MILE DONA
E A DESCOBERTA DO AMOR.
Menina de engenho. Sim, ela é uma
menina de engenho. Que definição mais sublime! Tudo se abarca quando o aforismo
procede. Como aquele que disse da literatura possuir um algo infalível, píncaro
de definições, entretanto vítima nas mãos de tradutores infantis e derrotados. Entretanto.
Quando entra a vontade de embrenhar-se na serralha da palavra, nada afugenta
quem assim procede. Haja paciência, compreende-se assim. Se há algo que queima
mais que o desejo da escrita, isto desconhece Mile Dona. Ela dedica sua existência
para escrever. Refém do aqui agora. A luz que está brilhando através das
cortinas de seu refúgio não é estática. É a luz do dia, infindável, entregue à volatilização,
sendo lenta, mas em constante caminhar. No entanto. Juntamente com a moça que
está diante de seu computador. Ela que fica toda dormente ao digitar estórias.
Vem agora encolher seus dedos e tornar a esticá-los com a intenção de descanso,
após um longo dia de trabalho em um dos romances que escreve. Mile Dona está
preocupada com o texto que se mostra nu e exposto. A fragilidade de sua nudez parece
alinhar-se com o fraquejar do ser humano perante as últimas tragédias ocorridas
no início deste milênio. A questão para a escritora não transparece a necessidade
de mostrar os horrores sofridos pelas vítimas de alguma violência específica,
mas na somatória de eventos que caracterizam o fim da humanização em particular.
A jovem autora levanta-se de sua escrivaninha e vai até a janela. Mile Dona, a
escritora, está tão perto do local da queda do World Trade Center. “Sou vizinha
do caos”, como ela bem define. Contudo. Ainda pela manhã. Mile Dona estava sentada na relva, onde se deslumbrava com o domingo ensolarado ao redor. Ela vê as pessoas
que se ocupam em aproveitar o dia à beira de um lago artificial em pleno
Central Park. Mile Dona tem em suas mãos uma margarida a qual,
despreocupadamente, desfolha:
- Sim, sou uma escritora, adoro
escrever... Não, não sou uma escritora, tudo dá errado nas minhas estórias...
Sim, sou uma escritora, as palavras parecem me obedecer... Não, não sou uma
escritora, nem sempre entendo o que escrevo... Sim, sou uma escritora, a
palavra para mim é música que me embala... Não, não sou uma escritora, quase
sempre perco a partitura e a música fica truncada... Sim, sou uma escritora, a
literatura é poesia que inspira... Não, não sou uma escritora, pois meus
diálogos são muito pouco poéticos... Sim, sou uma escritora, pois penso e logo
existo... Não, não sou uma escritora, pois uso do pensamento alheio como se
fosse meu... Sim, sou uma escritora, já que me emociono até as lágrimas com que
escrevo... Não, não sou uma escritora...
Há na penteadeira de Mile Dona a
imagem de uma menina com cerca de quatorze anos. Essa menina loura aparece ali
bela, confiante, com a risonha expansão da inocência a iluminar-lhe o rosto.
Sua boca é uma cereja. É fatal compará-la com este fruto. Imagina-se mais. A
brisa de Maio brinca alegremente com os vastos anéis dos seus cabelos dourados.
Nos seus olhos acinzentados, de extraordinária altivez, crepita sua jovialidade.
O motivo arde ao redor. Talvez seja a primavera. Algo ali palpita. É a alegria
de existir na mocidade em flor. Pois, embora o leitor mal possa aquilatar tal
feitiço, nesse rosto encantador, conservado com zelo, num camafeu de carinhos herdados,
que se abrira hoje sem limite para considerações, posto que a autora tente
traduzir fielmente o enleio daquela miniatura, apenas adormecida, em uma
pequena foto emoldurada, perpetrada havia mais de cem anos.
- Esta menina passou pela
existência... Foi alguém como eu... Sentiu fome... Sentiu sede... Sentiu
medo... Sentiu solidão... Foi amada... Foi desprezada... Foi alguém... Enfim!
Agora restrita ao camafeu. Aquela
menina chama-se Aniela. Jovem vizinha de um pintor que um dia bateu à sua porta
com um belo ramo de violetas. Ele precisava dividir seus segredos com alguém. Ao
propósito de que. O artista vira em Aniela o refúgio adequado para depositar
seus arroubos de pintor. Naquele momento em que lhe abre a porta. Aniela tem
certeza de que as violetas são algo mais que a cortesia de doar flores. Com
aquele gentil ato. Elas faziam-se acompanhar pelo sorriso da bela jovem. Mas
que sorriso! Um minuto antes eram bem lúgubres os pensamentos do pintor André
de Castro. Vivia ele na confusão de monstros, demônios e bruxas que povoavam
seus quadros, entrevia amargamente no espírito humano, o símbolo da sua
existência atribulada. Um pouco antes de ter a idéia de entregar flores à
Aniela. Estava triste tal sua própria extenuação de entusiasmo. Porém a gentil
visão da moça dispersara todos os fantasmas, como um facho luminoso dissipa as trevas.
André de Castro sentiu o coração bater-lhe com força desusada. Isto era júbilo!
Teve uma vertigem e baixou os olhos, enquanto o ardente sangue dos seus vinte e
cinco anos fazia retumbar-lhe aos ouvidos, em grande orquestra, uma
arrebatadora sinfonia de esperança. Sim, tudo porque a sua bela vizinha Aniela
aceitara suas flores. O fulgor que agora brilharia em sua existência deve
alvíssaras àquele primeiro lume do sorriso de Aniela.
- Nossa... Isto surgiu assim do
nada... Só de olhar essa foto antiga... Será que há uma verdade por trás do que
escrevi?
Para a escritora Mile Dona tudo
não passara de uma miragem. Foi apenas um relâmpago fugaz. Pois. Na visão que desaparecera.
Uma janela fechou-se. E se André de Castro desejasse continuar a conquista de seu
amor Aniela, e não pudesse? Ou será que poderia? Bastava Mile Dona querer, porque
lhe tremiam os dedos e ela os esticava para assim tornar a dedilhar nas teclas
de seu computador. Eis que André de Castro abandonou a palheta, e foi sentar-se
a um dos cantos do seu atelier com os cotovelos fincados nos joelhos e a cabeça
entre as mãos. A noite lhe surgiu mansamente, para surpreendê-lo deste modo.
Então cada objeto assumiu para ele um aspecto fantástico; parecia-lhe que, em
volta de si, aromatizava o ar um suave perfume de violetas. Ali, em silêncio,
ele imaginava ouvir os passos de Aniela na casa vizinha. Aplicou mesmo o ouvido
para isto, e julgou perceber um eco longínquo de uma canção entoada por voz de
anjo. Jurou que ouvia, adrede à essa maviosa voz, um acompanhamento de uma harpa,
ou de uma lira, ou mesmo de um alaúde. Só então. André olhou para a penumbra de
seu atelier e concebeu ali o seu próximo quadro. Ele anteviu nesse imaginado trabalho
um turbilhão de cabeças louras, iluminadas por grandes olhos cinza esverdeados.
Entretanto, por toda a parte, no centro de sua morada, restavam em acomodação
suprema, os modelos de gesso, os cavaletes, as paredes nuas, entre as vigas do
teto, ao meio das telas já esboçadas, afiguravam-se-lhe, muito embora, sempre ver
um sorriso de anjo, um ramo de violetas, uns olhos cinza esverdeados e uns cachos
de cabelos louros.
- Será assim o nascedouro do
amor? perguntou Mile Dona a si própria, tomando-se já por responsável pelo
destino de André de Castro.
Beto Palaio
Capitulo
do livro em progresso Pitchula e os Paranóias, sendo este a parte inicial do
capitulo 6 (AS MIL MULHERES EM MILE DONA)..
Pintura: o poeta Robert Burns por autor desconhecido.