DOBROU-SE PARA PINTAR
AS UNHAS DOS PÉS
Nem fazia mais sentido. O filme ficara absolutamente
dispensável. Um mundo hostil acampou do lado de fora da sala. Os soldados
alemães jamais chegariam a criar trincheiras na fronteira da França. Ouço,
contudo. Passos teus em direção ao quarto de dormir. Um arrastar de convites
que desfilam ondulantes. À solicitação de seus quadris. Foges de mim por um
instante. Até que alcançamos o primeiro vestígio de lençol a nos submergir. O
mundo acaba aqui. Nem existe mais nada. Lá fora aqui dentro fora de nós dentro
de nós. Tudo é uma coisa só.
Numa sala secreta. Apenas você e o deus joalheiro.
A criação de uma obra-prima. Mulher arte. Fêmea jóia rara. Criatura especial.
Amante excepcional. Amiga infindável. O criador lhe deseja sorte. Abre a porta
de seu atelier. E libera sua filha única ao som de uma sonata de amor e liberdade.
Entretanto. Não foi assim que te conheci. Estava numa sala de exibição de
pinturas. Uma série de quadros impressionistas. Lá fora chovia. Ninguém mais
via o Almoço na Grama de Manet. Uma porta lateral dava para outra sala. Para lá
me dirigi. Ouço passos.
Frente a frente te vejo. Sem nenhuma surpresa.
Você se coloca por detrás de um balcão em uma outra pintura do Manet. Há
champanhe e frutas e rosas sobre a pedra fria de mármore deste balcão. Ao fundo
um espelho mostra exatamente, em reflexo, onde estamos. Um bar de luxo revela a
bela balconista. Você me oferece champanhe. Há uma tentadora variação de
ofertas que seus lábios balbuciam. O licor de sua dádiva é tentador. Seus lábios
parecem me procurar. Aceito o toque de cetim de seus dedos. Apanho a taça. E
bebo. À nossa epopéia.
Vamos ao cinema hoje? Desperto subitamente.
Contigo dentro deste museu. Onde observamos a pintura com a atendente no balcão,
à nossa frente. Justo a tempo de fazermos um pacto. Pedaços de lembranças num
carrossel. Habitamos agora dentro do ir e vir da arte. Toda realeza daquela
quietude. Olhei para você ao pé da cama. Lembrança tentadora. Estavas insone
com um pincelzinho de esmalte vermelho na mão. Livrando-se de todo empecilho.
Sussurra-me que a cor vermelha é a cor da paixão. E dobra-se. Arte a inventar
arte. O vermelho arde.
Beto Palaio
Arte:
Shawn Lawson, depois de Manet.
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