maio 04, 2013



AS MORTES DA MORTE EM VENEZA

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Cuore, cosa fai, che tutto solo te ne stai. O trem havia acabado de chegar. Um pequeno grupo encontrava-se na plataforma da Estação Santa Lucia. Ninguém mais além daquelas poucas pessoas à espera, assim como, ao redor dali, algo fantasmagórico permanecia, ao percorrer as ruas em passos brancos, a madrugada, fria, inconteste, mãe das neblinas, inconvencional, impenetrável, ao livre-arbítrio, porém, inútil, em sua decisão irrestrita, com seu nebuloso manto, de ocultar a realidade. Aos olhos da vida, entretanto, nada fica escondido inutilmente. “O mundo é uma biblioteca sem paredes”, isso disse Charles Farias, um turista refinado, culto, e amigo de Mandrake, que veio se despedir dele e de sua mulher Narda à estação. Ainda ontem o pequeno grupo de amigos que ora se reúne na Estação Santa Lucia, estava tomando parte da alegre festa do Carnaval de Veneza. Eis que. Entretanto. Curta é a jornada do artesanato delituoso. Durante a folia, Mandrake aproveita a presença de alguns policiais e se aproxima do gondoleiro Lubiski Morsini, aliás, R. M. Balarabechár, retira-lhe a máscara e chama os policiais: “prendam esse homem, ele é o responsável pelos crimes que ocorreram em Veneza!”. Há uma comoção geral ao redor, inclusive Lubiski Morsini, isto é, R. M. Balarabechár, tenta fugir, mas é impedido por um carabineiro um pouco mais valente. Depois desta discreta baderna, máscaras repostas, tudo ao redor dali—salas acarpetadas, corredores decorados, candelabros cintilantes, escadarias encastoadas, atracadouros febris, barcas no ir e vir, edifícios na penumbra, salgadas águas confinadas aos canais—tudo volta a respirar em quietude. Il sole alto splende già sulla città. Al buio tu non guarirai, non stare lì, dai retta a me. Já dentro do trem, Mandrake põe-se a resumir mentalmente sua passagem por Veneza. “Quando cheguei havia esse hotelzão de frente para a laguna. O porteiro desconhecia a velha etiqueta francesa de carregar malas. Tive de abordar o balcão de chek-in às voltas com minha velha dorzinha de coluna. E mais ainda. Sobre o balcão havia um desses sininhos consumidos pelo uso, típicos das portarias de hotel, mas que ao soar ninguém atendia; para completar, a parede em frente ostentava uma placa desumana: "não temos TV nos quartos". O que dizer? Que a ardente Veneza está às moscas?” Di là dai vetri forse c'è, una per te, per te. Quando o trem parte da estação. Mandrake permite que Narda se ajeite ternamente, algo sonolenta, recostada ao seu ombro. “Tantas aventuras juntos”, ela suspira. Em sua feminilidade extravagante. Narda às vezes se torna uma especialista em discorrer futilidades. Observava as etiquetas sociais como se fossem normas litúrgicas. Passava horas dando detalhes de como dobrar um guardanapo à mesa. Além disto dizia coisas absurdas em reuniões importantíssimas, como aquela afirmação de que fazia torta de maçã com qualquer fruta que tivesse à mão: cerejas, damascos, groselhas ou amoras pretas. Perguntada se uma torta feita com outras frutas não deixaria de ser a verdadeira torta de maçã, ela respondia rindo, mas num tom lacônico: “e eu deixaria de fazer torta de maçãs somente pela falta das maçãs?”. No entanto, entre suas jocosas declarações surgia eventualmente uma jóia como esta: “Acho que Deus mora em Nova York... Numa esquina... Os Pretenders... Na outra... Ottis Redding... Na outra... O Buddy Holly... E por fim... Elvis Costello...”. Almeno guarda giù  che tra la gente che vedrai c'è sempre una, una che è come te... Mandrake é quem discorre, vendo a paisagem correr, partindo de Veneza, além das janelas do trem: “enquanto no hotel, eu aguardava pela chegada de Narda, ela mais uma vez se distraíra fazendo compras, atraída pelas vitrines da caríssima Veneza, inclusive, ela nunca escondeu que preferia estar em Miami a estar em Veneza. E gabava-se daquela cidade na Flórida: “tem muita coisa estranha por lá... Como aquela horrível estátua de um ônibus espacial feita de cimento, ou daquele show com uma baleia cantora, ou daquele imenso jacaré empalhado na entrada da biblioteca da cidade, mas em compensação tem gente de camisas e shorts coloridos e biquínis pouco convencionais”. Un viso anonimo che sà l'ingratitudine cos'è, e una parola troverà anche per te, per te... “No entanto não existe mulher mais leal no mundo. Companheira de todas as horas. Mantenedora de meus truques de mágica, os quais não revela nem para as amigas mais íntimas. Além disto, Narda é excepcionalmente corajosa. Ainda nesta semana, à caça de indícios de uma pista para decifrarmos os crimes que ocorreram em Veneza, fiquei com dó da coitadinha. Estávamos encurralados pela perseguição que nos infringiu um escroque da cidade, quando chegamos a um ponto sem saída. Não tive dúvidas, gritei para Narda: “pule no canal!”, e Narda saltou para as águas sujas de salinidades, musgos e tralhas. Pulei atrás dela e juntos ficamos no resguardo da soleira de uma ponte, ocultos sob ela até que o perigo passasse”. E allora te ne vai, non hai perduto niente ancora. A un'altra vita, un altro amore non dare mai. “Nesta noite chegamos à conclusão que não valia mais a pena ficar nesta cidade perfumada aos marasmos dos influxos e refluxos do Adriático. Em meio a esta sonolência chuvisquenta. Recebemos uma ligação de Lothar, nosso guarda-costas, sempre fiel e destemido. Ele viajara antes de nós para o Brasil, onde ali cuidaria do desembaraço de nosso arsenal de mágica na alfândega. Teremos um show de mágicas patrocinado pela Rede Globo, mas Veneza ainda nos empresta a preguiça de partir. Narda está mais aflita que eu para ir embora daqui: “vamos, amor, acho que não temos mais nada para fazer aqui”. Olho para ela um tanto sonolento, coloco os dedos entre as cavas laterais de meu impecável colete negro e fico duvidando que ela esteja mesmo com pressa: “mas acabamos de solucionar o caso das mortes em Veneza”. Ela me fitou sem piscar, riu e me pediu uma mágica para comemorarmos pelo quebra-cabeça que se tornara a investigação das mortes naquela cidade: “e então?”, Narda ficou me desafiando. Então apanhei minha cartola de mágico que estava ao pé da cama e com um assovio de surpresa retirei dela uma bela rosa vermelha. Ela não pediu por outra mágica, pois agora queria mesmo é se ocultar entre lençóis de seda: “me deixa retribuir pela rosa?”. Claro que deixei que ela retribuísse com seus carinhos. Foi assim que passamos nossa última noite naquele hotel em Veneza”. Il sole alto splende già, sul viso anonimo di chi, potrà rubarti un altro sì, un altro sì... Il mondo é lì. È lì....


Beto Palaio


Ultimo dos trechos que compõe este conto que faz parte do livro Pitchula e os Paranóias (em progresso) inspirado livremente na capa do LP Sargent Pepper´s dos Beatles.

Música: Anônimo Veneziano, com Tony Renis.

2 comentários:

Thereza Christina Rocque da Motta disse...

Beto, o melhor da literatura é nos transportar para algum lugar. Se o texto faz isso, então ele é ótimo.
Parabéns.

Beto Palaio disse...

Grato, Thereza... Você sabe melhor que ninguém desses tapetes voadores que nos levam para longe (mas que também nos derrubam eventualmente)... Grato pelas palavras... bjs