O ANIVERSÁRIO DA GUERRA
Ao detalhe minucioso. Todos foram unânimes. No fogo que
arde. Muitos suicidaram-se a si mesmos. A raça humana subiu muito pouco para
cima, mas depois desceu em excesso, demasiadamente excessivo, aliás, bastante
mesmo, para baixo. Numa palavra o abandono em que nos encontrávamos. Uma
surpresa inesperada. A palavra Deus estava escrita a giz numa parede deserta. Faltava
a construção por detrás daquela velha parede que agora não servia mais para
nada. Aqui e ali. Um acúmulo de grama seca que o vento leva para onde quer. Um
corredor de antigas pastilhas soltas que agora se ocultam quando podem na
brotoeja do chão de terra. Contudo. Alguns arbustos de espinhos, ao crescerem
espaçados, estão tão vivos quanto um bicho vivo. Na fronteira de tudo o que
houve ali um dia. Fatos relativos ao empréstimo temporário. Na certeza absoluta
do elo de ligação. Avança a força reconstrutiva da natureza que antes, muito
antes da guerra, se esparramava até onde a vista poderia alcançar. E ela retornaria
de qualquer maneira. Ocorre que não há outra alternativa, principalmente para a
natureza.
As luzes se acenderam com muito aplauso. Havia no clamor
popular um sinal de satisfação e jubilo. A orquestra tocara divinamente. Os
músicos ainda estão alinhados com seus instrumentos à mostra. Alguém tosse na
platéia. Apenas um músico está impaciente para tocar novamente, e assim agradar
aquele povo sofrido. É tempo de guerra. Todos ali tocam por um prato de comida.
O músico levanta-se de sua cadeira e toca um acorde de violino sem ser
interrompido pelo maestro. Depois pára subitamente de tocar. Olha para a
platéia como se adivinhasse o motivo de todos estarem ali pedindo por mais
música. O violinista tem lágrimas nos olhos. Ele pede para falar com o público.
A princípio ninguém entende o que ele diz, já que mistura o francês ao inglês
arrastado. Depois grita algumas palavras em francês. Explica que sua família inteira
fora morta pelos alemães. Ele não quer nada para si. Mas pede pelas famílias
dos outros músicos. Pelo menos para eles, o violinista pede.
Minha criança querida vá. Não se esqueça que te amo muito.
Pegue o xale da mamãe que está atrás da porta. Proteja seu pescocinho com ele.
Vai se sentir aquecido assim. Vá buscar o trigo para sua mãe. Há luz sim. Já há
luz no caminho. Pise neste lado da fronteira. Não passe defronte ao portão da
guerra. Atravesse a rua olhando para todos os lados. Se houver trigo, assaremos
o pão. Se houver pão quentinho espalharemos sobre ele a manteiga. Se houver
nata faremos a manteiga. No dia em que tivermos espaço criaremos uma vaca. A
liberdade pede muito espaço. Bastante espaço ela pede. Se os donos da guerra
soubessem, meu filho. Apenas se soubessem. Se eles pudessem entender o clamor
da paz mundial dentro do coração dessa velha mãe. Mas eles são tão ignorantes
de tudo. Tão animalescos que jamais iriam entender o que seja a paz. Jamais
irão entender isto... Agora vá buscar o trigo, meu filho. Vá...
Beto Palaio
Arte:
Fortunino Matania - Adeus velho amigo - 1916
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