia notar que havia algo no ar. O sol já não ardia, parecia mais uma estrela polar que se misturava à outras estrelas no céu. O vento contribuía para que tudo mais se acachapasse. As árvores denunciavam o final de um longo tempo de estiagem. Nuvens escuras compareciam, aos liames de cinzas partilhados, em correria de algodoados.

- Pode entrar, a porta está aberta...

Neste canto há esta voz que anuncia o prenúncio de que a dita estória finalmente se apresentará alinhavada de bom censo. Esta voz é a mesma que nos arrebata do mundo das conjecturas e nos lança ao consórcio da vida em sociedade em meados do século vinte:

- Já vai para a libertinagem, Georgia?

- Não tenho que te dar satisfações, papai...

Georgia tomou a decisão de ir atender a porta. Ela sabia que era seu noivo Rodolfo quem ali estava. Mas toma uma surpresa.

- O que faz aqui Argelim? Você parece tão aflito?

- O Rodolfo se meteu numa briga... Está na delegacia... Eu acho melhor você ir até lá...

Georgia bate a porta atrás de si e segue Argelim pela alameda invadida por folhas que voam aflitas em meio ao inicio de uma imensa tempestade que se anuncia.

- Ele está ferido, Argelim?

- Não o vi pessoalmente, Georgia... Eu recebi uma ligação em casa... Então achei por bem te procurar...

Coisa nenhuma se compara à uma chance após a outra. Ontem é documentário rememorado. Hoje é cinema de recreação. Amanhã é filme ainda em arquivo. Uma longa travessia deveria ser feita por Georgia. Ela caminhava depressa. Agora sem a companhia de Argelim, ela arriscou-se à entrar sozinha no vetusto prédio da delegacia. Escadarias que pareciam não ter fim. Corredores que terminavam em paredes concretas, com indicações para que Georgia seguisse à esquerda, sempre à esquerda. Por duas vezes ela parou para pedir informações. Numa das vezes foi atendida por duas freiras que vinham devotas, à entoar um hino sacro em tom baixo, desde o fim de um imenso corredor. “Acautela-te!”, arrazoou uma das freiras, já cobrindo o rosto com um véu. Por essa época. Justamente quando se atribui colaboração entre fanáticos extremistas e a ditadura estabelecida autoritariamente no governo central. A velha delegacia de Taboão ficava instalada no antigo castelo de propriedade da Santa Igreja Católica. Por este motivo. Parte do estabelecimento constava como um abrigo para padres e freiras, sendo que o restante foi transformado em cubículos onde investigadores e policiais fardados se acotovelavam. Neste interregno. Georgia se perdeu dentro da delegacia que agora constatava ser uma mistura policialesca atrelada ao Santo Ofício. Um jovem padre sussurrou para ela não seguir mais pelos corredores de acesso ao porão. Isto teria um motivo justo. Este padre guiou Georgia até uma sala debilmente iluminada apenas por uma vela, a qual ardia sem um movimento sequer em sua chama. Ali um velho bispo estava instalado em uma cadeira de espaldar alto. Georgia evitava cruzar seus olhos com os do religioso e passa a olhar diretamente para a chama enquanto entretém-se num breve diálogo:

- Senhor padre... Pode dizer como faço para ver o meu noivo?

- E quem é seu noivo, filha minha?...

- O nome dele é Rodolfo...

- Como?

- Rodolfo...

Georgia falou num tom tão alto que o padre fez sinal com a mão para que diminuísse a voz.

- Sim, minha filha... Entendi o nome do noivo... E o que quer que eu faça?

- Nem eu mesmo sei... Como poderia adivinhar que a delegacia do bairro estava agora dividida entre a Igreja Católica e a Polícia Militar?

- Mas aqui não se representa a Igreja Católica Apostólica Romana... Aqui somos um reduto onde milagrosamente se evoca o renascimento da Santa Inquisição.

- Santa Inquisição?... Mas isto não seria uma forma de tortura?... O que fez Rodolfo para merecer a tortura?

O religioso não se preocupou em dar respostas. Entretanto chamou pelo nome um ajudante seu que estava à porta.

- Vá e traga aqui o novato... Sim o novato... Aquele que chegou aqui ontem...

Pouco tempo depois entravam na sala dois homens. O primeiro era o ajudante e o segundo vestia um manto branco, o qual não o revelava. Mas após o pedido do sacerdote o homem de vestimentas brancas retirou a cobertura: era Rodolfo!

- Rodolfo, meu amor... O que fizeram contigo?

Dizem que a vida é uma viagem moldada em argila. Tudo o que nos cerca foi doado pelo barro de existir. No entanto tudo é frágil. A existência é rota e, afinal, desnecessária. Nesta inconsistência natural de existir, Rodolfo mostrou-se distante, preferiu não entrar no assunto. Entretanto o bispo esclareceu o enigma:

- A senhorita deveria, a partir de hoje, cuidar apenas de seus interesses lá fora. O que ocorre dentro dessas paredes da Inquisição não deverá ser revelado. Entretanto, para que não paire duvidas sobre a lisura de nossos trabalhos, apenas diremos que a pessoa que se chamava Rodolfo não mais existe. Não entendeu ainda? Pois este moço aqui se chama doravante Irmão Cáritas. Apenas isso. Ele está nas mãos de Deus para a tarefa que lhe cabe. E a tarefa que lhe cabe é segredo apenas dele. Não entendeu? Pois quanto a isto eu lamento e peço ao meu ajudante que lhe acompanhe até a saída. Passar bem, Senhorita... Passar bem!



Beto Palaio


Conto de meu último livro TRAÇOS DE POLARÓIDE (Março, 2014).

março 13, 2014




TODOS PONDERANDO NUM INGLÊS FLUENTE

Depois de tudo. Então eu assisti um pouco de televisão. Os advogados defendiam um criminoso com argumentos especialmente complicados. Ambos ponderavam num inglês fluente. Tudo parecia longe, em seguida, ao fungar de narinas, luzes apagadas. Uma procissão de faces conhecidas. Poderia jurar que elas eram reais. Lindas bonecas misturadas com rostos conhecidos da mídia falada, escrita e televisada. Depois do ocorrido, de qualquer forma, eu devo ter tido, na época, uma noção errada do que via, tipo rebates mentirosos, como uma centena de notas falsas, nas prateleiras, armários, aqui e ali, no chão, ou sobre a cama. Em síntese. Foi um rude despertar. Na manhã seguinte o sol já ia alto, para dizer o mínimo. Começou a reverberar pela casa o som estridente da campainha. Mal vesti meu roupão e desci rapidamente as escadas.

- OMG morreu...

Isto dito por uma mulher de meia-idade, vestida de luxo, pintada ao estremo, ridícula enfim, a minha mãe:

- Mãe... Não poderia ter ligado para mim?

- Não pude meu filho, o OMG ainda está na cama, todo ensanguentado, lá na minha casa, mal tive tempo de me arrumar e vir aqui...

- Você não fez nenhuma besteira, né mãe?

Disse isto já imaginando a cena com minha mãe desferindo punhaladas fatídicas no peito e adjacências de OMG.

- Eu não mataria nem uma mosca... Como é que faria isto com o OMG?

Ela afirmou de forma lúcida. Absolutamente honesta. Isentando-se. Como que preferindo ir imediatamente à manicure, ao invés de me acompanhar até sua casa. Aliás, foi o que a minha mãe fez:

- Como, mamãe? Você tem coragem de ir à manicure tendo o OMG deitado morto em sua cama?

- Sim... Tenho que relaxar um pouco... Senão sou eu quem vai para o caixão junto com o OMG...

Fui então sozinho à casa de minha mãe. Quis aquilatar os estragos antes de avisar as autoridades locais. E o que vi me chocou profundamente. Isto logo de cara, quando abri o quarto de dormir de mamãe e deparei com aquela cena. Os lençóis amarfanhados. Travesseiros jogados ao chão. Um dos abajures tombado para a esquerda da porta de quem entra, enquanto o outro abajur estava tombado para a direita da mesma porta de acesso. Soma-se a tudo isto que um imenso quadro na cabeceira da cama estava também torto, completamente fora do lugar. No mais tudo estava em ordem. Inclusive nenhum corpo havia ali, nenhum traço de sangue: nada vezes nada!

- A minha mãe endoidou?... Cadê o corpo do OMG?

Não encontrando similar nos anais do crime. Tudo o que se aquilata. Sobremaneira num conto de encurtados propósitos. Quis de viva voz saber o que OMG tinha a ver com a balbúrdia deixada no quarto de minha mãe. Então me dirigi para o estúdio da estação local de rádio, onde encontrei OMG belo e faceiro enquanto desfilava ao microfone seus poemas e canções preferidas. Ele liderava a audiência das dez horas da manhã quando emprestava sua bela voz de barítono ao apresentar sucessos chinfrins da jovem guarda, bem como picles musicais bregas dos anos setenta. Tudo nos conformes do bom entretenimento. Até que OMG me viu por detrás da redoma de vidro que o protegia de curiosos e também dos técnicos da estação de rádio. Ele se assustou vivamente quando me viu ali:

- Ô, garoto... Vejo que está transtornado assim como eu...

- Você transtornado?

Perguntei asperamente para OMG enquanto aguardava explicações:

- A sua mãe veio a óbito... Isto é, faleceu mesmo...

- Heim?

- Sim... Já avisei as autoridades... Ela estava de fato bastante péssima na noite passada... Eu lamento ter de apresentar este programa em meio a tal gravidade... Mas depois veremos... Estando livre daqui vou ver o que posso fazer...

Desci as escadarias da rádio bastante transtornado, até que o porteiro do prédio me avistou e me chamou num canto:

- O que faz aqui menino?

- Vim falar com o OMG...

- Falar com ele?... Isto é impossível...

- O que quer dizer com isto?

- Tanto o OMG como sua mãe faleceram ontem à tarde num acidente de carro... Isto todo mundo já sabe... Você não sabia?


Beto Palaio

março 12, 2014

Woman writing - Pablo Picasso

UM DIA NA VIDA DE TALITA BREVIS.

“Sim. Eu concordo. Mas quem é você?”. A pergunta ficou parada no ar. O que lá fora era bom, útil, verdadeiro ou belo, não tem aqui nenhuma significação. Entretanto. A vida real pulsava ao redor. Os olhos da personagem seguiram o barco e a linha do horizonte. “A partir daqui eu deixarei que ele escreva”, pensou Talita Brevis em voz alta. E sequer quis discordar. “Deixarei que este estranho assuma o posto na redação do capítulo de hoje”, tornou a arrazoar. Foi deste modo, com invasão permitida, que um forasteiro, antecipando-se, tomou o lugar da escritora na elaboração da narrativa do momento. Amiúde. Escrever para Talita seria como entrar num túnel que estivesse constantemente bloqueado por elefantes. Um amálgama vivo, quase medieval, configurava como autorizador do que escrevia. Uma corda atrelada ao feixe. Pensou ela, quando revelou a forma exata de seu estilo. Mas agora era diferente. Ela abrira um precedente para que outra pessoa escrevesse em seu lugar. E a porta do escrever foi declarada aberta. Escancarada, por sinal. Então ocorreu—credo!—uma sucessão de erros. Faltava uma vírgula numa assertiva, protelou-se um ponto e vírgula noutro trecho; além do mais, um “a” obviamente craseado estava sem crase. Ela, a criadora habitual, ruborizou. Jamais cometera um erro que lhe fosse conveniente. E agora isso. Quis desatender a estória contada pelo estrangeiro. Tomou a sua própria mão esquerda e com ela bateu com força na mão direita. A caneta-tinteiro voou longe. Mas o escritor interino, aquele que ocupava agora, de forma autorizada, o lugar de Talita. Apenas fez um gesto de silêncio. Levou o próprio dedo da escritora, em riste, aos lábios dela mesma. Depois estendeu o braço direito da escritora sobre o tampo da mesa e tomou de um lápis. Com ele continuou a redação. Agora de forma apressada. Como numa verdadeira odisseia de seguir o barco e o horizonte de escrever. Ação de rápido efeito. Com este movimento exemplar. O visitante foi aceito e constituído como seu legítimo assessor para a escrita de um texto que ela julgava aleatório, portanto digno de um apressado amassar de papel. Claro. Ela jogaria no lixo o texto que estava surgindo como que psicografado, através dela mesma. Um pequeno diálogo, em presságio, diga-se, foi o que ocorreu com o lápis cantando nas curvas das palavras, ao longo das linhas timbradas do papel:

- Não faça isto...

- Isto o que?

- Não jogue este texto no lixo...

- Como?

- Você sabe do que se trata...

- Mas...

- Agora não atrapalhe... Não mesmo... Ok?

Um silêncio. O relógio da sala batia esguio e voraz em direção ao vindouro. Logo tudo serenou e uma vontade de ser terra dominou a ilha da ponderação que surgia empurrando o mar do desentendimento para longe. “Tudo a calhar”, foi o que ela pensou. “Não deveríamos temer o reflorir de novas ideias. Ou talvez devêssemos temer o reflorir de novas ideias? Com certeza devemos temer o reflorir de novas ideias”. Talita Brevis, a jovem escritora, concedia rápidas considerações que se revestiam da voz secular da literatura, no entanto, agora algo desatenta, enquanto o outro escrevia, olhava lá longe, para o espelho da penteadeira, quando viu ali, ao refletido, alguém colocando uma carta por debaixo da sua porta. Talita compreendia o momento de impasse. O texto sendo escrito por outra pessoa, e ela divagando ao redor, quem sabe procurou pela penteadeira desejando retocar sua maquiagem pessoal? Mas eis. Haja compreensão, isto é o que conta, aos prudentes leitores, assumimos o fato de um conto ser apenas o fragmento de um filme que está ao ponto de ser filmado, mas que de comum nunca chega à fase de produção cinematográfica. Talita Brevis até reparou no enxovalhado de seus sentimentos. Voltou a pensar na carta que alguém colocara sob a porta.  Sentiu uma pontada de zanga, mas também uma leve alegria por estar recebendo um recado de alguém. Com isto. Suspendendo a escrita. Levantou-se da escrivaninha. Foi até a porta de entrada e apanhou a carta que ali fora deixada por alguém. Talita não tem pressa de abrir aquela carta. Voltando para sua mesa de trabalho ela aceita que o outro continue o texto que deveria ser seu.

- Não quer abrir a carta?

- Não agora... Mais tarde eu abro...

- Abra, pois o que se fala na carta tem a ver com o conto que estamos escrevendo "juntos" no dia de hoje...

- E como você sabe disto?

Rapidamente perguntou Talita, olhando para sua própria mão que não parava de se agitar. Obviamente ávida por escrever a próxima linha.

- Acontece que fui eu mesmo quem te mandou essa carta...

- Agora é que não entendo mais nada...

- Quando abrir a carta entenderá...

Talita Brevis ficou olhando a carta com muita curiosidade. Deixou que a mão, até então emprestada a outrem, parasse de escrever, só então ela fez menção de abrir a carta. Tomou o envelope com um carinho injustificado, levou-o aos lábios, como para conferir a maciez do papel que envolvia a missiva, depois passou a rasgar aquela carta. Rasgou tanto que no final parecia que tinha nas mãos um punhado de confetes. A seguir fechou a escrivaninha, e foi até a geladeira para conferir o que havia ali para o lanche da tarde...



Beto Palaio


Imagem: Pablo Picasso - Mulher que escreve - Oleo sobre tela - 1936