outubro 31, 2013


OS PASSAGEIROS DO BEM-TE-VI INDO NO ITORORÓ DO "ÁI SE CÊSSE".


Desta forma, na semana entrante, num dia de chuva passageira, rumo à Belém, quatro passageiros adentram à  traineira Bem-Te-Vi, de propriedade dos Irmãos Ligeiro Ltda. Foi, inclusive, até mesmo um dos irmãos Ligeiro, o Adalgiso Ligeiro, quem recepcionou os viajantes na prancha de acesso daquele navio mutatis-mutandis, ora sendo de pequeno, médio e grande calado.


- Sejam bem vindos a bordo... Podem se acomodar entre aquela pilha de botijões de gás e os engradados de tubaína... Cuidado para não escorregarem na prancha... Esse rio tem piranha... Êta chuva besta!... Joga mais areia na prancha aí, ô Jorginho!... Deixa de preguiça, menino!... O perigo dos passageiros escorregarem para a boca das piranhas é grande... Mas sejam bem vindos à bordo... Devagar... Devagar...


Adalgiso Ligeiro tratava de orientar a tudo e a todos. Um homem competente estava ali. Pessoa do bem. Bom marido e bom cristão. Um ex-marujo que serviu no SS Atlantic, um navio de guerra panamenho que foi afundado em águas russas por um contratorpedeiro austríaco. Adalgiso sofreu o diabo na mão dos nazistas. Foi enviado ao campo de refugiados de Dauchau. Confundido com um aviador americano. Mergulhado em merda até o pescoço na fossa comunitária do campo de concentração. Mas nunca fraquejou, nem entregou seus superiores hierárquicos. Era em meio às maiores agruras que ele pensava em seu torrão natal, o seu querido Pará, agora apenas denominado como “uma das Sesmarias da região Norte”.


- O Pará agora está na merda, como eu fiquei em Dauchau... Mas os governos mudam... Logo o Pará será libertado como um dos países mais progressistas do mundo...


Era com esta confiança libertária que Adalgiso Ligeiro guiou, por anos à fio, o seu navio Bem-Te-Vi através dos meandros da foz do Amazonas, fugindo de troncos flutuantes, cantos de sereia, pororocas aflitivas. Essa sempre foi sua lida. Enfrentar o rio-mar, até que chegasse ao remanso de costear a Ilha do Marajó, mantendo-se na rota ida-e-volta para Belém do Pará.


- O Bem-Te-Vi já vai partir... Tomem os seus lugares... O Bem-Te-Vi já vai partir!


O calor da selva sufoca. Borrachudos mordem. Carapanãs picam. Velhas feridas abrem. Alguns passageiros já estavam a bordo. Muitos com seus apetrechos e pertences. Alguns carregando seus avultados de caça, outros os seus aparteados serelepes de peixes miúdos, estes acomodados em caixa de isopor. Por todo lado. Desta forma. Saltando pacotes e pacotilhas. Ao tropeçarem numa rede de pesca mal arranjada no tombadilho. Enquanto Barral Dipitôngui, Magaly Translúcida, Chefe Yanomami e Makulelê seguiam para seus respectivos camarotes. Ouviam-se conversas repartidas. Pedacinhos sofridos de um moleque com fome, gritando pela sua rapadura. Ou de uma mulher barriguda sentindo enjôos pelo balanço do barco. Ou mesmo conversas recortadas, como se eles estivessem dentro de um elevador, onde os passageiros contavam seus causos, iam embora, e ninguém soubesse no que continuaria aquilo:


- Nem que o Fubá venha com o circo armado... Hoje não vou dar para ele de jeito nenhum...

Isto disse uma moça por nome Estrela, que depois passou a falar baixinho com a sua amiga que estava por demais ocupada em tentar abrir, com os dentes, uma garrafa de Coca-Cola. Mas nem de Fubá, nem de Estrela os nossos viajantes souberam mais. Passaram rapidamente pela classe econômica, felizes da vida, isto sim, como que num filme de embromação, trocando alhos por bugalhos, coisas das estórias pós-estapafúrdias, onde um simples navio-gaiola, bem amazonense, é subitamente trocado por um transatlântico, onde os hospedes comandados por Barral Dipitôngui estão rumando, tudo cercado de risos havaianos, londrinos e curitibanos, para o compartimento das piscinas, no deck inferior daquele estupendo navio.


- Ah... Sim... Ia me esquecendo... Traz um Martini também para a senhorita Magaly...


Ali, no itororó do “ai se cêsse”, as muitas barcas partiam. Fervilha a água barrenta a hélice de proa. Acolá o dia promete ser quente. Flutuam divindades gregas na brotoeja da procela. O rio-mar lambe palmas, e corpos de bichos, e mil lâminas de sol, e capins mastigados, e solertes flores despregadas em argilazinhas a boiar. As chapuletas de avinhão, vindas desde o mar azul, chegam até ali. No recôncavo de chupar rios. O mato ribeirinho barrento doa chorumes. Em sobe-desce de cantinflas oportunidades. Ao regurgitar dragões de silêncios sepulcrais. A mata espessa aceita o abafadiço fluvial.



Beto Palaio



Trecho de meu livro PITCHULA E OS PARANÓIAS que a caterva de Brasilia deve estar torçendo para que nunca seja publicado... Ái se cêsse!!!

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