julho 09, 2014


O PORTÃO

Vejo o portão de ferro, com seus arabescos. Lembro-me do mar com suas marolas. Fosse capaz, pediria uma onda. Aqui e agora, para me trazer uma água-viva. Ou imagino que, sendo eu o padre, aqui seja o quintal de uma dessas velhas igrejas irlandesas sob a neve. Onde talvez uma vizinha sexagenária venha me trazer pão fatiado como pagamento do dízimo. Eu a abençoaria, mas ficaria com o pão. Quem sabe do dia de amanhã é o Senhor. No entanto Ele fica a uma apreciável distância dos homens. Nem liga se hoje é Domingo ou Terça-feira ou Quinta-feira. Mas não seria isto uma superficialidade? Ele, o Senhor, pensar em dias salteados da semana, quando tem o universo inteiro para retocar, abrandar, criar, contornar, queimar?

Eis que. Ao longo da lama pisoteada na rua. Passa um turbilhão de pessoas entretidas com o relógio que as comandam. Ninguém é, de fato, feliz. Jamais dizem bom dia imaginando um dia realmente maravilhoso. No entanto eu. Quero falar com todos na rua, mas acabo falando comigo mesmo. Observo de meu promontório. Me acautelo por detrás do portão de ferro. Ele que há muito está desconjuntado pelo uso e pelas intempéries. Acabei por pensar isto. Todos os portões do mundo seriam bem mais fortes se unidos num só propósito. Revelar sem peias o que ocorre em seus redutos. Não estariam os portões cientes das almas chorosas das empregadas domésticas? Ou dos que não dispõe de dinheiro para o aluguel? Ou dos que tiram os filhos da escola por falta de numerário? Se pelo menos os que sofrem estivessem disponíveis para uma conversa com seus portões. Por certo que sim. Algo seria útil nesse intento.

O carro de viver atropela e passa. Por descrédito de ser isso. A vida passeia e me dirige. Laje de granito que abriga uma flor entre suas rachaduras. Desperdicei quase tudo, pregado na maré que azuleja, areias dispersas na sola dos pés. Fui. Voltei. Fui. Voltei. Bons amigos e gargalhadas, festas de formaturas e passes para parques de diversões. Conheci você enquanto girávamos na roda-gigante. Logo eu derreteria de amores em sua pele febril. Desde o último mergulho. A escrita que revela nosso primeiro encontro. Ri da elegância com que segurava um simples copo de refrigerante. Mas a casa hoje está tão quieta. Cansou de me apascentar. Ouço as pétalas das rosas de ontem despegarem do caule que espinham o ar da sala. Vim do nada. Desde o final da rua. Andando a esmo. Deixei ali uma borboleta voando sozinha. Cansei só de vê-la. Contra o azul celeste, seus nobres amarelos. Irrequieta e passiva. Flor em flor. A segui sem propósito. Até o portão de casa. Tão breve. Os arabescos de ferro. Mouriscos meus. No missal de ser feliz. Um pequeno e sorridente rostinho de ontem. Eu cabia com a face entre esses arabescos. O amanhecer inteiro. Diante da rua. Assoalho de amores alheios. Os que se foram. Os que nos brindam. E os que estão para chegar.


Beto Palaio



Arte: Andréa Hazel – Aquarela - 2011

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