julho 17, 2014


O ANIVERSÁRIO DA GUERRA

Ao detalhe minucioso. Todos foram unânimes. No fogo que arde. Muitos suicidaram-se a si mesmos. A raça humana subiu muito pouco para cima, mas depois desceu em excesso, demasiadamente excessivo, aliás, bastante mesmo, para baixo. Numa palavra o abandono em que nos encontrávamos. Uma surpresa inesperada. A palavra Deus estava escrita a giz numa parede deserta. Faltava a construção por detrás daquela velha parede que agora não servia mais para nada. Aqui e ali. Um acúmulo de grama seca que o vento leva para onde quer. Um corredor de antigas pastilhas soltas que agora se ocultam quando podem na brotoeja do chão de terra. Contudo. Alguns arbustos de espinhos, ao crescerem espaçados, estão tão vivos quanto um bicho vivo. Na fronteira de tudo o que houve ali um dia. Fatos relativos ao empréstimo temporário. Na certeza absoluta do elo de ligação. Avança a força reconstrutiva da natureza que antes, muito antes da guerra, se esparramava até onde a vista poderia alcançar. E ela retornaria de qualquer maneira. Ocorre que não há outra alternativa, principalmente para a natureza.

As luzes se acenderam com muito aplauso. Havia no clamor popular um sinal de satisfação e jubilo. A orquestra tocara divinamente. Os músicos ainda estão alinhados com seus instrumentos à mostra. Alguém tosse na platéia. Apenas um músico está impaciente para tocar novamente, e assim agradar aquele povo sofrido. É tempo de guerra. Todos ali tocam por um prato de comida. O músico levanta-se de sua cadeira e toca um acorde de violino sem ser interrompido pelo maestro. Depois pára subitamente de tocar. Olha para a platéia como se adivinhasse o motivo de todos estarem ali pedindo por mais música. O violinista tem lágrimas nos olhos. Ele pede para falar com o público. A princípio ninguém entende o que ele diz, já que mistura o francês ao inglês arrastado. Depois grita algumas palavras em francês. Explica que sua família inteira fora morta pelos alemães. Ele não quer nada para si. Mas pede pelas famílias dos outros músicos. Pelo menos para eles, o violinista pede.

Minha criança querida vá. Não se esqueça que te amo muito. Pegue o xale da mamãe que está atrás da porta. Proteja seu pescocinho com ele. Vai se sentir aquecido assim. Vá buscar o trigo para sua mãe. Há luz sim. Já há luz no caminho. Pise neste lado da fronteira. Não passe defronte ao portão da guerra. Atravesse a rua olhando para todos os lados. Se houver trigo, assaremos o pão. Se houver pão quentinho espalharemos sobre ele a manteiga. Se houver nata faremos a manteiga. No dia em que tivermos espaço criaremos uma vaca. A liberdade pede muito espaço. Bastante espaço ela pede. Se os donos da guerra soubessem, meu filho. Apenas se soubessem. Se eles pudessem entender o clamor da paz mundial dentro do coração dessa velha mãe. Mas eles são tão ignorantes de tudo. Tão animalescos que jamais iriam entender o que seja a paz. Jamais irão entender isto... Agora vá buscar o trigo, meu filho. Vá...


Beto Palaio



Arte: Fortunino Matania - Adeus velho amigo - 1916

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