setembro 22, 2008
Nos anos 60 Carlos Heitor Cony lançou vários livros de peso, muitos confessionais. Depois sumiu, andou pelo jornalismo, até ser redescoberto nos anos 90. INFORMAÇÃO AO CRUCIFICADO foi escrito em formato de diário, quem conhece a biografia do autor pode achar que é confessional, eu acho isso. O título é o vol .32, da célebre Coleção Vera Cruz, da Civilização Brasileira, lançado em 1961. Muitos romances foram escritos em forma de diário, este parece ser um deles, e este blog pretende juntar estes diários “ficcionais” também, de modo que não estranhem. O pedaço do diário abaixo corresponde ao começo do livro.
1944
7 de março
Dia de São Tomás de Aquino. Padroeiro dos filósofos, padroeiro da divisão. Sim, filósofo, olho-me no espelho cheio de importância, sou um filósofo, o italiano que me fez a batina nova botou no embrulho: “Ao filósofo João Falcão, no 28”, sou eu mesmo, filósofo João Falcão.
Data festiva no Seminário. Fim do longo retiro espiritual com que se inicia o ano letivo.A semana inteira em silêncio, muita capela, muita conta de rosário desfiada silenciosamente sob pátios coloniais.
Pela manhã: o jesuíta que fez as prédicas exaltou a alegria da Fé, a dignidade do Altar, a felicidade da vida cristã e devota. Convidou-nos a combater o bom combate.
Missa da comunidade celebrada pelo Senhor Arcebispo, na capela externa – nossa antiga capela colorida por vitrais de tardes de sol começou a ser demolida sob as picaretas que o Arcebispo benzeu há tempos e que deverão destruir o velho casarão bicentenário. Sobre as ruínas de dois séculos começam a edificar um seminário estranho ao meu coração.
O Deo-gratias no refeitório, pelo café da manhã. Pe. Reitor surgiu na porta principal:
- Benedicamus Domino!
- Deo-gratias!
De inicio um leve sussuro. Gradativamente o borborinho cresceu, tímido. E logo atingíamos ao tom habitual – barulho de duzentos rapazes, quase algazarra.Reencontro com o mundo, silêncio mutilado.
Habituara-me ao sossêgo daqueles dias. Sentia as palavras hostis. Ante a balbúrdia geral descobria na voz humana sons desagradáveis, todos, não é à-toa que os pássaros fogem do homem. Durante sete dias , rezara, ouvidos abertos à voz misteriosa que soa dentro, oculta-presente sempre. A Voz. Voz que um dia ouvi, inadiável: “vem e segue-me” . Fui.
Vozes:
- Passa a moringa.
- Olha a manteiga.
Olhei a moringa. Passei a manteira. Fui.
Irritação. Eduardo, a meu lado, catucou-me com o braço:
- Desembucha logo!
(Desembucha)
Falar, após sete dias de silêncio – uma capitulação. Há homens que não falam. Loucos, mudos. Ah, há também trapistas, fazem voto de silêncio. Pe. Cipriano quando esteve na Itália visitou o convento da Ordem, viu o frade velhinho que chorava quando ouvia voz humana.
Animais também não falam. Ou falam? Bolas, sou homem – um filósofo – dotado de inteligência e voz, falar é um direito, somos reis da Criação por privilégios assim.
Rei da Criação. Chamei o copeiro, mostrei a xícara:
- Olha que porcaria!
Vim ao estudo. Meu irmão deu-me um caderno grosso, lombadas verdes – completamente ridículo. Não me servirá para nada. Parece tombo de cartório, livro de Haver e Dever , algo estúpido assim.Penso em aproveita-lo com apontamentos de Lógica, mas já tenho caderno iniciado no ano passado.
Problema: que fazer do verde? Todos aqui fazem diário. Professôres há que recomendam a prática . Nunca disse nada, mas acho cretino se fazer diário. Vício manso, secreto. Não há de ser nada, vai ser mesmo diário.
A primeira página se foi.Pensei registrar tudo, não deixar um acontecimento sem registro. Acontece que não aconteceu nada – afora a mutilação do silêncio.
Há que ter história na vida de um rei – nada mais triste que rei sem história. Basta-me a lucidez: Rei da Criação. Tenho alma e uma enternidade a ganhar. Tarefa mais dura não há.
(Texto postado por João Antonio Bührer, no Grafolalia, em 2002)
Nenhum comentário:
Postar um comentário