DOIS CONTOS QUE REGISTRAM O
FUTEBOL ARTE COMO FORMA DE GLORIFICAR A DOR DE QUEM PERDE A FÉ NA SELEÇÃO
NACIONAL:
DORA
meu
pé torceu, meu coração também. esses dias tortos. de gelo no pé. Não ando e
também não leio nada. Porque ler se é preciso pôr a bolsa térmica de vinte em
vinte minutos sobre a lesão e pior que isso só a derrota deslavada na alma
quando o time não avança as horas não avançam e o inimigo vem com toda a força
sobre-humana e arranca o coração da boca e deixa aos prantos a nação
desfigurada de chuteira em prantos e eu nada a ver com isso porque Dora foi
embora e me deixou com aquela dor imensa um vazio coração partido estilhaços
por toda a sala onde víamos os jogos da seleção espanhola alemã italiana e ela
me fazia cafuné e sorria pois não entendia quase nada do esporte bretão e mesmo
assim se comprazia em torcer pelo meu entusiasmo juvenil quando alguma
jogada maravilhosa saía de algum lance inusitado do centroavante e alçava
a rede e tocava a alma de encantamento e de contente ficava a sorrir feito
menino e ela embevecida oferecia uma cerveja e me olhava com doces confortos de
mulher que não entendia nada de quase nada, mas me fazia quase feliz na sua
muda capacidade de não interferir nas miudezas da algazarra dos
homens mirins que somos em quase todo tempo. somos mirins. e elas, as
mulheres mães, que sabem olhar e não perguntar, sabem o momento exato de pegar
a cerveja e trazer no ponto sem que fique choca e lambem nossa
ferida até que cure e vão até o tanque lavar nossas meias e trazem nossa roupa
cheirosa e limpa, os sapatos reluzentes. Só ela, e Dora, e aquelas que
como ela, sabem cozinhar segredos divinais e pôr à mesa como convém e
na hora certeira e sem tropeço algum, tudo no lugar. Dora dos meus sonhos, sem
reclamações, só chamegos e deleites sem fim. Era uma luz no caminho dos meus
desesperos, minha musa, Dora, me traria o gelo, agora...
Márcia Lahtermaher
BOLA DE MEIA, BOLA DE
GUDE
Bar Amarelinho cidade becos culturais cheios
de rostos estranhos palavras de ordem apelos de confraternização em
desconfiança generalizada mistura de frango frito com talharim ao sugo Andando
pela calçada rumo ao Hexa eu passo diante de um bar que exibe um jogo onde a
seleção canarinho perde por um a zero Dentro da enfermagem jurei minha última
cerveja enquanto prostitutas lá fora esperavam pela enfermeira do turno da
noite para reabastecimento de camisinhas gratuitas Andando pela calçada rumo ao
Hexa eu passo diante de um bar que exibe um jogo onde a seleção canarinho perde
por dois a zero Eu a lamentar pela velha mendiga que chora sentada na porta de
aço da farmácia fechada ainda úmida pela chuva da madrugada onde ela diz que
não se sente brasileira e que na verdade ninguém a vê como tal Andando pela
calçada rumo ao Hexa eu passo diante de um bar que exibe um jogo onde a seleção
canarinho perde por três a zero Seguindo a esmo eu piso nas calçadas de ondas
negras e brancas silenciosamente sincronizadas que guiam e ilustram meus passos solitários pelo calçadão deserto de
Copacabana Andando
pela calçada rumo ao Hexa eu passo diante de um bar que exibe um jogo onde a
seleção canarinho perde por quatro a zero
Agora eu esmurro o vento mas eu menino queria ter punhos de homem bruto para
entrar numa academia de box e esmurrar o saco de areia até me tornar profissional
no ramo Andando
pela calçada rumo ao Hexa eu passo diante de um bar que exibe um jogo onde a
seleção canarinho perde por cinco a zero Sapatos eu tive muitos chinelos tive
poucos a arte me adotou para depois me deixar à míngua então dedico a ela minha
atual falta de chinelos e meu costume de chutar tampinhas que encontro pela rua
Andando pela calçada rumo ao Hexa eu passo diante de um bar que exibe um jogo
onde a seleção canarinho perde por seis a zero Perdido em noite de haicai com
uma sílaba iluminada na ponta da língua que subitamente evaporou da memória que
presumo fraca pela falta de vitamina e sais minerais Andando pela calçada rumo
ao Hexa eu passo diante de um bar que exibe um jogo onde a seleção canarinho
perde por sete a zero Demasiado chapado para resistir vou caindo irrestrito na
calçada da fama na qual eu peço que esqueçam o meu nome ao afundar os pés no
cimento mole de uma obra para contenção de enchentes.
Beto Palaio
Arte: Suzane Wonghon - 2006
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