setembro 22, 2011

A DEUSA DIANA EM COPACABANA

Plumas de luzes. Limas descascadas exalando sumos. Lívido saltitar de clarões. Lanhos da generosa fruta. Lumes na espuma do mar. À chama de imensa alma pura. Frisos de danças flamejantes. Estava despontando o sol. Será luz ainda esse tapete de mar? Misto de encenação em mão-dupla. Ou será mar ainda esse tapete de luzes? O irreal é sempre embriagante. Mesmo as ondas construtivistas, preto no branco, nas calçadas de Copacabana. Onde uma eleita finge-se de estátua. Ela é uma moça formosa, totalmente nua, pintada de cores, uma só, ao corpo inteiro, a cor prateada. Fazia isso para sobreviver no Rio de Janeiro. Um palco para o fingimento de que é uma deusa grega. Uma Diana, deusa da caça, abusando do arco e flecha. Seu arco está tensionado, com uma flecha pronta para disparar, e mais flechas estão guardadas em alforje de caçadora. Dependurado no seu ombro. Tudo pintado na cor prata, menos o olho que escapava de se tornar, também, escultura. Onde um pedestal elucida. Diana é, mil e um, espelhos. Do sol. Um caleidoscópio de ilimitadas facetas. Um, mil, vários milhares de espelhinhos, reverberação da prata, em cabeça, tronco e membros. Ela, Liz Clara, a Diana, andava cansada de posar como estátua viva, cercada por curiosos que não lhe ofereciam nada. Um povo apressado em seu mundinho transilvânico, passando por ali como numa festa, turistas em despedidas, ou festivos, lambendo sorvetes, melados de protetor solar, seus flashs ocasionais. Outros nem tanto, caras conhecidas, gente humilde, trabalhadores em escritórios, balconistas, merendeiras, vendedores de salgadinhos e mate gelado em tambores de alumínio. E os infalíveis, por fim, pentelhos, zoando, tirando sarro, torcendo para que a deusa Diana falhasse. Vindo a perder a mão e soltar a flecha em alguém. “Quer flechar meu coração, boneca?”, um sujeito branquelo, com cara de viciado em crack, que rodava o tempo todo uma pedra de gelo dentro de um copo de caipirinha. A moça Liz Clara, que finge ser a deusa do amor, sabe do tempo que rege tudo. De tanto observar o mundo de forma estática. Ela conhece os movimentos e duração de qualquer ato humanamente possível. “Uma pedra de gelo demora vinte e sete minutos para derreter totalmente”, ela pensa seguindo o homem do copo com o canto de olho. A flecha é de mentira, mas seus olhos fuzilantes estão aqui. Copacabana é uma cadeia a céu aberto. Crimes para criar asas. Morcegos aqui, de ponta cabeça, pombos lá, sem cabeça. “Tente facilitar Nossa Senhora de Copacabana!”. Nossas perdas, algumas dela mesma, nenhuma. “Meus olhos foram feitos para apagar tudo o que é ruim”. Ela revela. A um moço loiro. Para o rapaz que aprecia a sua mantilha de tintas prateadas. Ela conta tudo. Que viera de Recife. Morou lá até estudar Letras. Esse moço loiro disse que também era poeta: “moro no Edifício Capanema, ali quase todos são artistas... Não quer conhecer meus poemas e livros?”. Esse jovem a cativava. Ia e vinha. Por vezes sumia. E quando o moço loiro sumia, ela não era mais Diana que prestasse. Ficava avoada, com a flecha vazia na mão. Ela afirmava que sim. Como um estúpido cupido. Liz Clara, a Diana, sabia que toda mulher aspira tornar-se caçadora. Sofria pela ausência dele. Então o moço apareceu num Abril, às dez e trinta e cinco da manhã de uma quinta-feira cedo. Sorria muito para ela. “Venha sair do sol, Diana”. Ele não a chamava ainda pelo nome. Era a única pessoa em Copacabana para quem ela revelaria seu verdadeiro nome. Tinha prazos com ele. Ela que já sofrera na mão dos homens. Lembranças brutas do Recife. Ao seu lábio mordente, a gulosa, cobiça pós-adolescentes, em mando, das proximidades, ímpares. "Assim não...”. Quando Diana é mais reclusa, ou sem destino ainda. Liz Clara passou além da felicidade, na sua antiga escola primária, onde taradinhos, dois ou três forçando, de ansiedade, raiva, tesão injustificada, no rapto, eles no cio, ela não. Partiu de Recife num comboio hippie. Dormiram em praias. Complementos de um teto, senão o das estrelas. Veio namorando um menino negro. Eles salgados de tanto mar e beijos. No Rio, perto de Búzios, se separaram. Agora aquele moço loiro, com seus olhos verdes, debruçados sobre o seu todo prateado. “Você disse que se chamava Isolda. Porque isso? Espera que eu diga que me chamo Tristão?”. Assustada, com, ou sem, respostas. “Mas eu sou mesmo Isolda”, mentiu ela que era, também, toda olhos, por trás da máscara de tinta prateada. “Então devo conquistá-la para o meu rei?”, disse o rapaz, já sentado no pedestal, bem perto dela. “Que rei é esse?”, ela pergunta, mas logo entende tudo de regências, pois o moço bonito aponta para si mesmo: “o rei está dentro de mim”. Lindo isso! Tanto que. Liz Clara treme. Como se não existisse o suportado, momentos assim, sentir o que sentira. Olhou para o lado. “Amar é isso?”, pensou. Mas desconversou, subitamente, do moço. Seus anseios estavam confusos. Ela nua. Coberta de tinta. Os seios pintados de prata. Púbis coberto por tênue biquíni pintado também de prata. Sua alma se derretendo para o moço. “Será amor?”. De onde ela retiraria forças para ser um anjo tentador, e se ele a visse apenas como uma vagabunda, e a levasse aos porões do Edifício Capanema? Liz Clara teme por isso. “E se ele levar-me ao porão?”. Ela se recorda do estupro em Recife quando três rapazes a carregaram para o porão da escola. Mundo cão, com caninos babentos de machos. Ela treme só de pensar. “Não”, ela diz, sem pensar. Sente uma cisma de roedores. Detesta os ratos que se escondem nos homens. “Não”, ela repete. Ela agora sente fome. No entanto está com o moço que gosta. Quer dizer isso a ele. Mas não diz. Ela descera do pedestal e estavam sentados na mureta da praia de Copacabana. Seu corpo de deusa grega completamente pintado. “Vou fazer pipi”, disfarçou ela. E sem pedir licença atravessou a avenida para entrar na lanchonete do outro lado. Ali ela pediu uma bebida energética e um pãozinho com manteiga. O moço que serve o balcão pergunta, todo sorrisos: “e aí, Deusa, tá tudo bem? Alguma novidade?”. Ela fica quieta. Num segundo ela é prisioneira de seu próprio passado. Seus parentes judeus ainda estão lá no Recife, e sequer sabem dela. Uma luz difusa nos mangues. Ali vegetam. Uma outra raça de brasileiros. Pessoas com o corpo completamente tomado pela lama, caçando caranguejos nas locas do Capibaribe. Os portões de ferro do internato de moças. A cor prata que ela escolheu para ser a caçadora. As mãos de seu pai cruzadas sobre o peito no caixão fúnebre. O estupro. Suas leituras na sala silenciosa da biblioteca do convento. Seu interesse pelo moço loiro. Seus medos. Ela se lembra de tudo. “Quando era menininha pensava que o mar surgisse de um buraco que Deus abrira. Uma fonte imensa de água salgada”, pensou Liz Clara tomando um energético, sentada no tamborete daquele bar na beira da praia de Copacabana. Depois olhou para o outro lado da avenida, o moço loiro ainda estava lá, acenando para ela.

Beto Palaio

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