fevereiro 14, 2014


OI, COMO VAI VOCÊ?... TUDO BEM?

Que o garoto dela lhe dê presentes. Ela é mulher vaidosa, aceita ser contemplada por mimos. Para mim não há prazer nisso. Não sei o que sou na vida dela. Fecho a cara quando ela me mostra esses penduricalhos. Que me trocasse por um presente desses. Fútil pensar assim. Será que valho uma tiara de diamantes?... Será?

Uma passagem para três. Por quanto tempo demorará meus erros? Ela pensa nele. Eu visto meu terno cinza e vou à luta. Nunca chove no Afeganistão. Li isso numa dessas colunas do jornal que distribuem no metrô. Pensando no tema. O amor será assim? Seco para uns, enxurrada para outros?

-Me faça o favor? Ao sair do quarto deixe a luz acesa!

Esse foi o aviso da minha esposa ao me ouvir dizer que estava indo para o computador escrever minha autobiografia. Eu tinha acabado de desligar o telefone no quarto depois de concordar, comigo mesmo, que iria começar a escrever aquilo de qualquer jeito.

- Não acho que esteja pronto para escrever suas memórias hoje... Você não está no seu melhor momento.

Ela me disse isto sem remorso. Havia algo que não suportávamos mais um no outro. Não tínhamos mais remorsos em nos ferir mutuamente. Mas quem se importa com isto?

- Eu sei que não estou no meu melhor momento, mas é por isso mesmo que quero cavoucar no passado...

Disse isto saindo do quarto.

- Apenas deixe a luz acesa!

Ela disse sem tirar os olhos de um livro que lia na cama.

Eu não duvidava que pudesse iniciar minha autobiografia às onze horas da noite daquela segunda-feira. A sorte, seja lá o que eventualmente nos favoreça, correu em meu favor naquele momento. Imaginei-me dentro de um carro, parado no farol vermelho. É incrível como as ideias nos ocorrem quando estamos dirigindo a esmo. Da janela do carro eu imagino que há uma pessoa me olhando do carro ao lado. É isto mesmo o que acontece. Um belo rosto de mulher olha diretamente para mim, enquanto baixo o vidro do meu carro para ouvir o que ela me diz.

- Você está livre esta noite? Quer me fazer um pequeno favor?

Dei de ombros, achando que surgia ali um inicio de paquera, sei lá.

- E que favor seria esse?

Respondi com um olho nela e outro no farol que podia abrir a qualquer momento.

- Já que vai escrever uma autobiografia, não se esqueça de colocar como início o momento exato em que nos conhecemos...

A porta do descrever ficou totalmente aberta naquele momento, pois foi exatamente deste modo que as coisas aconteceram e foi também deste modo que a minha mulher acabou sendo a estrela principal no primeiro capítulo do livro que escrevo sobre mim mesmo.



Beto Palaio

fevereiro 13, 2014


O MENINO DA PORTEIRA

Escorre por um fio o pio do uirapuru. O céu arrepiou de subir de novo. Foi como se disse. No que se disse. A mentira que se narrava nas esquinas e botecos. Além da lenda. Buchichos nas igrejas e nas casas de oficio fácil. O começo do mundo é que não era. Chovera muito. Semana inteira de neblina e chuvarada. Aqui a estória do fim se inicia. Pelo fim é que se morde o rabo da cobra. E não é que PP morreu mesmo? Pequerrucho Piemontês, este o nome do eterno prefeito de nossa cidade.

 - O PP sempre se esquecia do hoje agora. Se administrasse era para algo vindouro. Acolá sendo sua mira de tiro...

“Em dez anos o mundo será outro”, dizia Pequerrucho, “armas e corações estarão irmanados. O mundo se tornará algo frio e indiferente. Nem amor nem guerra comandarão as futuras pelejas humanas”. Enquanto isto nossa cidadezinha se espreguiçava como um lagarto ao sol. Nada fazia crer nas mudanças imaginadas por PP. Lembro-me perfeitamente disto. Houve um dia que trabalhei ao lado do prefeito Pequerrucho Piemontês. Lado a lado. Limpando uma bagunça que com o tempo foi acumulada no alto do campanário da única igreja de nossa cidade.

- Menino, pegue esse rolo de tapetes podres e jogue pela janela...

Eventualmente ele me tinha sob controle, podia ouvir seus comandos, respiração entrecortada, vassourão na mão, olhos esbugalhados pelo esforço de carregar tralhas. Não demorou muito tempo para limparmos aquela bagunça. Eu, jovem ainda, estava com o corpo moído pelo esforço da faxina. PP no entanto parecia cada vez mais disposto, principalmente nos últimos arremates da limpeza.

- Agora me ajuda a carregar algumas coisas da prefeitura para cá... Vou transformar isso aqui no meu escritório privativo...

De fato o campanário da igreja logo ganhou luzes noturnas, pois PP vinha para lá após o turno diário dos seus deveres como prefeito de nossa cidade. Foi assim que ele começou a ganhar fama de bruxo.

- O PP está doidinho... Quem é que vai lá para descobrir as bruxarias dele?

Um convescote de pessoas despeitadas chegou até a porta de minha casa pedindo providencia. Afinal eu era o ajudante de ordens do prefeito e deveria saber se a cidade corria perigo tendo um dirigente assim profanador das ordens espirituais reinantes. De fato a incumbência dos injuriados chegou à raia dos fatos:

- Ou você vai secretamente ver o que está ocorrendo, ou nós iremos de tocha em punho colocar fogo no campanário!

Achei por bem ir até o campanário e ver o que estava acontecendo no cubículo onde se escondia diariamente o prefeito. Já nas escadarias de acesso à cúpula eu podia sentir o forte cheiro de vela derretida com enxofre. Uma luz bruxuleante saía das frinchas da porta de acesso ao escritório de PP. E ele, misteriosamente, adivinhou minha chegada:

- Moleque, chegou em boa hora. Pode entrar. Vai me ajudar numas coisinhas.

Quando entrei tomei um susto. Havia dois PPs na saleta. Esfreguei os olhos achando que era defeito de minha visão. Mas era verdade. Os dois prefeitos estavam olhando para mim com o mesmo ar de incredulidade que eu demonstrava. Então a dupla se dirigiu a mim com a incumbência:

- Vá até a porteira da fazenda do Neco e espere lá até o amanhecer... Leve esse pacote que um amigo nosso vai retirar com você... Não se assuste... Aceite isto como uma responsabilidade municipal...

Si-si-si-si-si. As cigarras estavam ruidosas no amanhecer daquele dia de verão de 1967. Acordei ao lado da porteira. Não tinha mais o pacote que “os prefeitos” me confiaram. Aliás, nem lembrava, naquele momento, de que vira dois PPs no reduto do campanário. Foi com espanto que despertei ouvindo as cigarras. Depois bati com as mãos na minha calça jeans e agitei minha camisa para retirar o excesso de poeira que se acumulara por eu ter dormido no chão de terra. Logo rumei de volta para a cidade, mas sem pressa nenhuma...


Beto Palaio



Conto do livro TRAÇOS DE POLARÓIDE, somente composto de "estórinhas estranhas" que escrevo no momento.