O PORTÃO
Vejo o portão de ferro, com seus arabescos. Lembro-me
do mar com suas marolas. Fosse capaz, pediria uma onda. Aqui e agora, para me
trazer uma água-viva. Ou imagino que, sendo eu o padre, aqui seja o quintal de
uma dessas velhas igrejas irlandesas sob a neve. Onde talvez uma vizinha sexagenária
venha me trazer pão fatiado como pagamento do dízimo. Eu a abençoaria, mas
ficaria com o pão. Quem sabe do dia de amanhã é o Senhor. No entanto Ele fica a
uma apreciável distância dos homens. Nem liga se hoje é Domingo ou Terça-feira
ou Quinta-feira. Mas não seria isto uma superficialidade? Ele, o Senhor, pensar
em dias salteados da semana, quando tem o universo inteiro para retocar, abrandar,
criar, contornar, queimar?
Eis que. Ao longo da lama pisoteada na rua. Passa
um turbilhão de pessoas entretidas com o relógio que as comandam. Ninguém é, de
fato, feliz. Jamais dizem bom dia imaginando um dia realmente maravilhoso. No
entanto eu. Quero falar com todos na rua, mas acabo falando comigo mesmo.
Observo de meu promontório. Me acautelo por detrás do portão de ferro. Ele que
há muito está desconjuntado pelo uso e pelas intempéries. Acabei por pensar
isto. Todos os portões do mundo seriam bem mais fortes se unidos num só
propósito. Revelar sem peias o que ocorre em seus redutos. Não estariam os
portões cientes das almas chorosas das empregadas domésticas? Ou dos que não
dispõe de dinheiro para o aluguel? Ou dos que tiram os filhos da escola por
falta de numerário? Se pelo menos os que sofrem estivessem disponíveis para uma
conversa com seus portões. Por certo que sim. Algo seria útil nesse intento.
O carro de viver atropela e passa. Por
descrédito de ser isso. A vida passeia e me dirige. Laje de granito que abriga
uma flor entre suas rachaduras. Desperdicei quase tudo, pregado na maré que
azuleja, areias dispersas na sola dos pés. Fui. Voltei. Fui. Voltei. Bons
amigos e gargalhadas, festas de formaturas e passes para parques de diversões.
Conheci você enquanto girávamos na roda-gigante. Logo eu derreteria de amores
em sua pele febril. Desde o último mergulho. A escrita que revela nosso primeiro
encontro. Ri da elegância com que segurava um simples copo de refrigerante. Mas
a casa hoje está tão quieta. Cansou de me apascentar. Ouço as pétalas das rosas
de ontem despegarem do caule que espinham o ar da sala. Vim do nada. Desde o
final da rua. Andando a esmo. Deixei ali uma borboleta voando sozinha. Cansei
só de vê-la. Contra o azul celeste, seus nobres amarelos. Irrequieta e passiva.
Flor em flor. A segui sem propósito. Até o portão de casa. Tão breve. Os
arabescos de ferro. Mouriscos meus. No missal de ser feliz. Um pequeno e
sorridente rostinho de ontem. Eu cabia com a face entre esses arabescos. O
amanhecer inteiro. Diante da rua. Assoalho de amores alheios. Os que se foram.
Os que nos brindam. E os que estão para chegar.
Beto Palaio
Arte:
Andréa Hazel – Aquarela - 2011
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