julho 01, 2014

Sir Joshua Reynolds, 'A Child's Portrait in Different Views: 'Angel's Heads'' 1786-7

VOLTAS EM TORNO DA MESMA CABEÇA

Pressão. Pressão. Pressão. Parece até que ela não sabia mais como agir. O mundo gira em torno da notícia do último atentado terrorista. Atraídos pelo conflito. Nunca cansados da mesma batalha. Uma forma de participar sem se responsabilizar. A capacidade de viver em paz está confusa e esgotada e cansada e despenteada. Hoje a cabeça lateja. Pede por um fim. Um escuro onde ela se realize em plena aniquilação. Até uma Aspirina tem melhores conselhos. Nunca corte a cabeça de quem lhe pediu perdão. A dor se assemelha a uma criança mimada. Com isto a moça tímida que sofria de enxaquecas assumiu a dor como personalidade única. O desejo de ser feliz abre-se em pétalas em meio a um jardim de espinhos. A senhorita Dor se dirige para um bar clandestino onde encontra alguns amigos. Um desses amigos possui uma motocicleta Harley-Davidson que está estacionada na calçada. Todos eles estão bêbados. Perderam interesse na libido alheia, e também na própria libido. A senhorita Dor sugere aos três rapazes que a afoguem na cerveja. Quer brincar de roleta russa, mas sem que um revolver de verdade participe da brincadeira. Um dia ela acreditou na beleza como escada de ascensão social. Acreditou até num marido de aluguel. Hoje ela está depressiva. Não acredita mais em si mesma. Mas tem confiança absoluta nesses três amigos. Para eles, no final daquela noite, a Dor se entrega de corpo e alma.   

No entanto Adamastor não foi destacado para o papel de herói do filme no qual um diretor amigo lhe prometera mundos e fundos. Perder o papel num filme é ruim, perder a chave da porta de casa é terrível, perder a cabeça é cruel. Naquela mesma tarde Adamastor procurou pelo diretor no seu refúgio preferido, um barzinho da moda na Zona Sul. Ali ele, Adamastor, foi recebido em meio a alegrias e comemorações já em curso. O diretor estava cercado dos artistas definitivos, aqueles foram afinal escolhidos para o filme. Naquela mesa falava-se que o princípio da produção seria a partir da semana entrante. O velho diretor é um homem com sua cabeça branca que atrai interesse e respeito. Adamastor agora lhe tem ojerizas disfarçadas. Agora ele acredita que daquela cabeça nada de bom possa surgir. Acha a traição de não ser escolhido para o filme o limite extremo que o diretor impôs para sua carreira de ator. Para esta seleta audiência, o diretor fala de Cristo. Todos estão confinados em torno de uma garrafa de uísque escocês cercada de meia dúzia de copos. O próprio filme se torna assunto secundário após a chegada de Adamastor. O tema agora é o perdão e a concórdia. Um fio invisível liga o ódio de Adamastor ao aparente entendimento de perdão. Adamastor então transferiu sua raiva para um copo que segurava com desenvoltura. O copo estoura. A mão de Adamastor fica severamente machucada. O sangue assusta a todos. Menos ao diretor. Este olha para a mão sangrenta de Adamastor e toma aquilo como sugestão para o início de seu filme. Pede para seu assistente anotar essa idéia. Adamastor foi socorrido pelos colegas. Ao acomodar-se no carro de um deles, Adamastor ainda vê a cabeça branca do diretor como que brilhando acima de todas as outras cabeças. 

Carina entrou com seu noivo na loja da modista mais importante da cidade. Ela havia deixado o emprego em função de seu casamento marcado para dia e mês em que sua mãe aniversaria. Não é comum que uma filha possa dar um presente dessa natureza para sua mãe. Ela folheava um catálogo de exemplos de tiaras numa edição italiana de Diademi di Felicitá. A grandiosidade da vida resumia-se agora àquelas cabeças cercadas por um aparato de luxo nunca acessível ao poder aquisitivo de uma noiva desempregada. O noivo de Carina é um publicitário com experiência nas produções onde participa fotógrafos e cineastas de renome. Ele insistiu em pagar tudo, inclusive uma tiara de pedras preciosas para adornar a cabeça mais linda que ele jamais conhecera. Este modelo de tiara é lindo, aquele é espetacular, este é quase um sonho, aquele é mais lindo ainda. Ela tenta escolher essa tiara sem que seja influenciada pelo glamour do mundo publicitário. Entretanto, na escolha da tiara, o seu noivo tenta dar palpites que beiram o profissionalismo. Depois de flertar com uma específica tiara constante no catálogo italiano, Carina ri, depois quer chorar, depois fica impassível. No entanto ela não quer mais escolher tiaras, com isto em mente ela corre para fora da loja. Seu noivo a segue sem nada entender. Ela chama um táxi. Ambos entram naquele táxi onde ela revela que está grávida. Carina está confusa. Ela não quer se casar grávida de jeito nenhum. Secretamente ela pensa até num aborto a ter de se casar de forma apressada. O noivo fica petrificado. Embora ele claramente rejeite um casamento onde a possibilidade de um aborto aconteça. Seu noivo docemente tenta dizer que adorou saber do bebê e que ela está nervosa como todos ficam nesse momento. Logo eles retomam seus planos. Pedem ao taxista para retornar ao endereço da modista. Carina promete a si mesma não pensar mais em nenhuma besteira. De si para si, ela pensa agora em também premiar com aquela tiara a cabecinha de seu filho que virá. Pensa até em escolher uma tiara onde constem alguns brilhantes e uma pedrinha azul lá no meio dos brilhantes. Com isto ela sorri para o noivo que lhe dá um beijo carinhoso por sobre seus lábios. Depois descem do táxi e entram novamente na modista.


Beto Palaio



Arte: Sir Joshua Reynolds – Cabeças de anjos - 1786

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