A CACHACEIRA CISMOU DE
PASSAR POR AQUELE LUGAR
A cachaceira cismou de tomar assento naquele
lugar. Terras de Sinhozinho. Vexame para sua única filha. Ela velhusca já, com
excessos de amarelos nos dentes, dada ao vicio do cigarro. Não havia quem
chegasse, passando em beira de cerca, de longe que seja, e logo se calasse,
cerrando os lábios, muito com receio de ciladas indizíveis, ou quando, mato
ralo e arvoredos adiante, não tomassem medidas. Fileiras em remela de segredos.
Falando de um ao outro que ali estivesse. Por esse lado do caminho fundo eu não
passo. Foge, Zé, está brotando uma nuvem de temporal bem nas terras de
sinhozinho. Aquilo é terra de lobisomem, aliás, todo mundo diz que Sinhozinho
desvira de ser lobisomem em tempo de lua cheia. Ditos esses do povo medroso da
região. Chega um Domingo, tem gente enfeitada de festa que canta na procissão
da vila. Neste dia o Sinhozinho veio de charrete para comprar uma fanfúrria de
litro da melhor pinga que houvesse. Uns cismaram que ele estava estranho. Notem
que o velho está cuspindo por demais, não parece exagero, compadre? Outro
falava na esquina para um grupo de homens sujos de terra vermelha pela labuta
na enxada do canavial. Ele nunca passeia de charrete sem a filha do lado, aí tem
coisa, gente, aí tem coisa. Neste Domingo, o Sinhozinho tomou uma talagada de
pinga do próprio gargalo, antes mesmo de subir de volta à charrete. O seu
cavalo resfolegou, deu um passo para trás, sentiu o peso do dono nos estribos e
partiu apressado de volta ao sítio. Houve que o fato de Cismágica, a filha de
Sinhozinho, não ter vindo à cidade colocou o povinho em quarentena. Uma
conversa que começou desfiada na esquina, tomou corpo de bela costura nas
conversas de porta afora, meninas-moças dependuradas em janelões, tanto quanto,
mulheres caseadeiras sentadas em pano de alpendre. Delas, Cismágica era o tema.
Umas diziam que a filha de Sinhozinho era uma sem-vergonha desmiolada desde
nascença. Mazelas desse teor. Quando num pavão misterioso de revelações, brilhos
que palavras novas contêm, alguém revelou que Cismágica não era velha coisa
nenhuma. Ela que aparente assaz idade nos quarenta e tantos, mas não passa de
vinte oito, vinte nove, trinta, por essas contas. Sendo moça, quando foi, era
muito formosa a Cismágica, disse uma das que conversavam muito. Arrefeciam ali
num cisca-cisco de rosca, em floreios sem fim, sobre Sinhozinho e sua única
filha. Essa uma, a que mais falava, ainda disse que pelo jeito de cuspir sem
parar do Sinhozinho havia algo de nojo. Esse homem deve ter feito alguma coisa
de muito arrependimento. Não viram a pinga que ele tomou sem mesmo deitar
homenagem ao santo do dia? Por esse momento, tomou-se como arrimo o fato de
nunca se contar a veracidade dos fatos. Ponderar e mentir eram a mesma coisa.
Um homem José que passava escutou que falavam de Sinhozinho. Ele parou um
bocadinho. Espiou suas chances de entrar na conversa. Quando abriu uma clareira
no mato de palavrear, ele o José, disse que conhecera Sinhozinho desde moço. Um
sujeitinho ordinário é o que ele sempre foi, podem procurar de farol e
farolete, está para nascer melhor fatiado e arreganhado nos orgulhos que esse
Sinhozinho. Dizia José, Sinhozinho não vale o que come, e ainda se julga o
irmão caçula de Deus aqui na região. Fez esse José o sinal da cruz quando uma
das moças arreganhou os beiços para dizer que tanto o pai quanto a filha
deveriam ser bruxos. Eles não se vestem só de preto? Pois então? Dizia essa
moça que vinha de ser a mulher do vendeiro da cidadezinha. Uma moça ainda
bonita, mas com poucos dentes na cara. Para o marido ela se negava a fazer
carinhos, dizem. Que esse vendeiro por apelido Meio Quilo nunca mais tomou
liberdades com sua própria madame esposa. Esse Meio Quilo deve de fazer suas
porcarias é na mão mesmo, com o cuspe certo para escorregar a bronha. Mas
naquela hora ninguém se lembrava do Meio Quilo, pois o homem José veio com uma
proposta para resolver a questão de Sinhozinho em juntado com a filha
Cismágica. Se vocês quiserem, podemos entrar nas terras do Sinhozinho pelo lado
do bambuzal para ver, preto no branco, o que realmente acontece lá dentro. Foi-se
uma quinzena, se tanto. Agora era tempo de jabuticabas. O perfume delas
enfeitava o caminho. Já dentro das terras de Sinhozinho. Eles viram de longe.
Um vulto branco perto da casa antiga do fazendeiro e da filha. Tomaram aquilo
como insulto de assombração. Não parariam mais de vigiar por causa de um pano
branco. Uns. Umas. Vinte pessoas. Esses. Outros. Com paus e pedras. Dez a
quinze passos da varanda da casa eles pararam. A turba enlouquecida. Depois
chamaram por Sinhozinho. Contudo. Quem saiu na varandinha suja foi a filha
Cismágica. Ela gritou, pregou um susto, chamou a atenção do pai lá dentro,
ainda. Pai venha cá que tem gente com pau e pedra e espingardas. São jagunços
pai. Pega na cartucheira. Vem aqui. Nem esperaram. Cismágica foi arrastada pelo
povo apressado e morta ao perto de um varal onde lençóis brancos flanavam ao
vento. Depois veio o Sinhozinho. Gritava muito. Babava. Tinha a camisa rasgada já
pelo povinho da discórdia. Ele Sinhozinho respirou pela última vez, sopro
miúdo, abraçado com a filha. Só depois é que se ouviu choro de criação lá
dentro da casa. Os brutos povos voltaram-se para a varanda. Umas porcas com
suas crias estavam na soleira da porta. Todos os porcos choravam. Degrau a
degrau eles desceram, porcos e leitões, a escadaria do alpendre. Depois foram,
chorando sempre, lamber os corpos de Sinhozinho e Cismágica. Em seguida vieram
os bois e vacas e bezerros que desceram desde o pasto. Estes também lambiam a
morte dos donos. Depois os cães. Depois os pássaros todos. Patos, galinhas,
marrecos. Além deles os passarinhos soltos das árvores. Estes pousavam no chão,
em derredor dos corpos mortos. Então uma luz muito forte surgiu, sabe-se lá de
onde, e fez desaparecer tanto Sinhozinho quanto Cismágica. Em jeito de sim. Que
estória mais remota esta. Minha tataravó foi amiga de Sinhozinho. Minha bisavó
namorou com ele, chegaram até a noivar. A prima de minha bisavó casou-se com
ele, mas não teve filhos. A minha avó foi Cismágica. A minha mãe foi neta de
Sinhozinho. Eu sou pai de uma bisneta de Cismágica. Moramos no mesmo lugar, eu
e minha filha, ela também se chama Cismágica, e na vila me chamam também por
Sinhozinho. Hoje vou lá comprar uma garrafa de aguardente. Faz tempo que não
saio daqui para ir à cidade...
Beto Palaio
Arte:
Pintura de Nerival Rodrigues - 2009
Nenhum comentário:
Postar um comentário