VOLTAS EM TORNO DA
MESMA CABEÇA
Pressão. Pressão. Pressão. Parece até que ela
não sabia mais como agir. O mundo gira em torno da notícia do último atentado
terrorista. Atraídos pelo conflito. Nunca cansados da mesma batalha. Uma forma
de participar sem se responsabilizar. A capacidade de viver em paz está confusa
e esgotada e cansada e despenteada. Hoje a cabeça lateja. Pede por um fim. Um
escuro onde ela se realize em plena aniquilação. Até uma Aspirina tem melhores
conselhos. Nunca corte a cabeça de quem lhe pediu perdão. A dor se assemelha a
uma criança mimada. Com isto a moça tímida que sofria de enxaquecas assumiu a
dor como personalidade única. O desejo de ser feliz abre-se em pétalas em meio
a um jardim de espinhos. A senhorita Dor se dirige para um bar clandestino onde
encontra alguns amigos. Um desses amigos possui uma motocicleta Harley-Davidson
que está estacionada na calçada. Todos eles estão bêbados. Perderam interesse
na libido alheia, e também na própria libido. A senhorita Dor sugere aos três
rapazes que a afoguem na cerveja. Quer brincar de roleta russa, mas sem que um
revolver de verdade participe da brincadeira. Um dia ela acreditou na beleza
como escada de ascensão social. Acreditou até num marido de aluguel. Hoje ela
está depressiva. Não acredita mais em si mesma. Mas tem confiança absoluta
nesses três amigos. Para eles, no final daquela noite, a Dor se entrega de
corpo e alma.
No entanto Adamastor não foi destacado para o
papel de herói do filme no qual um diretor amigo lhe prometera mundos e fundos.
Perder o papel num filme é ruim, perder a chave da porta de casa é terrível,
perder a cabeça é cruel. Naquela mesma tarde Adamastor procurou pelo diretor no
seu refúgio preferido, um barzinho da moda na Zona Sul. Ali ele, Adamastor, foi
recebido em meio a alegrias e comemorações já em curso. O diretor estava cercado
dos artistas definitivos, aqueles foram afinal escolhidos para o filme. Naquela
mesa falava-se que o princípio da produção seria a partir da semana entrante. O
velho diretor é um homem com sua cabeça branca que atrai interesse e respeito.
Adamastor agora lhe tem ojerizas disfarçadas. Agora ele acredita que daquela
cabeça nada de bom possa surgir. Acha a traição de não ser escolhido para o
filme o limite extremo que o diretor impôs para sua carreira de ator. Para esta
seleta audiência, o diretor fala de Cristo. Todos estão confinados em torno de
uma garrafa de uísque escocês cercada de meia dúzia de copos. O próprio filme
se torna assunto secundário após a chegada de Adamastor. O tema agora é o
perdão e a concórdia. Um fio invisível liga o ódio de Adamastor ao aparente
entendimento de perdão. Adamastor então transferiu sua raiva para um copo que
segurava com desenvoltura. O copo estoura. A mão de Adamastor fica severamente
machucada. O sangue assusta a todos. Menos ao diretor. Este olha para a mão
sangrenta de Adamastor e toma aquilo como sugestão para o início de seu filme.
Pede para seu assistente anotar essa idéia. Adamastor foi socorrido pelos
colegas. Ao acomodar-se no carro de um deles, Adamastor ainda vê a cabeça
branca do diretor como que brilhando acima de todas as outras cabeças.
Carina entrou com seu noivo na loja da modista
mais importante da cidade. Ela havia deixado o emprego em função de seu
casamento marcado para dia e mês em que sua mãe aniversaria. Não é comum que
uma filha possa dar um presente dessa natureza para sua mãe. Ela folheava um
catálogo de exemplos de tiaras numa edição italiana de Diademi di Felicitá. A
grandiosidade da vida resumia-se agora àquelas cabeças cercadas por um aparato
de luxo nunca acessível ao poder aquisitivo de uma noiva desempregada. O noivo
de Carina é um publicitário com experiência nas produções onde participa
fotógrafos e cineastas de renome. Ele insistiu em pagar tudo, inclusive uma
tiara de pedras preciosas para adornar a cabeça mais linda que ele jamais
conhecera. Este modelo de tiara é lindo, aquele é espetacular, este é quase um
sonho, aquele é mais lindo ainda. Ela tenta escolher essa tiara sem que seja
influenciada pelo glamour do mundo publicitário. Entretanto, na escolha da
tiara, o seu noivo tenta dar palpites que beiram o profissionalismo. Depois de
flertar com uma específica tiara constante no catálogo italiano, Carina ri,
depois quer chorar, depois fica impassível. No entanto ela não quer mais escolher
tiaras, com isto em mente ela corre para fora da loja. Seu noivo a segue sem
nada entender. Ela chama um táxi. Ambos entram naquele táxi onde ela revela que
está grávida. Carina está confusa. Ela não quer se casar grávida de jeito
nenhum. Secretamente ela pensa até num aborto a ter de se casar de forma
apressada. O noivo fica petrificado. Embora ele claramente rejeite um casamento
onde a possibilidade de um aborto aconteça. Seu noivo docemente tenta dizer que
adorou saber do bebê e que ela está nervosa como todos ficam nesse momento.
Logo eles retomam seus planos. Pedem ao taxista para retornar ao endereço da
modista. Carina promete a si mesma não pensar mais em nenhuma besteira. De si
para si, ela pensa agora em também premiar com aquela tiara a cabecinha de seu
filho que virá. Pensa até em escolher uma tiara onde constem alguns brilhantes
e uma pedrinha azul lá no meio dos brilhantes. Com isto ela sorri para o noivo
que lhe dá um beijo carinhoso por sobre seus lábios. Depois descem do táxi e
entram novamente na modista.
Beto Palaio
Arte: Sir Joshua Reynolds – Cabeças de anjos -
1786
Nenhum comentário:
Postar um comentário