julho 22, 2014


DOBROU-SE PARA PINTAR AS UNHAS DOS PÉS

Nem fazia mais sentido. O filme ficara absolutamente dispensável. Um mundo hostil acampou do lado de fora da sala. Os soldados alemães jamais chegariam a criar trincheiras na fronteira da França. Ouço, contudo. Passos teus em direção ao quarto de dormir. Um arrastar de convites que desfilam ondulantes. À solicitação de seus quadris. Foges de mim por um instante. Até que alcançamos o primeiro vestígio de lençol a nos submergir. O mundo acaba aqui. Nem existe mais nada. Lá fora aqui dentro fora de nós dentro de nós. Tudo é uma coisa só.

Numa sala secreta. Apenas você e o deus joalheiro. A criação de uma obra-prima. Mulher arte. Fêmea jóia rara. Criatura especial. Amante excepcional. Amiga infindável. O criador lhe deseja sorte. Abre a porta de seu atelier. E libera sua filha única ao som de uma sonata de amor e liberdade. Entretanto. Não foi assim que te conheci. Estava numa sala de exibição de pinturas. Uma série de quadros impressionistas. Lá fora chovia. Ninguém mais via o Almoço na Grama de Manet. Uma porta lateral dava para outra sala. Para lá me dirigi. Ouço passos.

Frente a frente te vejo. Sem nenhuma surpresa. Você se coloca por detrás de um balcão em uma outra pintura do Manet. Há champanhe e frutas e rosas sobre a pedra fria de mármore deste balcão. Ao fundo um espelho mostra exatamente, em reflexo, onde estamos. Um bar de luxo revela a bela balconista. Você me oferece champanhe. Há uma tentadora variação de ofertas que seus lábios balbuciam. O licor de sua dádiva é tentador. Seus lábios parecem me procurar. Aceito o toque de cetim de seus dedos. Apanho a taça. E bebo. À nossa epopéia.

Vamos ao cinema hoje? Desperto subitamente. Contigo dentro deste museu. Onde observamos a pintura com a atendente no balcão, à nossa frente. Justo a tempo de fazermos um pacto. Pedaços de lembranças num carrossel. Habitamos agora dentro do ir e vir da arte. Toda realeza daquela quietude. Olhei para você ao pé da cama. Lembrança tentadora. Estavas insone com um pincelzinho de esmalte vermelho na mão. Livrando-se de todo empecilho. Sussurra-me que a cor vermelha é a cor da paixão. E dobra-se. Arte a inventar arte. O vermelho arde.

Insiste a minha pintora. Encantamentos. Na maneira como transcende. Esta temporada nas manhãs de Setembro. Aconselha intensa jovialidade. Nosso amor é muito, muito extraordinário. Ainda mais agora que estamos invisíveis para o mundo lá fora. Roma fica no Uruguai, Montevidéu fica nos States, Nova York fica na Itália. Aqui não entendemos nada de pontos cardeais. Entontecidos. Ao vindouro. Hoje é dia para criarmos lembranças. Choveu em mim ou foram seus olhos? Soluços de alegria. Nós abrimos esta exceção. Lacrimejar só de felicidade.


Beto Palaio


Arte: Shawn Lawson, depois de Manet.

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