maio 03, 2013



AS MORTES DA MORTE EM VENEZA

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R. M. Balarabechár, o Taturana, era o chefe dos mendigos da região do Mercado Central, em Londres. Ocorre, entretanto, que na ocasião de sua prisão em Veneza, ele já havia perdido a cidadania inglesa, e ali prosperara sob a nacionalidade italiana. Tudo pelo fato de haver encontrado, num monturo de lixo, próximo à entrada principal da abadia de administração da Igreja de Westminster, uma pasta com cinco mil ações ao portador de uma empresa italiana de transportes coletivos, a Tramontana SPA.

- Magníficas são as criaturas que perdem os seus pertences mais nobres...

Falou R. M. Balarabechár, o Taturana, ao achar aquela pasta com milhares de ações ao portador, diante do que tratou de ficar de soslaio na região da abadia por mais um ou dois dias.

- Quem sabe eles se livram de mais ações ordinárias ao portador...

Mas essa remessa extra de ações ordinárias não veio e Balarabechár, o Taturana, tratou de ir, ainda naquela semana, ao consulado italiano reclamar do inverno de Londres e também de uma frieira que ele cultivava no entrededos de seu pé esquerdo. Algo bastante desusado para o expediente do cônsul italiano, na verdade um cônsul honorário e, portanto, não necessariamente italiano. Diga-se, en passant, que o cônsul havia nascido na região carvoeira da Cornualha, próximo ao istmo de Devon, e seu nome era Joseph Bédier III, bisneto do escritor cornualhês Joseph Bédier, autor de “O Romance da Guerra dos Cem Anos”, sucesso na Londres provinciana no início do século XX, principalmente na sua versão folhetinesca lançada por um jornal sem muita expressão na época, mas conhecido posteriormente como The Guardian.

- Pois não, Senhor... Sim, sim... Caríssimo Senhor Balarabechár... O que “nós” italianos poderemos fazer pelo senhor...

- “Vocês” italianos poderão arranjar uma acomodação decente para este pobre cidadão inglês, mas com vista a um passaporte permanente de dupla cidadania no país de “vocês”... Italianos...

- E o ponto seria?

Como R. M. Balarabechár, o Taturana, não entendeu exatamente o que o cônsul estava querendo dizer com “o ponto”, retrucou com a mesma pergunta:

- E o ponto seria?

- Meu caro cidadão inglês R. M. Balarabechár... Com “o ponto” eu quero dizer... Desculpe... Aceita chá?... Com açúcar?... Está bom assim?... Ótimo... Mas voltando ao assunto... Eu somente estava perguntando o motivo de o senhor vir a um consulado de outro país solicitar cidadania... O senhor é algum fugitivo da lei?... Não?... Mas desculpe... Não, não... Não me interprete mal, senhor Balarabechár... São os ossos do ofício... Perguntas pertinentes... Mas repito então... Qual é o ponto?

- Excelentíssimo Senhor Cônsul Joseph Bédier III... Venho neste solene momento pedir minha transferência para Veneza no sentido de que... Grato, o chá estava ótimo... No sentido de que vou tomar posse como novo membro da diretoria de uma empresa de nome Tramontana SPA, por certo, como representante daquele país, o senhor deve conhecer esta empresa...

- Sim, claro... Mas, qual é o ponto?

- O ponto é que um cidadão inglês pode e deve tomar posse da diretoria de uma empresa estrangeira... Mesmo que essa empresa seja italiana... Se ele conseguir provar por “a” mais “b” que realmente é oficioso de tal função...

- Sim, claro... Mas, permita lhe perguntar pela sexta vez... Qual é realmente o ponto, Senhor Balarabechár?...

- O ponto... Sendo absolutamente prático... É que sou o legitimo proprietário de cinco mil ações da Tramontana SPA... Com isto me julgo no direito de cuidar dos meus interesses num país estranho... Mesmo que seja a Itália... O senhor não concorda?

- Claro... Agora sim... Chegamos ao ponto... Mas veja bem... Nada é simples como parece... Há um trâmite burocrático que... Vou ser mais latino do que  anglo-saxão agora... Se o senhor me permitir a franqueza... Mesmo para nós, italianos, porém sem abandonarmos a cidadania inglesa, o senhor me entende, não é?... Mesmo para nós levaria um bom tempo para provarmos certos detalhes legais...

Diante da tremenda burocracia apresentada pelo consulado italiano em Londres, não restou ao cidadão R. M Balarabechár, senão uma única saída: buscar no submundo dos falsários de documentos de Londres alguém que conseguisse uma maneira de transformá-lo num legitimo cidadão italiano.

Foi somente quando ele doou, ainda em Londres, uma centena daquelas ações para Isabella Deleon Contarini, esposa de um doge de Florenza, que conheceu através Virginie G., copeira de um nobre inglês, a qual dividira com ele alguns copos de cerveja maltada no balcão do Pub Fifty-Nine. Assim, com sua determinação de conseguir a cidadania italiana, ele acaba também por conhecer Ramus Sanford Jr., um iatista irlandês que era amigo de uma pessoa influente no setor documental dos arquivos da INRI, Ingerência Nacional e Regional de Informações. Essa pessoa era o despachadíssimo Dr. Demosthenis Lemuel, advogado da família Real e conselheiro de vários clubes de rugby da Inglaterra e Reino Unido.

- Agora sim, tenho a nacionalidade que preciso para tomar posse da empresa Tramontana SPA...

Isto disse R. M Balarabechár rasgando tudo o que possuía da antiga cidadania e dando boas vindas à nova documentação que o transformava inclusive em aposentado na função de gondoleiro em Veneza. É um recém empossado cidadão italiano que se apresenta nos balcões da British Airways para embarcar para Veneza:

- Sou Lubiski Morsini... Desculpe meu sotaque inglês pronunciado... Mas sou italiano desde criancinha... Sim, já tenho a carteira de vacinas e também o carimbo da alfândega inglesa... Grato... Espero mesmo fazer uma boa viagem até Veneza... Tenham todos uma boa tarde!


Beto Palaio

Trecho de uma série de mini-contos que fazem parte de um capítulo do livro (em progresso) que é Pitchula e os Paranóias, livremente inspirado na capa do LP Sargent Pepper´s dos Beatles.

Imagem: Pintura de Annibale Carracci

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