julho 25, 2014


ADÁGIO PARA UMA LIGEIRA FUGA

Com batom. Ela desenhou uma flecha no assoalho. A ponta da flecha indicava para a porta da rua. Um resto de cigarro apagou sozinho sobre o taco de madeira da sala. Eis o receio. Pequenino a princípio. Que cresceu em excesso dentro dela.

A fatalidade promovia o cerco. O trabalho doméstico é sempre o mesmo. Naquele momento o almoço sequer estava pronto. Um rio passa no fundo da casa. Um barco está a sua espera. Ela deixa um bilhete para o filho que está na escola. Para ele. Pede perdão.

Sentindo-se destoada com sua própria vida. As curvas de suas pernas recebem a calcinha. Depois ajeita a meia-calça. Olha-se no espelho. Pensa em embarcar para o Rio de Janeiro com o novo amante. Ele a aguarda dentro da canoa.

O rio passa sem pressa. Pouco sabe de si o rio. Além de ir embora o tempo todo. Há um céu que corre no rio. Reflexos de um alto desejo. Luz de ir e vir. O rio só existe quando surge a luz. Na noite a água se apaga. A noite e o rio são cegos.

Sua rua está vazia pelo sol quente do meio-dia. A moça deixa-se levar pelo entusiasmo inicial. Mas teme pelo mau gênio do marido. Ele tem tudo para nunca deixar de persegui-la. Ela nem quer pensar nisto. Lamenta apenas pelo filho que fica. Sofre nele.

A liberdade em si é fatal para os temerosos. Há uma procissão de pequenos fatos. A canoa do amante estava longe demais. Ela combinou que ele esperasse na margem, sob o primeiro pé de salgueiro. A canoa parecia estar mais abaixo. Para lá seguiu.

Por demais angustiada. Não conseguia andar mais depressa pelo sapato de salto que colocou. Além disto, havia a sacola de roupas. Ela está muito confusa. Há raízes de arrependimento que crescem dentro dela. Hoje é um dia terrível. Tudo lhe dói.

A canoa estava alinhada com a margem do rio. O silêncio era angustiante. Ela não vê o homem que deveria esperá-la. Apenas algo improvável que estava oculto dentro do barco. Quando se aproxima toma um susto. Quer vomitar ao vê-lo morto.

Qualquer coisa. Passa-se agora. Naquele momento ela ouve o pipoco de tiros. Na barranca do rio ela vê seu marido. Ele está com um revólver na mão. Tiros em sua direção. Queimam as dores que entram em seu corpo. Ela se aflige. Caindo de bruços.

Névoas leitosas. Manhã que nunca termina. Sua mãe a chama. Sozinha ela deixa a margem do rio. Ela é menina novamente. Mercadores atravessam seu caminho com mulas repletas de víveres. Um dos mercadores lhe sorri. É seu pai.

A moça sabe que algo está errado. Não entende o que é ainda. Assim que chega à casa da mãe. Um bando de crianças passa correndo por ela. Eles entram e fecham a porta. Nem a percebem ali. Contudo. Ela atravessa a parede. E adentra a casa.  

Ali dentro ela não reconhece a casa de sua mãe. Uma respiração entrecortada a faz ir da sala ao quarto. Lá ela encontra sua avó deitada. A avó não estava dormindo. Abriu-lhe os braços. Disse para ela se acalmar. Tudo ficará bem.

Tudo ficará bem. Disse para ela se acalmar. Abriu-lhe os braços. A avó não estava dormindo. Lá ela encontra sua avó deitada. Uma respiração entrecortada a faz ir da sala ao quarto. Ali dentro ela não reconhece a casa de sua mãe. Mas tudo ficará bem.


Beto Palaio



Arte: Pintura de Jorge Frutos 

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