OS PASSAGEIROS DO BEM-TE-VI INDO NO ITORORÓ DO "ÁI SE CÊSSE".
Desta forma, na semana entrante, num dia
de chuva passageira, rumo à Belém, quatro passageiros adentram à
traineira Bem-Te-Vi, de propriedade dos Irmãos Ligeiro Ltda. Foi, inclusive,
até mesmo um dos irmãos Ligeiro, o Adalgiso Ligeiro, quem recepcionou os
viajantes na prancha de acesso daquele navio mutatis-mutandis, ora sendo de
pequeno, médio e grande calado.
- Sejam bem vindos a bordo... Podem se
acomodar entre aquela pilha de botijões de gás e os engradados de tubaína...
Cuidado para não escorregarem na prancha... Esse rio tem piranha... Êta chuva
besta!... Joga mais areia na prancha aí, ô Jorginho!... Deixa de preguiça,
menino!... O perigo dos passageiros escorregarem para a boca das piranhas é
grande... Mas sejam bem vindos à bordo... Devagar... Devagar...
Adalgiso Ligeiro tratava de orientar a
tudo e a todos. Um homem competente estava ali. Pessoa do bem. Bom marido e bom
cristão. Um ex-marujo que serviu no SS Atlantic, um navio de guerra panamenho
que foi afundado em águas russas por um contratorpedeiro austríaco. Adalgiso
sofreu o diabo na mão dos nazistas. Foi enviado ao campo de refugiados de
Dauchau. Confundido com um aviador americano. Mergulhado em merda até o pescoço
na fossa comunitária do campo de concentração. Mas nunca fraquejou, nem entregou
seus superiores hierárquicos. Era em meio às maiores agruras que ele pensava em
seu torrão natal, o seu querido Pará, agora apenas denominado como “uma das
Sesmarias da região Norte”.
- O Pará agora está na merda, como
eu fiquei em Dauchau... Mas os governos mudam... Logo o Pará será libertado
como um dos países mais progressistas do mundo...
Era com esta confiança libertária que
Adalgiso Ligeiro guiou, por anos à fio, o seu navio Bem-Te-Vi através dos
meandros da foz do Amazonas, fugindo de troncos flutuantes, cantos de sereia,
pororocas aflitivas. Essa sempre foi sua lida. Enfrentar o rio-mar, até que
chegasse ao remanso de costear a Ilha do Marajó, mantendo-se na rota
ida-e-volta para Belém do Pará.
- O Bem-Te-Vi já vai partir...
Tomem os seus lugares... O Bem-Te-Vi já vai partir!
O calor da selva sufoca. Borrachudos
mordem. Carapanãs picam. Velhas feridas abrem. Alguns passageiros
já estavam a bordo. Muitos com seus apetrechos e pertences. Alguns
carregando seus avultados de caça, outros os seus aparteados serelepes de
peixes miúdos, estes acomodados em caixa de isopor. Por todo lado. Desta forma.
Saltando pacotes e pacotilhas. Ao tropeçarem numa rede de pesca mal arranjada
no tombadilho. Enquanto Barral Dipitôngui, Magaly Translúcida, Chefe Yanomami e
Makulelê seguiam para seus respectivos camarotes. Ouviam-se conversas
repartidas. Pedacinhos sofridos de um moleque com fome, gritando pela sua
rapadura. Ou de uma mulher barriguda sentindo enjôos pelo balanço do barco. Ou
mesmo conversas recortadas, como se eles estivessem dentro de um elevador, onde
os passageiros contavam seus causos, iam embora, e ninguém soubesse no que
continuaria aquilo:
- Nem que o Fubá venha com o circo
armado... Hoje não vou dar para ele de jeito nenhum...
Isto disse uma moça por nome Estrela, que depois passou a falar baixinho com a sua amiga que estava por demais ocupada em tentar abrir, com os dentes, uma garrafa de Coca-Cola. Mas nem de Fubá, nem de Estrela os nossos viajantes souberam mais. Passaram rapidamente pela classe econômica, felizes da vida, isto sim, como que num filme de embromação, trocando alhos por bugalhos, coisas das estórias pós-estapafúrdias, onde um simples navio-gaiola, bem amazonense, é subitamente trocado por um transatlântico, onde os hospedes comandados por Barral Dipitôngui estão rumando, tudo cercado de risos havaianos, londrinos e curitibanos, para o compartimento das piscinas, no deck inferior daquele estupendo navio.
- Ah... Sim... Ia me esquecendo... Traz
um Martini também para a senhorita Magaly...
Ali, no itororó do “ai se cêsse”,
as muitas barcas partiam. Fervilha a água barrenta a hélice de proa. Acolá o
dia promete ser quente. Flutuam divindades gregas na brotoeja da procela. O
rio-mar lambe palmas, e corpos de bichos, e mil lâminas de sol, e capins
mastigados, e solertes flores despregadas em argilazinhas a boiar. As
chapuletas de avinhão, vindas desde o mar azul, chegam até ali. No recôncavo de
chupar rios. O mato ribeirinho barrento doa chorumes. Em sobe-desce de
cantinflas oportunidades. Ao regurgitar dragões de silêncios sepulcrais. A mata
espessa aceita o abafadiço fluvial.
Beto Palaio
Trecho de
meu livro PITCHULA E OS PARANÓIAS que a caterva de Brasilia deve estar torçendo
para que nunca seja publicado... Ái se cêsse!!!