abril 26, 2013



AS MORTES DA MORTE EM VENEZA.


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Ao contrário do que todos possam pensar, a presença da socialite Narda Collins não chamou a atenção da imprensa quando de sua chegada em Veneza. Inclusive, seu marido, o disputadíssimo mágico Mandrake Ferrari chegou à cidade uma semana depois de Narda e também quase ninguém se deu conta de sua presença. Numa tarde excepcionalmente quente, ao descer de uma gôndola, Mandrake apenas chamou a atenção de um cineasta sueco, hospedado na cidade havia dois meses com o propósito de filmar cenas avulsas para um videoclip da cantora Agnetha, ex-integrante do grupo musical Abba. Inclusive Gunar Benji, este cineasta, viu quando Mandrake, de fraque e cartola, desceu da barcarola e se dirigiu ao Hotel Giorgione. Mas achou que ele fosse mais um dos figurantes do novo filme que Federico Fellini rodava na Pequena Riviera, uma das dependências de luxo mantidas por Chuck Willcox, cunhado de Ringo Starr e um dos proprietários daquele condomínio de alto padrão. Ocorre que Bradly Cash, construtor de carros de Fórmula Um, estava ao lado de Gunar Benji, o qual fora, no ano anterior, ganhador do Leão de Veneza pelo filme publicitário que mostra um bebê engatinhando sobre uma corda bamba em Viena. Bradly Cash estivera circulando pela cidade numa lambreta de Darrin Gill, fotografo do Vanity Fair. Principalmente cruzando pelas pontes e vielas que cortam o centro e os canais de Veneza. Ele estava a procura da casa de Lubiski Morsini, o gondoleiro, e pediu para Darrin virar à esquerda no final de um corredor de acesso à uma vila residencial.

- Fica frio, Darrin, conheço tudo por aqui... A próxima ruela é a Lista Vecchia...

- Você está certo disso?

- Totalmente...

Mas Bradly Cash estava errado, totalmente errado. A travessa era outra e Darrin parou num beco para pedir informações a um senhor grisalho de chapéu negro e sobre-casaca de veludo cotelê. Este senhor, personagem chave para este episódio de Morte em Veneza, era Eugéne Kjell, chapeleiro francês e amigado, sem intenções de matrimônio, com Grady Catherine, uma advogada inglesa, rotunda e promíscua, associada da empresa GC&GC.

- Sei não... Esses caras estão aqui por algum motivo torpe...

Grady expôs isto para Eugéne, querendo dizer que aqueles dois homens que pediram informações não estavam de forma alguma à vontade como era de se esperar de um turista em Veneza.

- Você não presta atenção em nada, Eugéne... Aqueles homens não estavam simplesmente procurando por alguém... Eles pareciam mesmo estarem se escondendo de alguém...

- Ora, Grady... Lá vem você com suas desconfianças... Vamos aproveitar o dia de sol... Isto sim é o que importa... Estar em Veneza sem um pingo de poesia... Isto é com você... Eu sou francês... Lembra?... Francês...

É segredo ainda. Mas. Veneza ardia em chamas. O sol adentrava os compartimentos luxuosos, sedas, quitutes, sonetos de Shakespeare da cidade. Eugéne tinha razão. Lírios e cravos falsos por toda parte. Sargent aliado à Monet em trapiches e palafitas de pigmentos espargidos em doces confeitos de cor. Quantas estórias de afogamento de egos em Veneza? Caberia entender. Tudo se torna possível. Até aquaplanar nos movimentos que arquitetam os corpos úberes de realizações em improviso. A luz que age e vigia, invariavelmente, a nossa própria incumbência de existir. Para entender essa mágica basta observar a flutuação da luz solar em momentos inatingíveis. Ali, como uma água-viva contornável, tudo invoca por experiências, quiçá as mais intensas, do significado que todas as formas de arte aquilatam. Com afinco e a liberação desses decibéis náufragos, onde nós ajudamos a criar uma experiência abusiva revestida de artifícios encarnados. Como um grande filme, com todas suas atribuições inumeráveis de claro-claro, sombra-sombra, escuro-escuro, nada-nada e morte-morte. No aquático esse resumo subsiste. Informa-se alhures. Somente os bronzes imaculados refletem a chispa. Igualmente, em Veneza, a presença do todo marinho representa uma sinfonia de morte e renascimento. Uma agitação em aceno e momento previamente articulado. Não muito distante da ação do mar aberto. Onde. A onda se anhapa e fluteia e catacraz, canta seu ruído de esgotamento, desaparece e se anhapa novamente, para voltar a ser motriz e com ela seus músculos retesados se recompõe e outra vez se entregam para a inexistência. Sabemos. Traduzir. Do mesmo modo. Nós somos seres compostos de 90% de água. Longitudinalmente. Cada nervo humano é um órgão submarino. Uma cidade submersa também habita dentro de nós. Assim como Veneza, somos um invólucro que protege náufragos. Num espelho. O corpo de Veneza e o corpo humano são similares em tudo. As ribeiras de seus canais. Veias e músculos. Suas entradas e saídas. Relaxam-se. Do Arsenale, ao Cannaregio. Ou no viés: de Dorsoduro até Parco di la Rimembranze. Como numa tuba o som grave reverbera ensino, ao oposto repelido do estiramento, num discurso de bandolim, onde o som metálico, cordas afiadas, causa aprendizagem turística...

- Veja, Eugéne... Há um corpo flutuando perto daquele ancoradouro... Lá, olhe lá... Atrás daquela gôndola azul escura... Não... Naquele canto ali...

Logo chegam as autoridades aduaneiras, fiscais e carabineiros. Além de um grupo fortíssimo de curiosos agrupados em ambos os lados do canal, por fim, chegam os repórteres da TV Raí-Uno com suas câmeras nada discretas, ao que se acrescenta um incontável número de gôndolas que portavam pessoas ainda mais curiosas. Mas, logo ficou claro que não estavam diante de um crime, pois na margem do acanhado píer foi retirado das águas, e acordando aos poucos, um homem de meia-idade que ao microfone da Raí, assim como aos bombeiros e carabineiros, disse se chamar Marcelino Massa. Discorreu ele que era nascido em Parma, onde a tradição da família seria a da fabricação de queijos gorgonzola. Sobre seu provável afogamento nada ficou esclarecido na transmissão matutina da Raí, porque os curadores e diretores da emissora cortaram aquela comédia do afogado estar desperto e falando em bom italiano para uma audiência estupefata. Marcelino Massa, a rigor, foi trocado, ao vivo e a cores, pelo programa Varietá, onde Gianni Morandi cantou Occhi di Ragazza entre floreiras repletas de gerânios azuis.


 Beto Palaio


As Mortes da Morte em Veneza, é um capítulo do livro Pitchula e os Paranóias, livro em progresso livremente inspirado na capa do LP Sargent Pepper´s dos Beatles. 


Pintura: John Piper

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