julho 05, 2014


O BIGURRILHO

Um ébrio em perigo. Aquele que está loucamente apaixonado. Imagina-se como escolhido para figurar entre os felizardos. Não há pecado nenhum em amar uma mulher desse quilate.  Essa mulher não presta. Disseram para ele. Mas ele está envolvido demais para acreditar. Sou um sortudo, isso sim. Não sei o motivo de implicarem com ela. Quem quiser que se arranje com o que tem, pois o que tenho eu mereço. Se alguém falar mal de minha amada isso só pode ser calúnia, despeito ou inveja. Essa mulher tem o diabo no corpo. Disseram para ele. Mas ele está cego demais para ver. Isto é implicação de gente mesquinha. Esta moça é a pessoa mais cordata do mundo. Ama a tudo e a todos. Elogia as estrelas e as benesses do ocaso com suas nuances de cores. Essa mulher não vale nada. Disseram para ele. Mas ele está surdo demais para ouvir. O amor é algo sublime. Não há nada que ela fale que eu não concorde. É fácil de entender. Estamos apaixonados e isto é tudo. Essa mulher é chave de cadeia. Disseram para ele. Mas ele está crente demais para duvidar.

Dirceu que amava Marília que amava Ulisses que amava Penélope que amava Maurílio que amava Julieta que amava Romeu que amava Elizabeth que amava Alberto que amava Silvana que amava Lancelote que amava Guinevére que amava Reinaldo que amava Serena que amava Otelo que amava Desdêmona que amava Pedro que amava Joana que amava Bentinho que amava Capitu que amava Eugênio que amava Margarida que amava César que amava Cleópatra que amava Édipo que amava Jocasta que amava Roberto que amava Maria que amava José que amava Fátima que amava Simão que amava Esther que amava Siloé que amava Gilda que amava Tristão que amava Isolda que amava Fred que amava Ginger que amava Maurício que amava Catarina que amava Quixote que amava Dulcinéia que amava Julião que amava Márcia que amava Dante que amava Beatriz que amava Manoel que amava Poesia que amava Carlos Drummond de Andrade.

O feijão de rama se espalha pela cerca do vizinho feito praga. Bigurrilho quis plantar feijão de rama na cerca dele, mas o pé de feijão de rama secou de não ter jeito. A mulher do vizinho sempre lhe parecia mais elegante e apetitosa que a dele, por isso Bigurrilho fez tantas exigências à sua mulher Solange que ela acabou indo embora, pois não se sentia nem um pouco valorizada. Com o fato Bigurrilho está sozinho há seis meses e implora para a antiga esposa voltar, mas ela agora está amasiada com um maquinista da Central do Brasil que todo final de semana leva Solange para o Maracanã para verem um futebol ao vivo. A seguir eles tomam cerveja acompanhada de muito samba e de um apetitoso churrasquinho na barraca do Pascoal lá no Méier. Depois, à noitinha, eles fazem amor feito dois jovenzinhos apaixonados, embora ambos, ela e o maquinista, nem sejam mais jovenzinhos, pois estão agora na casa dos 50 anos de idade. Quando soube, Bigurrilho ficou tão enciumado que deu de pagar para fazer amor com uma mulata que se chama Creuza. A Creuza achou que era melhor deixar a vida de meretriz depois que Bigurrilho lhe ofereceu casa, comida e roupa lavada. Agora Creuza faz uns biscates extras na antiga profissão. Inclusive ela orgulha-se de não cobrar nada para agir deste modo. Para entretenimentos febris ela já se entregou para o açougueiro, para o padeiro, para o rapaz da entrega da pizza, e também se divertiu muito com o moço que vem ler o relógio da Light. Bigurrilho finge que nada sabe, pois não quer perder a Creuza assim como perdeu a Solange que agora reside no Méier com o maquinista da Central. Hoje o Bigurrilho quer é tranquilidade e vida mansa. Com isto em mente ele comprou uma antena parabólica para assistir novelas da TV sem chiados e esborra-traços eletrônicos que atrapalhe a imagem justo depois do horário nobre das 19 horas. A última novidade é que a esfuziante Creuza pegou entojo e não quer mais fazer amor com ele. Ela cismou que ele tem outra, mas é puro charme dela, pois Bigurrilho está por demais aposentado da tarefa de amar, seja em casa, seja a domicílio. Então eles assistem TV e comem pipocas cercados por três crianças de antigos relacionamentos que a Creuza trouxe com ela: uma lourinha, uma moreninha e uma com os olhos puxados, tal e qual os olhos do chinês da pastelaria do bairro. Naquela semana Bigurrilho estava esperando pelo lotação que seguiria para a Candelária. Na fila do lotação ele encontra um primo que se chama Ariovaldo, o qual não via há uns dois ou três anos. O Ariovaldo atualizou os assuntos todos. Falou da dificuldade de cada um em tocar a vida, depois reclamou que foi mal casado com a Patricinha, entrando nos pormenores aborrecíveis de que fora vitima. Por fim Ariovaldo encarou o primo Bigurrilho de frente e falou claramente que mais ou menos ele atribuía a mudança de comportamento de sua ex-mulher Patricinha à uma injeção de Benzetacil. O Bigurrilho ria, mas Ariovaldo afirmou categoricamente que ela havia tomado uma Benzetacil para uma infecção de dentes que ela teve. Disse que a Benzetacil fora aplicada por um farmacêutico jovem e atraente e que este assistente de farmácia ficou enlouquecido quando viu as nádegas de Patricinha, na qual deveria aplicar a injeção. Isso quem contou para o Ariovaldo foi a própria Patricinha, uma safada, na opinião dele. O Bigurrilho ouvia boquiaberto o que lhe segredava seu primo. Ambos postados ali naquele ponto de lotação, enquanto um entristecido Ariovaldo dava esses detalhes, quando por fim acrescentou que realmente a Benzetacil pode ser considerada a injeção mais dolorida do mundo. Ao arremate, como se pedisse desculpas por revelar a sordidez daquele assunto: para mim doeu, Bigurrilho, aquela Benzetacil dói em mim até hoje. Depois mudaram de assunto, pois logo chega o táxi que os levariam até a Candelária.


Beto Palaio



Desenho: Milton Dacosta

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