PARECIA CONTO RUSSO
Parecia um conto russo. Muito longe.
Avistava uma penca de galhos retorcidos e um vulto que se distanciava pela
Alameda dos Enjeitados. Sentiu um calafrio e passou rente ao sujeito que exibia
na panturrilha direita a tatuagem de um batráquio, gratuito e despropositado.
Tartaruga negra gigante. Vira o tal sujeito, bermuda vermelha, tênis mostarda.
Cabelos pintados de azul, a camisa escura com dizeres que não compreendia e
mochila de tecido xadrez. Todo ele contrastava com a paisagem lúgubre de conto
russo. Nataschas, Pietrovnas, Ivanovnas, Irganovich, Pietrovich, Serguei,
Dimitris. Podia sentir a neve em flocos cair-lhe sobre os ombros. Não sabia o
que comer e onde dormir. A Alameda dos Enjeitados. Pensava motel, aluguel e
dívidas. Em que leito deitaria mágoas vãs, em que cantos sombrios se arrastaria
após o vinho, a aguardente sem fim que o despejava nos túmulos de agrupamentos
contingentes, quando saía à madrugada sem consentimento ou fio de vida. Nada de
fogo, somente ladeiras sem sentido. Turistas dobravam a esquina sorrindo.
Ruínas do Parque. As crianças dentuças e oblíquas o viam como o homem que
corria solitário na esteira de um cinema antigo, preto e branco, imagem rota,
esguia e triste. Sempre. A ideia? Conto russo. Nataschas, Dimitris. Ivanovnas.
Minha mãe estava louca e meu pai já tinha passado dessa para melhor. Meus
livros queimara por causa do frio das ruas e ali, já não lembrava qual deles
teria preservado das chamas. Algum teria vontade de ler agora, talvez um poema
de Puchkin. Já não lembrava quase nada das cartas russas ou qualquer vestígio
de beletrista o presenteava. Natascha era uma garota de programa que encontrara
numa noite quente, verão, no Rio de Janeiro, e lhe reparara as costas tatuadas
com multitudes de flores tropicais, um jardim petulante e sensual que lhe coube
desvendar noites adentro. Incongruente Natascha, a sua garota de um conto russo
improvável, mulher da vida fácil, divindade em seu quarto, de quatro, prazeres
sem fim, até que certo Dimitri levou-a embora. Maldito russo. Vontade de matar
pela primeira vez. A traição tem implicações terríveis sobre a moral de um
homem bom, que ama as mulheres como a própria vida. Natascha era como a
água benta brotando pura de uma nascente cheia de um brilho faiscante e
virginal, que aplacava sua ânsia de umidade e sexo de bem me quer, pois pura
castidade em presença luminosa de coxas quentes e pelos fenomenais; pernas,
seios e braços aveludados; e seu cheiro, ah, aromas, todos os perfumes da
terra, Natascha! -, que sabia fazê-lo rodar e amar o mundo, a vida, e esquecer
as misérias e a maldade. Natascha e toda a impossibilidade do ser, impossível a
seu lado, regaço. Antes do maldito russo aparecer. Antes dele. E da vontade de
matar. A Alameda era quieta e fria, mas não era inverno. Os vultos, fugidios,
passavam como lampejo e sua visão, obstruída por luzes opacas, agora vinha dos
seios de Natascha flutuando na tarde fria. Junto aos flocos de neve que lhe
caíam nos ombros. Imagem que lhe parecia bonita para um conto. Russo. Natascha,
seus seios morenos e fartos, ungidos pelo branco da neve às auréolas. Bicos que
se faziam duros ao contato de suas mãos, dentes, boca; uma sensação
incomparável. Um sonho que se despedaçava ao contato de uma pesada bofetada que
recebia no rosto, de supetão. O guarda. Não era permitido ficar ali. O
simplesmente deixar-se ficar era proibido. Deveria sair do local imediatamente,
era um “zé ninguém”, imprestável, louco? Ardia-lhe o rosto e a imagem de sua
amada Natascha perdeu-se por completo. Os flocos sumiram por encanto. A Alameda
era uma rua qualquer; e ele um entre outros que não se encaixavam naquela paisagem.
A menina passeava com um picolé e parecia morango. Da cor que ficou a sala
depois de tudo.
Marcia Lahtermaher
Arte:
DORA MAAR – Retrato de Jacqueline Lamba - 1939
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