ADÁGIO PARA UMA LIGEIRA
FUGA
Com batom. Ela desenhou uma flecha no assoalho.
A ponta da flecha indicava para a porta da rua. Um resto de cigarro apagou
sozinho sobre o taco de madeira da sala. Eis o receio. Pequenino a princípio.
Que cresceu em excesso dentro dela.
A fatalidade promovia o cerco. O trabalho
doméstico é sempre o mesmo. Naquele momento o almoço sequer estava pronto. Um
rio passa no fundo da casa. Um barco está a sua espera. Ela deixa um bilhete
para o filho que está na escola. Para ele. Pede perdão.
Sentindo-se destoada com sua própria vida. As
curvas de suas pernas recebem a calcinha. Depois ajeita a meia-calça. Olha-se
no espelho. Pensa em embarcar para o Rio de Janeiro com o novo amante. Ele a aguarda
dentro da canoa.
O rio passa sem pressa. Pouco sabe de si o
rio. Além de ir embora o tempo todo. Há um céu que corre no rio. Reflexos de um
alto desejo. Luz de ir e vir. O rio só existe quando surge a luz. Na noite a
água se apaga. A noite e o rio são cegos.
Sua rua está vazia pelo sol quente do
meio-dia. A moça deixa-se levar pelo entusiasmo inicial. Mas teme pelo mau
gênio do marido. Ele tem tudo para nunca deixar de persegui-la. Ela nem quer
pensar nisto. Lamenta apenas pelo filho que fica. Sofre nele.
A liberdade em si é fatal para os temerosos.
Há uma procissão de pequenos fatos. A canoa do amante estava longe demais. Ela
combinou que ele esperasse na margem, sob o primeiro pé de salgueiro. A canoa
parecia estar mais abaixo. Para lá seguiu.
Por demais angustiada. Não conseguia andar
mais depressa pelo sapato de salto que colocou. Além disto, havia a sacola de
roupas. Ela está muito confusa. Há raízes de arrependimento que crescem dentro
dela. Hoje é um dia terrível. Tudo lhe dói.
A canoa estava alinhada com a margem do rio. O
silêncio era angustiante. Ela não vê o homem que deveria esperá-la. Apenas algo
improvável que estava oculto dentro do barco. Quando se aproxima toma um susto.
Quer vomitar ao vê-lo morto.
Qualquer coisa. Passa-se agora. Naquele
momento ela ouve o pipoco de tiros. Na barranca do rio ela vê seu marido. Ele
está com um revólver na mão. Tiros em sua direção. Queimam as dores que entram
em seu corpo. Ela se aflige. Caindo de bruços.
Névoas leitosas. Manhã que nunca termina. Sua
mãe a chama. Sozinha ela deixa a margem do rio. Ela é menina novamente. Mercadores
atravessam seu caminho com mulas repletas de víveres. Um dos mercadores lhe
sorri. É seu pai.
A moça sabe que algo está errado. Não entende
o que é ainda. Assim que chega à casa da mãe. Um bando de crianças passa
correndo por ela. Eles entram e fecham a porta. Nem a percebem ali. Contudo. Ela
atravessa a parede. E adentra a casa.
Ali dentro ela não reconhece a casa de sua
mãe. Uma respiração entrecortada a faz ir da sala ao quarto. Lá ela encontra
sua avó deitada. A avó não estava dormindo. Abriu-lhe os braços. Disse para ela
se acalmar. Tudo ficará bem.
Tudo ficará bem. Disse para ela se acalmar.
Abriu-lhe os braços. A avó não estava dormindo. Lá ela encontra sua avó
deitada. Uma respiração entrecortada a faz ir da sala ao quarto. Ali dentro ela
não reconhece a casa de sua mãe. Mas tudo ficará bem.
Beto Palaio
Arte: Pintura de Jorge Frutos
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