AQUARELAS DE BETO PALAIO
(Todas em papel Vergê 220 grs, tamanho 44x32 cms)
"No Sireama" - Aquarela e plástico derretido - Beto Palaio – 2002
"Será Arte" - Aquarela e plástico derretido - Beto Palaio 2001
setembro 30, 2008
setembro 22, 2008
Nos anos 60 Carlos Heitor Cony lançou vários livros de peso, muitos confessionais. Depois sumiu, andou pelo jornalismo, até ser redescoberto nos anos 90. INFORMAÇÃO AO CRUCIFICADO foi escrito em formato de diário, quem conhece a biografia do autor pode achar que é confessional, eu acho isso. O título é o vol .32, da célebre Coleção Vera Cruz, da Civilização Brasileira, lançado em 1961. Muitos romances foram escritos em forma de diário, este parece ser um deles, e este blog pretende juntar estes diários “ficcionais” também, de modo que não estranhem. O pedaço do diário abaixo corresponde ao começo do livro.
1944
7 de março
Dia de São Tomás de Aquino. Padroeiro dos filósofos, padroeiro da divisão. Sim, filósofo, olho-me no espelho cheio de importância, sou um filósofo, o italiano que me fez a batina nova botou no embrulho: “Ao filósofo João Falcão, no 28”, sou eu mesmo, filósofo João Falcão.
Data festiva no Seminário. Fim do longo retiro espiritual com que se inicia o ano letivo.A semana inteira em silêncio, muita capela, muita conta de rosário desfiada silenciosamente sob pátios coloniais.
Pela manhã: o jesuíta que fez as prédicas exaltou a alegria da Fé, a dignidade do Altar, a felicidade da vida cristã e devota. Convidou-nos a combater o bom combate.
Missa da comunidade celebrada pelo Senhor Arcebispo, na capela externa – nossa antiga capela colorida por vitrais de tardes de sol começou a ser demolida sob as picaretas que o Arcebispo benzeu há tempos e que deverão destruir o velho casarão bicentenário. Sobre as ruínas de dois séculos começam a edificar um seminário estranho ao meu coração.
O Deo-gratias no refeitório, pelo café da manhã. Pe. Reitor surgiu na porta principal:
- Benedicamus Domino!
- Deo-gratias!
De inicio um leve sussuro. Gradativamente o borborinho cresceu, tímido. E logo atingíamos ao tom habitual – barulho de duzentos rapazes, quase algazarra.Reencontro com o mundo, silêncio mutilado.
Habituara-me ao sossêgo daqueles dias. Sentia as palavras hostis. Ante a balbúrdia geral descobria na voz humana sons desagradáveis, todos, não é à-toa que os pássaros fogem do homem. Durante sete dias , rezara, ouvidos abertos à voz misteriosa que soa dentro, oculta-presente sempre. A Voz. Voz que um dia ouvi, inadiável: “vem e segue-me” . Fui.
Vozes:
- Passa a moringa.
- Olha a manteiga.
Olhei a moringa. Passei a manteira. Fui.
Irritação. Eduardo, a meu lado, catucou-me com o braço:
- Desembucha logo!
(Desembucha)
Falar, após sete dias de silêncio – uma capitulação. Há homens que não falam. Loucos, mudos. Ah, há também trapistas, fazem voto de silêncio. Pe. Cipriano quando esteve na Itália visitou o convento da Ordem, viu o frade velhinho que chorava quando ouvia voz humana.
Animais também não falam. Ou falam? Bolas, sou homem – um filósofo – dotado de inteligência e voz, falar é um direito, somos reis da Criação por privilégios assim.
Rei da Criação. Chamei o copeiro, mostrei a xícara:
- Olha que porcaria!
Vim ao estudo. Meu irmão deu-me um caderno grosso, lombadas verdes – completamente ridículo. Não me servirá para nada. Parece tombo de cartório, livro de Haver e Dever , algo estúpido assim.Penso em aproveita-lo com apontamentos de Lógica, mas já tenho caderno iniciado no ano passado.
Problema: que fazer do verde? Todos aqui fazem diário. Professôres há que recomendam a prática . Nunca disse nada, mas acho cretino se fazer diário. Vício manso, secreto. Não há de ser nada, vai ser mesmo diário.
A primeira página se foi.Pensei registrar tudo, não deixar um acontecimento sem registro. Acontece que não aconteceu nada – afora a mutilação do silêncio.
Há que ter história na vida de um rei – nada mais triste que rei sem história. Basta-me a lucidez: Rei da Criação. Tenho alma e uma enternidade a ganhar. Tarefa mais dura não há.
(Texto postado por João Antonio Bührer, no Grafolalia, em 2002)
setembro 14, 2008
O FORRÓ XIQUE XIQUE
Eu vi o cego lendo a corda da viola
Cego com cego no duelo do sertão
Eu vi o cego dando nó cego na cobra
Vi cego preso na gaiola da visão
Pássaro preto voando pra muito longe
E a cabra cega enxergando a escuridão
Eu vi a lua na cacunda do cometa
Vi a zabumba e o fole a zabumbá
Eu vi o raio quando o céu todo corisca
E o triângulo engulindo faiscá
Vi a galáctea branca na galáctea preta
Eu vi o dia e a noite se encontrá
Eu vi o pai eu vi a mãe eu vi a filha
Vi a novilha que é filha da novilhá
Eu vi a réplica da réplica da bíblia
Na invenção dum cantador de ciençá
Vi o cordeiro de deus num ovo vazio
Fiquei com frio te pedi pra me esquentá
Eu vi o cego lendo a corda da viola
Cego com cego no duelo do sertão
Eu vi o cego dando nó cego na cobra
Vi cego preso na gaiola da visão
A asa branca, a asa branca, a asa branca
E a cabra cega enxergando a escuridão
Eu vi a lua na cacunda do cometa
Vi a zabumba e o fole a zabumbá
Eu vi o raio quando o céu todo corisca
E o triângulo engulindo faiscá
Vi a galáctea branca na galáctea preta
Eu vi o dia e a noite se encontrá
Eu vi o pai eu vi a mãe eu vi a filha
Vi a novilha que é filha da novilhá
Eu vi a réplica da réplica da bíblia
Na invenção dum cantador de ciençá
Vi o cordeiro de deus num ovo vazio
Fiquei com frio te pedi pra me esquentá
Tom Zé e Arnaldo Antunes
FORRÓ XIQUE XIQUE
Eu vi o cego lendo a corda da viola
Cego com cego no duelo do sertão
Eu vi o cego dando nó cego na cobra
Vi cego preso na gaiola da visão
Pássaro preto voando pra muito longe
E a cabra cega enxergando a escuridão
Eu vi a lua na cacunda do cometa
Vi a zabumba e o fole a zabumbá
Eu vi o raio quando o céu todo corisca
E o triângulo engulindo faiscá
Vi a galáctea branca na galáctea preta
Eu vi o dia e a noite se encontrá
Eu vi o pai eu vi a mãe eu vi a filha
Vi a novilha que é filha da novilhá
Eu vi a réplica da réplica da bíblia
Na invenção dum cantador de ciençá
Vi o cordeiro de deus num ovo vazio
Fiquei com frio te pedi pra me esquentá
Eu vi o cego lendo a corda da viola
Cego com cego no duelo do sertão
Eu vi o cego dando nó cego na cobra
Vi cego preso na gaiola da visão
A asa branca, a asa branca, a asa branca
E a cabra cega enxergando a escuridão
Eu vi a lua na cacunda do cometa
Vi a zabumba e o fole a zabumbá
Eu vi o raio quando o céu todo corisca
E o triângulo engulindo faiscá
Vi a galáctea branca na galáctea preta
Eu vi o dia e a noite se encontrá
Eu vi o pai eu vi a mãe eu vi a filha
Vi a novilha que é filha da novilhá
Eu vi a réplica da réplica da bíblia
Na invenção dum cantador de ciençá
Vi o cordeiro de deus num ovo vazio
Fiquei com frio te pedi pra me esquentá
Tom Zé e Arnaldo Antunes
FORRÓ XIQUE XIQUE
setembro 13, 2008
The Title
One evening just lately, as I was coming back from town to Engenho Novo on the Central line train, I met a young man from this neighborhood, whom I know by sight: enough to raise my hat to him. He greeted me, sat down next to me, started talking about the moon and ministerial comings and goings, and ended up reciting some of his verses. The journey was short, and it may be that the verses were not entirely bad. But it so happened that I was tired, and closed my eyes three or four times; enough for him to interrupt the reading and put his poems back in his pocket.
"Go on," I said waking up.
"I've finished," he murmured.
"They're very nice."
I saw him make a move to take them out again, but it was no more than a move: he was put out. Next day, he started calling me insulting names, and ended up nicknaming me Dom Casmurro. The neighbors, who dislike my quiet, reclusive habits, gave currency to the nickname, and in the end it stuck. Not that I got upset. I told the story to some of my friends in town, and they call me it too for fun, some in letters: "Dom Casmurro, I'm coming to dine with you on Sunday." "I'm going to Petropolis, Dom Casmurro; it's the same house in Renania; see if you can't drag yourself away from your lair in Engenho Novo, and come and spend a couple of weeks with me." "My dear Dom Casmurro, don't think I'm letting you off the theater tomorrow. Come and spend the night in town; I'll give you a box, tea, and a bed; the only thing I can't give you is a girl."
Don't look it up in dictionaries. In this case, Casmurro doesn't have the meaning they give, but the one the common people give it, of a quiet person who keeps himself to himself. The Dom was ironic, to accuse me of aristocratic pretensions. All because I nodded off! Still, I couldn't find a better title for my narrative; if I can't find another before I finish the book, I'll keep this one. My poet on the train will find out that I bear him no ill will. And with a little effort, since the title is his, he can think the whole work is. There are books that only owe that to their authors: some not even that much.
Machado de Assis, in Dom Casmurro
First page of Dom Casmurro < New York Times files.
setembro 07, 2008
O Barbeiro
Eu sou um barbeiro, isto é uma coisa que pode acontecer a qualquer pessoa e eu quero dizer que até esse dia fui um bom barbeiro, pois cada qual tem as suas manias e eu não gosto de borbulhas...
O caso aconteceu assim: comecei a barbeá-lo calmamente, ensaboei-o com habilidade e afiei a navalha no braço da cadeira e depois suavizei-a na palma da mão. Pois saibam que eu sou um bom barbeiro, porque nunca cortei ninguém e ainda por cima esse tipo não tinha uma barba muito espessa, mas tinha borbulhas.
Até devo reconhecer que nas suas borbulhas não havia nada de especial, no entanto incomodavam-me, revolviam-me as tripas. A primeira borbulha que estava à vista contornei-a bem, sem grande dificuldade. Mas a segunda começou a sangrar e então, não sei o que me deu, acho até que é uma coisa muito natural: aprofundei a ferida e depois sem poder deixar de o fazer, com um só golpe... Cortei-lhe a cabeça!
Max Aub
Eu sou um barbeiro, isto é uma coisa que pode acontecer a qualquer pessoa e eu quero dizer que até esse dia fui um bom barbeiro, pois cada qual tem as suas manias e eu não gosto de borbulhas...
O caso aconteceu assim: comecei a barbeá-lo calmamente, ensaboei-o com habilidade e afiei a navalha no braço da cadeira e depois suavizei-a na palma da mão. Pois saibam que eu sou um bom barbeiro, porque nunca cortei ninguém e ainda por cima esse tipo não tinha uma barba muito espessa, mas tinha borbulhas.
Até devo reconhecer que nas suas borbulhas não havia nada de especial, no entanto incomodavam-me, revolviam-me as tripas. A primeira borbulha que estava à vista contornei-a bem, sem grande dificuldade. Mas a segunda começou a sangrar e então, não sei o que me deu, acho até que é uma coisa muito natural: aprofundei a ferida e depois sem poder deixar de o fazer, com um só golpe... Cortei-lhe a cabeça!
Max Aub
setembro 05, 2008
No Caminho de Swan.
Voltava a adormecer, e às vezes só despertava por um breve instante, suficiente para ouvir os estalos orgânicos do madeirame, abrir os olhos para encarar o caleidoscópio da escuridão e desfrutar, graças a um clarão momentâneo da consciência, do sono em que estavam mergulhados os móveis, o quarto, aquele todo do qual eu não era mais que uma parte ínfima, e a cuja insensibilidade rapidamente regressava. Ou então, enquanto dormia, havia regredido sem esforço a uma era para sempre passada da minha vida primitiva, voltando a encontrar alguns de meus terrores infantis como o de que meu tio-avô me puxasse pelos cachos do cabelo e que se dissipara no dia em que—data, para mim, de uma nova era—os havia cortado. Este acontecimento, eu o esquecera durante o sono, porém sua lembrança vinha-me logo que atinava em despertar para fugir às mãos de meu tio-avô, e por medida de precaução envolvia completamente a cabeça com o travesseiro antes de retornar ao mundo dos sonhos. Às vezes, como Eva nasceu de uma costela de Adão, uma mulher nascia durante o meu sono, de uma falsa posição de minha coxa. Originária do prazer que eu estava a ponto de sentir, julgava que ela é quem o oferecia. Meu corpo, que no dela sentia o meu próprio calor, procurava unir-se a ele, e eu acordava. O resto dos seres humanos parecia-me algo bem remoto comparado àquela mulher que eu havia deixado momentos antes; minhas faces ainda estavam quentes do seu beijo, meu corpo sentia-se dolorido pelo peso do seu. Se, como às vezes ocorria, ela apresentasse as feições de uma mulher que conhecera na vida, ia dedicar-me totalmente a esse objetivo: encontrá-la de novo, como os que seguem viagem para ver com os próprios olhos uma cidade desejada e imaginam ser possível desfrutar, em uma realidade, o encanto do sonho. Aos poucos, a sua lembrança se esvaecendo, eu esquecia a filha do meu sonho.
Marcel Proust
No Caminho de Swan < Leia o trecho completo.
Voltava a adormecer, e às vezes só despertava por um breve instante, suficiente para ouvir os estalos orgânicos do madeirame, abrir os olhos para encarar o caleidoscópio da escuridão e desfrutar, graças a um clarão momentâneo da consciência, do sono em que estavam mergulhados os móveis, o quarto, aquele todo do qual eu não era mais que uma parte ínfima, e a cuja insensibilidade rapidamente regressava. Ou então, enquanto dormia, havia regredido sem esforço a uma era para sempre passada da minha vida primitiva, voltando a encontrar alguns de meus terrores infantis como o de que meu tio-avô me puxasse pelos cachos do cabelo e que se dissipara no dia em que—data, para mim, de uma nova era—os havia cortado. Este acontecimento, eu o esquecera durante o sono, porém sua lembrança vinha-me logo que atinava em despertar para fugir às mãos de meu tio-avô, e por medida de precaução envolvia completamente a cabeça com o travesseiro antes de retornar ao mundo dos sonhos. Às vezes, como Eva nasceu de uma costela de Adão, uma mulher nascia durante o meu sono, de uma falsa posição de minha coxa. Originária do prazer que eu estava a ponto de sentir, julgava que ela é quem o oferecia. Meu corpo, que no dela sentia o meu próprio calor, procurava unir-se a ele, e eu acordava. O resto dos seres humanos parecia-me algo bem remoto comparado àquela mulher que eu havia deixado momentos antes; minhas faces ainda estavam quentes do seu beijo, meu corpo sentia-se dolorido pelo peso do seu. Se, como às vezes ocorria, ela apresentasse as feições de uma mulher que conhecera na vida, ia dedicar-me totalmente a esse objetivo: encontrá-la de novo, como os que seguem viagem para ver com os próprios olhos uma cidade desejada e imaginam ser possível desfrutar, em uma realidade, o encanto do sonho. Aos poucos, a sua lembrança se esvaecendo, eu esquecia a filha do meu sonho.
Marcel Proust
No Caminho de Swan < Leia o trecho completo.