julho 31, 2014


AMÃEM CÊVO LGOIU NMUA MÁ HROA!

Amãem você me lgoiu nmua má hroa. Msa já que lgoiu srugea a odna. É que esotu tdneo uma brignhiua ha ceiasra ndaa grvae.  Cdaa vez mias e mias a cdaa dia, poruqe sei que jntous sooms czaeaps de vcneer tdoas as baarirers, de vecenr as hoars com aegrlia e de vaor srboe as aass do tmepo, saugdno os bnos aers da exerpiênica que ele prcoooinrpa, e tranndoo-nos cdaa vez mias caonitnefs na edtdeniare dsete smetinento que nos une. Msemo tdneo a cezetra de que esse aomr é praa srmpee, adnia sim qrueo dezir-lhe que vlizroao cdaa mnutio que pasmosas jnutos, cmoo só tehno baos rorcdeações de toods os motoemns que já defmorutsas ao lnogo dtsee nssoo feilz rnlcnmaiaeoeto. O aomr se dgstesaa mas a vdia counitna frmie. Ahco que sou uma ctaha tmabém, no setindo que você folau, e eepsro. Tdoos os dais, me deuplsce, mas as vzees não thneo o que dezir. Tneho de ir ao scuapemrrdeo. diepos te lgio. Cadê a lsita meu bem?

Acarçú
Aadhccootoals
Adoçatnes 
Aorrz
Aiteze
Bocstoiis
Fiejão
Fahnria de mnocadia
Fhirana de rscoa
Fnrhaia de mhilo
Fniarha de trgio
Fuáb
alS
Céaf
Liete Csdaneodno
Crmee de lteie
Mnieasa
Óloe
Masinoee
Earttxo de totame
Mlhoo pntoro
Kehctup
Mhloo ignlês
Mtoasrda
Evras aormátcais
Temorpes
Mhloos de pintmea
Gnaeilats
Ltiee de ccoo
Ccoo rlaado
Essêncais aciftaiiris
Chás
Careel mtanial
Pão de froma
Baatta plhaa
Mraacrão
Mraacrão
Spoa
Mssaa
Quijeo raldao
Cldao de cnrae
Cadlo de ghliana
Oovs
Ftmenreo

Um hoemm e uma mehlur vveim uma isennta rleação de aomr, e dpoeis de aunlgs aons se saeparm, cdaa um vai em bcusa do própiro cimnaho, seam do riao de visão um do otruo. Que fim leovu aqulee smeentinto? O aomr reltnemae aabca? 


Boet  Paliao


(Resumo do embrulho verbal: a mãe ligou para uma conversinha com a filha, esta desabafou, falou mal do casamento e depois disse para ela que teria de ir ao supermercado. Logo desliga o fone e pede a lista de compras ao marido. No final, após as compras, surge um pensamento filosófico que demonstra que o casamento, apesar dos reveses, continuará firme e forte)


Misturação verbal: Beto Palaio
Ilustração: Joakim Drescher

julho 30, 2014


AFINAÇÃO NA ARTE DE CHUTAR TAMPINHAS

Há algum tempo venho afinando certa mania. Nos começos chutava tudo o que achava. A vontade era chutar. Um pedaço de papel, uma ponta de cigarro, outro pedaço de papel. Qualquer mancha na calçada me fazia vir trabalhando o arremesso com os pés. Depois não eram mais papéis, rolhas, caixas de fósforo. Não sei quando começou em mim o gosto sutil. Somente sei que começou. E vou tratando de trabalhá-lo, valorizando a simplicidade dos movimentos, belezas que procuro tirar dos pormenores mais corriqueiros da minha arte se afinando. Chutar tampinhas que encontro no caminho. (...) Posso diferenciar ao longe que tampinha é aquela ou aquela outra. Qual marca (se estiver de cortiça para baixo) e qual a força que devo empregar no chute. Dou uma gingada e quase já controlei tudo. Vou me chegando, a vontade crescendo, os pés crescendo para a tampinha, não quero chute vagabundo. Errei muitos, ainda erro. É plenamente aceitável a idéia de que para acertar, é necessário pequenas erradas. (...) Porque como as coisas, as tampinhas são desiguais. Para algumas que vêm nas garrafas de água mineral, reservo carinho. Cuidado particular, jeito. É doce chutá-las bem baixo, para subirem e demorarem no ar. Ou de lado, quase com o peito do pé, atingindo de chapa. Sobem. (...) Descobri com encanto que meus sapatos de borracha se prestam melhor para apurar minha tarefa. (...) A borracha apenas toca o cimento, a tampinha desliza, vai embora. Necessário equilibrar a força dos pés. (...) E mesmo calçando-os fico estudando os chutes. Necessário valorizá-las como merecem, ir trabalhando os pontapés com cautela, até que a borracha se aproxime de leve e atinja a tampinha e a faça subir, voar, pequenas distâncias atravessando a noite. (...) Porque desenvolvo variações, aprendo descobrindo chutes, chaleiras, usando o calcanhar, os lados dos pés. Com o direito, com o esquerdo, meio de lado... Tentativas. Consigo por exemplo embocá-las nos bueiros da rua. Se é impossível trabalhar na calçada, passo para o asfalto e fico a chutar.


João Antônio (no livro Malagueta, Perus e Bacanaço)


 João Antônio diante da máquina de escrever nos anos 70.

julho 29, 2014


NA SALA DE ESPERA

Em Worcester, Massachusetts. Eu fui com minha tia Consuelo. Tive de acompanhá-la ao dentista. Ali sentei-me a aguardar por ela. Na sala de espera daquele dentista. Era inverno. Ficou escuro logo cedo. A sala estava cheia de pessoas adultas. Casacos e sobretudos. Luminárias e revistas. Minha tia logo foi atendida. Parecia que o tempo não passava. Enquanto esperava eu lia a National Geographic. Tinha tempo para isto. Ler acuradamente. Estudar as fotografias enquanto esperava. Analisava neste ínterim as vizinhanças de um vulcão. Rodeado de sombras negras e afogado em cinzas. Noutra foto ele transbordava em riachos de fogo. Vi ali especialistas vestindo calças refratárias. Botas especiais e capacetes. Outras matérias me entretêm. Um homem foi dependurado para morrer em um poste. Sob ele uma placa “porcão”. Uma legenda nem tanto esclarecedora. Havia entre as matérias. Bebês com cabeças alongadas e seus pescocinhos enfeixados de fios paralelos encordoados. Também mulheres entristecidas mostrando orgulhosas os seus pescoços. Elas também os enfeixavam em disposições alongadas de colares metálicos ajustados. A cena lembrava-me das lâmpadas com seus soquetes de metal. Além disto notava seus seios que pareciam terrivelmente macilentos. Passei logo de uma leitura para outra. Era muito prestativa para conseguir parar de ler. Então prestei atenção na capa da revista. As margens amarelas. A data. Quando num repente. Lá dentro do consultório surgiu um “ai” de dor. Parecia muito com a voz de minha tia Consuelo. Não muito alto, ela reclamava. Tive certeza absoluta que era ela demonstrando dor. Embora minha tia fosse uma pessoa muito tímida. Tão tímida que a confundiam com uma retardada. Só de imaginar a cena. Por um momento sentei-me lá dentro, no lugar dela. Não era mais a voz de minha tia. Era a minha própria voz que gritava. Fazia isto, é claro, através da minha própria boca. Sem sombra de dúvidas eu agora era a minha tia. Eu, aliás nós duas, estávamos caindo. Com nossos olhos presos na capa da National Geographic de Fevereiro de 1918. # Eu disse para mim mesma: três dias apenas. Logo você terá sete anos de idade. Falava isto com a intenção de fazer parar a sensação de estar despencando. Uma sensação de que cairia mesmo do mundo que girava sem parar. Na sua trajetória dentro do espaço frio e de cor negro-azulada. Onde eu podia mesmo sentir. Você é um ego. Você será uma dessas Elizabeths. Você logo será uma delas. E porque você se tornaria uma delas? Eu evitava até de olhar. E constatar que o que eu temia poderia se tornar de fato verdadeiro. Não podia observar nada além do meu campo de visão. Só via uma série de joelhos com suas sombras alongadas. Calças e saias e botas. E também diferentes pares de mãos. Tudo abrigado sob as luzes da sala de espera. Eu sabia que nada estranho estava acontecendo. E que também nada de estranho aconteceria no futuro. # E porque eu seria minha tia? Ou eu mesma, ou outra pessoa? Havia similaridades. Botas, mãos, a voz familiar lá dentro. Eu senti na minha garganta. Ou mesmo. Na revista National Geographic. E naqueles peitos terrivelmente feios. Tudo nos unia num só acorde. O que seria esse algo que nos orquestrava em uníssono? Porque será que me faltavam. Palavras para aquela situação tão “disparatada”? Como cheguei até aqui. Como chegaram todos esses que esperam? E ouvi claramente. Um grito de dor que poderia ter se tornado mais cruel e lancinante, mas que não se tornou. # A sala de espera era brilhante e muito quente. Ela estava deslizando para baixo de uma imensa onda negra, e outra que vinha, e outra, e outra. # Então eu estava de volta. E uma Guerra acontecia lá fora. Em Worcester, Massachusetts. Onde era noite e tinha lama e fazia frio. E nós estávamos somente no quinto dia de Fevereiro de 1918.


ELIZABETH BISHOP


Tradução: Beto Palaio
Ilustração: National Geographic

julho 28, 2014


POEMA MULHER

Si come per levar, donna, si pone 
in pietra alpestra e dura 
una viva figura 
che là più cresce u'più la pietra scema 
tal alcun'opre buone 
per l'alma che pur trema 
cela il superchio della propria carne 
con l'inculta sua cruda e dura scorza
Como por capricho, a mulher, posa
na pedra indócil e dura
um retrato vívido
que súbito surge e logo a pedra assinala
como um bom alvitre
para a alma que ainda treme
ao abrigar ofertas de sua própria carne
inculta com sua pele crua e dura

MICHELÂNGELO (1541)


Tradução: Beto Palaio 
Foto: Lillian Bassman em 1952

julho 27, 2014


ARQUEOLOGIAS COM LADY LÁZARO


Lady Lázaro=Eu o fiz de novoUm ano em cada dezEu agüentoUm tipo de milagre ambulante, minha peleBrilhante tal qual um abajur nazistaMeu pé direitoUm peso de papel,Minha face, como um pano inexpressivo, delicadoEm linho judeu.Tire o lençoÓ, meu inimigoEu te assusto?O nariz, o orifício ocular, a dentição plena?O hálito azedoSe esvairá em um dia.Logo, logo a carneQue a gruta do túmulo comeu se sentiráEm casa sobre mimE eu, uma mulher sorridente.Eu, com apenas trinta anos.E como o gato tenho nove vezes para morrerEsta é o número três.Que lixoAniquilar a cada década.Que milhões de filamentos.A multidão vulgarSe acotovela para verEles me desembrulharem mão e pé.O grande strip tease Senhores, senhorasEis as minhas mãosEis os meus joelhos.Posso ser pele e ossoContudo, sou a mesma, idêntica mulher.Na primeira vez que aconteceu eu tinha dez anos.Foi um acidente.Na segunda vez eu pretendiAgüentar e nem sequer voltar.Eu fechei em pedraComo uma concha do mar.Eles tiveram que chamar e chamarE arrancar de mim os vermes, pérolas grudentas.MorrerÉ uma arte como todo o resto.Eu o faço excepcionalmente bem.Eu o faço para saber o inferno.Eu o faço para saber a real.Eu suponho que se possa dizer que eu tenho um chamado.É fácil fazê-lo em uma cela.É fácil fazê-lo e permanecer estático.É o teátricoRetorno, em plena luz do diaAo mesmo lugar, ao mesmo rosto, aos mesmos brutosEntretidos gritando“um milagre!”Isso me estarrece.Há um custoPara ver as minhas cicatrizes, há um custoPara sentir o meu coraçãoEle realmente pulsa.E há um custo, um grande custoPor uma palavra, ou um toqueOu um pouco de sangueOu um pedaço do meu cabelo ou um pedaço da minha roupa.Então, então, Herr Doktor.Então, Herr Inimigo.Eu sou sua composiçãoEu sou seu pertenceO bebê de ouro puroQue derrete a um grito estridente.Eu me viro e ardo.Não pense que eu subestimo sua grande preocupação.Cinzas, cinzasVocê cutuca e revolve.Carne, osso, não há nada lá.Um sabonete,Uma aliança,Um dente de ouro.Herr Deus, Herr LúciferCuidadoCuidado.De dentro das cinzasEu desponto, meu cabelo em fogoE devoro homens como ar.=Sylvia Plath


whiplashgirlchild:  My two favorite stanzas from Sylvia Plath’s poem “Lady Lazarus.” This is a picture I took of Plath’s original manuscript of the poem.

Aqui a diagramação sugere um conto extremado. Mas Lady Lázaro é um poema que foi escrito por Sylvia Plath em 1966

julho 26, 2014

Romy Schneider 


Loving Romy Schneider

Adorando Romy Schneider


By David St. John

It was a line from Schiller
Era uma fala de Schiller
Set by Schumann, I think, that she wrote
Composta por Schumann, eu acho, que ela copiou
In the flyleaf of the small photo album
Na folha de rosto do seu pequeno álbum
Filled entirely with postcards of nudes
Inteiramente tomado por postais com nus
Some male & some female-but each
Mostrando homens & mulheres—mas cada um
More miraculous (not to mention immortal)
Algo fantásticos (para não dizer imortais)
In their marble flesh than we, who, of course,
Em sua pele de mármore ao que, nós, quem, de fato
Exhausted & sleepless & spent, collapsed into
Esgotados & atentos & entregues, desmaiávamos assim
That coma of the loved & wounded, or vice versa.
No coma dos adorados & feridos, ou vice-versa.
Of all the nudes, I preferred the Rodins,
De todos aqueles nus, sempre preferi os de Rodin,
Those postcards being a little grainy & indistinct,
Naqueles postais estando um tanto granulados e gastos
Sort of how I think of myself in the early morning.
O que combinava comigo ao acordar pela manhã
Then I put the Schumann on my ancient, almost antique
Então coloco Schumann naquela velha, quase relíquia,
Turntable, & the whole of my fate revolves slowly
Vitrola, & meu inteiro destino gira calmamente
Into some kind of brutal focus, at last.
Num arremedo cruel de luzes da ribalta, por fim.


David St. John

David was born in Fresno, California. He has been honored
with many prizes, including the Guggenheim Foundation prize for poetry.
David nasceu em Fresno, California. Ele já teve a honra de ser premiado 
inúmeras vezes, inclusive ganhando o prêmio concedido pela 
Fundação Guggenheim para poesia.




Tradução: Beto Palaio  
Arte: Devin Miles

julho 25, 2014


ADÁGIO PARA UMA LIGEIRA FUGA

Com batom. Ela desenhou uma flecha no assoalho. A ponta da flecha indicava para a porta da rua. Um resto de cigarro apagou sozinho sobre o taco de madeira da sala. Eis o receio. Pequenino a princípio. Que cresceu em excesso dentro dela.

A fatalidade promovia o cerco. O trabalho doméstico é sempre o mesmo. Naquele momento o almoço sequer estava pronto. Um rio passa no fundo da casa. Um barco está a sua espera. Ela deixa um bilhete para o filho que está na escola. Para ele. Pede perdão.

Sentindo-se destoada com sua própria vida. As curvas de suas pernas recebem a calcinha. Depois ajeita a meia-calça. Olha-se no espelho. Pensa em embarcar para o Rio de Janeiro com o novo amante. Ele a aguarda dentro da canoa.

O rio passa sem pressa. Pouco sabe de si o rio. Além de ir embora o tempo todo. Há um céu que corre no rio. Reflexos de um alto desejo. Luz de ir e vir. O rio só existe quando surge a luz. Na noite a água se apaga. A noite e o rio são cegos.

Sua rua está vazia pelo sol quente do meio-dia. A moça deixa-se levar pelo entusiasmo inicial. Mas teme pelo mau gênio do marido. Ele tem tudo para nunca deixar de persegui-la. Ela nem quer pensar nisto. Lamenta apenas pelo filho que fica. Sofre nele.

A liberdade em si é fatal para os temerosos. Há uma procissão de pequenos fatos. A canoa do amante estava longe demais. Ela combinou que ele esperasse na margem, sob o primeiro pé de salgueiro. A canoa parecia estar mais abaixo. Para lá seguiu.

Por demais angustiada. Não conseguia andar mais depressa pelo sapato de salto que colocou. Além disto, havia a sacola de roupas. Ela está muito confusa. Há raízes de arrependimento que crescem dentro dela. Hoje é um dia terrível. Tudo lhe dói.

A canoa estava alinhada com a margem do rio. O silêncio era angustiante. Ela não vê o homem que deveria esperá-la. Apenas algo improvável que estava oculto dentro do barco. Quando se aproxima toma um susto. Quer vomitar ao vê-lo morto.

Qualquer coisa. Passa-se agora. Naquele momento ela ouve o pipoco de tiros. Na barranca do rio ela vê seu marido. Ele está com um revólver na mão. Tiros em sua direção. Queimam as dores que entram em seu corpo. Ela se aflige. Caindo de bruços.

Névoas leitosas. Manhã que nunca termina. Sua mãe a chama. Sozinha ela deixa a margem do rio. Ela é menina novamente. Mercadores atravessam seu caminho com mulas repletas de víveres. Um dos mercadores lhe sorri. É seu pai.

A moça sabe que algo está errado. Não entende o que é ainda. Assim que chega à casa da mãe. Um bando de crianças passa correndo por ela. Eles entram e fecham a porta. Nem a percebem ali. Contudo. Ela atravessa a parede. E adentra a casa.  

Ali dentro ela não reconhece a casa de sua mãe. Uma respiração entrecortada a faz ir da sala ao quarto. Lá ela encontra sua avó deitada. A avó não estava dormindo. Abriu-lhe os braços. Disse para ela se acalmar. Tudo ficará bem.

Tudo ficará bem. Disse para ela se acalmar. Abriu-lhe os braços. A avó não estava dormindo. Lá ela encontra sua avó deitada. Uma respiração entrecortada a faz ir da sala ao quarto. Ali dentro ela não reconhece a casa de sua mãe. Mas tudo ficará bem.


Beto Palaio



Arte: Pintura de Jorge Frutos 

julho 22, 2014


DOBROU-SE PARA PINTAR AS UNHAS DOS PÉS

Nem fazia mais sentido. O filme ficara absolutamente dispensável. Um mundo hostil acampou do lado de fora da sala. Os soldados alemães jamais chegariam a criar trincheiras na fronteira da França. Ouço, contudo. Passos teus em direção ao quarto de dormir. Um arrastar de convites que desfilam ondulantes. À solicitação de seus quadris. Foges de mim por um instante. Até que alcançamos o primeiro vestígio de lençol a nos submergir. O mundo acaba aqui. Nem existe mais nada. Lá fora aqui dentro fora de nós dentro de nós. Tudo é uma coisa só.

Numa sala secreta. Apenas você e o deus joalheiro. A criação de uma obra-prima. Mulher arte. Fêmea jóia rara. Criatura especial. Amante excepcional. Amiga infindável. O criador lhe deseja sorte. Abre a porta de seu atelier. E libera sua filha única ao som de uma sonata de amor e liberdade. Entretanto. Não foi assim que te conheci. Estava numa sala de exibição de pinturas. Uma série de quadros impressionistas. Lá fora chovia. Ninguém mais via o Almoço na Grama de Manet. Uma porta lateral dava para outra sala. Para lá me dirigi. Ouço passos.

Frente a frente te vejo. Sem nenhuma surpresa. Você se coloca por detrás de um balcão em uma outra pintura do Manet. Há champanhe e frutas e rosas sobre a pedra fria de mármore deste balcão. Ao fundo um espelho mostra exatamente, em reflexo, onde estamos. Um bar de luxo revela a bela balconista. Você me oferece champanhe. Há uma tentadora variação de ofertas que seus lábios balbuciam. O licor de sua dádiva é tentador. Seus lábios parecem me procurar. Aceito o toque de cetim de seus dedos. Apanho a taça. E bebo. À nossa epopéia.

Vamos ao cinema hoje? Desperto subitamente. Contigo dentro deste museu. Onde observamos a pintura com a atendente no balcão, à nossa frente. Justo a tempo de fazermos um pacto. Pedaços de lembranças num carrossel. Habitamos agora dentro do ir e vir da arte. Toda realeza daquela quietude. Olhei para você ao pé da cama. Lembrança tentadora. Estavas insone com um pincelzinho de esmalte vermelho na mão. Livrando-se de todo empecilho. Sussurra-me que a cor vermelha é a cor da paixão. E dobra-se. Arte a inventar arte. O vermelho arde.

Insiste a minha pintora. Encantamentos. Na maneira como transcende. Esta temporada nas manhãs de Setembro. Aconselha intensa jovialidade. Nosso amor é muito, muito extraordinário. Ainda mais agora que estamos invisíveis para o mundo lá fora. Roma fica no Uruguai, Montevidéu fica nos States, Nova York fica na Itália. Aqui não entendemos nada de pontos cardeais. Entontecidos. Ao vindouro. Hoje é dia para criarmos lembranças. Choveu em mim ou foram seus olhos? Soluços de alegria. Nós abrimos esta exceção. Lacrimejar só de felicidade.


Beto Palaio


Arte: Shawn Lawson, depois de Manet.

julho 21, 2014


GRUDE DE BALAS TOFFE

A bala toffe gruda no céu da boca. Num canto da sala o ramo seco de folha de palmeirinha que minha irmã Nice deixou para secar depois da missa de ação de graças pelo dia de Ramos. A bala toffe flutua de um lado para o outro da boca. O doce. O ar. O contentamento de poder sorver a manhã através da janela aberta. Deixo entrar a luz. A bela luz.

A bala toffe aperfeiçoa-se numa pasta grudenta tomando a forma de um pastiche nos dentes de trás. Nunca se sabe se o dia da vitória é o dia da derrota. Ganhar e perder se diferenciam pelo lado tênue de uma moedinha. O conferir das compras faz com que a lata de massa de tomate fosse observada como ausente. Com isto lá se vai o bom humor.

Há clorofila no final do arco-íris. Enquanto o doce na ponta da língua se iguala aos bons momentos do tempo do ginásio. Vejo ao lado da piscina aquela deusa que se prepara para o mergulho desde o mais alto ponto do trampolim. A moça de biquíni preto pula na piscina. Há poesia no ar. O delírio de quem mergulha é acompanhado do arfar. O ar vem depois.  

Na fusão, o grude. Prometemos um ao outro que o casamento não aconteceria. O tal noivado era apenas de brincadeirinha. Nossas alianças foram emprestadas dos puxadores de latinhas de cerveja. Ela e eu. Olhávamos para os pobres círculos metálicos como a conferir o desastre. Depois nos casamos de verdade. Anos de porfia. Sem alianças.

No calçadão à beira-mar. O algodão doce saiu quente e formou uma bola imensa de doce rarefeito. Sua boca ávida sorveu a frágil bola. Não tarda você engorda e perde a linha que lhe confere eterna juventude. Ainda mais que adora balas toffe. Encontrei um desses arremedos de goma que estava grudado na beira da pia do lavabo. Foi você? Não foi?

Cadeiras vazias nas mesas vazias. O inverno está castigando com vento gélido os monturos de areia na praia deserta. Só uma gaivota caminha por ali. Ao longe a neblina esconde o mar. Faz tempo que não nos vemos. O divórcio é como um colar que desfia contas salobras na saliva. A bala toffe não tem utilidade. Hoje. A bala toffe luta com o fel da boca.

Existo um cobiçar distraído através das persianas. As imagens gritam lá fora. As farpas de néon são as que mais me doem. Precisas, completas, sofisticadas. Para luzi-las a cidade dorme em sombras. Anoitece em idéias coloridas que se esvaem sem nunca findarem. O néon faz toffe na boca do céu. Mais além. Ao grude de criar estrelas. O infinito baba.


Beto Palaio



Arte: Bruce Nauman - Arranjos Vulneráveis - Néon.

julho 18, 2014


O ROTEIRISTA E A ESTRELA

Disse que não faria diferença. Nem seguiu a multidão. Preferiu andar ao meu lado. Depois de um tempo revelou que morava só. Queria ir ao cinema. Queria comer um hambúrguer. Queria me namorar. Insistia nisso de me namorar.

O tempo frio favorece a mão que te acolhe. Passo o tempo com ela num apartamento pequeno. Sua foto ampliada foi colocada na parede vazia. Sonhava que seria estrela. A oportunidade é esta. Escrevo-lhe um roteiro. Naquela mesma tarde.

Ela leu o roteiro improvisado num guardanapo de papel. No nosso filme ela sai do banheiro nua após um demorado banho de chuveiro. Ali ela pediu que eu também tomasse um banho com ela. Não estava no roteiro. Mas quem se importa?

Não posso fazer esse filme. Não estou pronta ainda. Tenho de voltar para minha cidade em Minas. Estou preocupada com minha mãe. Se você quiser eu te apresento para minha família em Minas. Eles nunca viram um roteirista antes.

Não quis dirigir o Chevette. Ela dirigiu o tempo todo. As estradas de terra de Minas estavam secas. Olho para trás e vejo a poeira que voa. Estamos cruzando um pasto. Algumas vacas estão no meio do caminho. Espanto-as com pedras na mão.

Como um destino do coração. Ela explica para a mãe na cozinha. Posso ouvir da sala. Acho que o pai dela também ouve. O café recém coado perfuma a casa toda. Ela fala para a mãe que sou namorado dela. Jura que sou a pessoa certa. Agora sim.

A casa era simples. Construída de pau-a-pique. Uma luz baça cruzava a porta da sala e ia receber os esfumaçados do fogão a lenha desde a cozinha. Tudo estava tão lindo. Um cão dormia na porta de entrada. Um pássaro cantava o tempo todo lá fora.

Mais tarde fomos passear a beira de um lago. O céu estava azul demais. Ela me pediu para ficar bem junto dela. Os pais estavam olhando de longe. Ela segurou meu rosto com as palmas das mãos a me envolver. Sua língua tocou a minha. Gostei.

Ao voltarmos Minas pareceu pouco acolhedora. Chovia o tempo todo. Eu a conhecia fazia menos de uma semana. E já estava sendo apresentado a seus pais. Perguntei o motivo. Ela disse que um homem era o dono dela. Ele a mantinha em São Paulo.

Depois me descreveu a cena toda. Esse homem era um rico industrial. Era casado. Mantinha aquele apartamento alugado. Era extremamente ciumento. Andava armado e tinha o gênio ruim. Ela me pedia proteção. Não sabia mais o que fazer.

Passei a semana sem pensar na moça que seria artista de cinema. São Paulo estava acelerada como sempre. Atravessei as ruas do Centro. Vi de longe a janela do apartamento dela fechada. Perguntei ao porteiro. Ela foi embora. Ele disse.

Volto para a rua com meus desejos e temores. Um capricho do coração dessa moça. Havia sido apenas isso. Uma imensa lua nascia para os lados da Consolação. E depois. Quis ver um filme. Entro sozinho no Marabá. Dormi ali o filme inteiro.


Beto Palaio


Foto: parede de pau-a-pique, autor desconhecido.

julho 17, 2014


O ANIVERSÁRIO DA GUERRA

Ao detalhe minucioso. Todos foram unânimes. No fogo que arde. Muitos suicidaram-se a si mesmos. A raça humana subiu muito pouco para cima, mas depois desceu em excesso, demasiadamente excessivo, aliás, bastante mesmo, para baixo. Numa palavra o abandono em que nos encontrávamos. Uma surpresa inesperada. A palavra Deus estava escrita a giz numa parede deserta. Faltava a construção por detrás daquela velha parede que agora não servia mais para nada. Aqui e ali. Um acúmulo de grama seca que o vento leva para onde quer. Um corredor de antigas pastilhas soltas que agora se ocultam quando podem na brotoeja do chão de terra. Contudo. Alguns arbustos de espinhos, ao crescerem espaçados, estão tão vivos quanto um bicho vivo. Na fronteira de tudo o que houve ali um dia. Fatos relativos ao empréstimo temporário. Na certeza absoluta do elo de ligação. Avança a força reconstrutiva da natureza que antes, muito antes da guerra, se esparramava até onde a vista poderia alcançar. E ela retornaria de qualquer maneira. Ocorre que não há outra alternativa, principalmente para a natureza.

As luzes se acenderam com muito aplauso. Havia no clamor popular um sinal de satisfação e jubilo. A orquestra tocara divinamente. Os músicos ainda estão alinhados com seus instrumentos à mostra. Alguém tosse na platéia. Apenas um músico está impaciente para tocar novamente, e assim agradar aquele povo sofrido. É tempo de guerra. Todos ali tocam por um prato de comida. O músico levanta-se de sua cadeira e toca um acorde de violino sem ser interrompido pelo maestro. Depois pára subitamente de tocar. Olha para a platéia como se adivinhasse o motivo de todos estarem ali pedindo por mais música. O violinista tem lágrimas nos olhos. Ele pede para falar com o público. A princípio ninguém entende o que ele diz, já que mistura o francês ao inglês arrastado. Depois grita algumas palavras em francês. Explica que sua família inteira fora morta pelos alemães. Ele não quer nada para si. Mas pede pelas famílias dos outros músicos. Pelo menos para eles, o violinista pede.

Minha criança querida vá. Não se esqueça que te amo muito. Pegue o xale da mamãe que está atrás da porta. Proteja seu pescocinho com ele. Vai se sentir aquecido assim. Vá buscar o trigo para sua mãe. Há luz sim. Já há luz no caminho. Pise neste lado da fronteira. Não passe defronte ao portão da guerra. Atravesse a rua olhando para todos os lados. Se houver trigo, assaremos o pão. Se houver pão quentinho espalharemos sobre ele a manteiga. Se houver nata faremos a manteiga. No dia em que tivermos espaço criaremos uma vaca. A liberdade pede muito espaço. Bastante espaço ela pede. Se os donos da guerra soubessem, meu filho. Apenas se soubessem. Se eles pudessem entender o clamor da paz mundial dentro do coração dessa velha mãe. Mas eles são tão ignorantes de tudo. Tão animalescos que jamais iriam entender o que seja a paz. Jamais irão entender isto... Agora vá buscar o trigo, meu filho. Vá...


Beto Palaio



Arte: Fortunino Matania - Adeus velho amigo - 1916

julho 16, 2014


SONHOS, SONHOS, SONHOS


EU PRECISO NAVEGAR. Tudo cabe na palma da mão. O sonhar sem limites. Arriscar-se em visões. Navegar noutros mares. Caminhar novas trilhas. O futuro nas mãos. O espaço para o sonho. Descortina-se a vida. Na retina dos olhos. Luz que se acende.  Ilumina o caminho. Passo a passo adiante. Limites não há. Para quem sabe sonhar.

NESTE ESPELHO feito de gelo. Ela dormia mais algumas horas, apenas mais algumas horas. Durante a noite ela teve um sonho conturbado, que lhe era intangível, que lhe escapava, deixando apenas uma impressão sobre seus sentidos entorpecidos. No sonho ela estava de pé e nua, num deserto inóspito, sob o frio gélido do início da manhã. Havia neve e gelo por todos os lados. No entanto, ela estava à procura de uma fonte de água que lhe aliviasse a sede terrível que sentia. Mas não foi água potável o que encontrou. Havia no meio daquele vasto campo de gelo uma máquina de costura, apenas aquela velha máquina de costura que a esperava. Quando menina ela havia trabalhado para sua mãe naquela máquina de costura. Fora prisioneira da insanidade e da pobreza em que viveram. Uma situação inadiável onde teria de servir sua mãe por longos anos, sem remuneração ou incentivo de que estaria fazendo um bom trabalho. Agora, naquele sonho, ela recebia aquela máquina de costura de volta. Então ela sentou-se na máquina e começou a costurar. Logo ela notou que confeccionava um balão colorido. Dias e noites geladas. Naquela terrível planície ela confeccionou seu balão. Depois falou durante o sono: “diga para minha mãe que estou indo. O balão está pronto. Diga que estou indo”. Naquele sonho ela voou com o balão para longe. Por sobre uma planície repleta de gelo ela vislumbra finalmente um ponto verde. Um jardim que a esperava. Mais perto ela vê que o jardim é um campo florido com uma fonte que jorra água fresca. Então ela dispensa o balão e mata sua sede. Depois ela acorda e até que gostou um pouco do que sonhou.

DE VOLTA AO SONHO hoje acordei de um sonho estranho desses que nos causam vertigem e a sensação de que estamos caindo da cama e ao mesmo tempo a vontade de continuar a sonhar para saber o desfecho pois nos resta a sensação de algo inacabado como na vida parecem inacabados certos fatos que nos ocorrem mas sem dúvida na vida real não estaria sendo perseguida por um lobo feroz e voraz como numa estória de chapeuzinho vermelho perdida na floresta indo para a casa da vovó mas talvez por algum bandido ou assassino que muito não diferiria de um lobo embora suas intenções possam ser outras que não comer-me se bem que num sentido figurado poderia até ser essa sua intenção afinal não faltam indivíduos com taras diversas nessa cidade grande assim como a floresta e suas imensas  árvores poderiam simbolizar os enormes edifícios que nos rodeiam  no centro da cidade e quem sabe um desejo secreto de voltar a ser criança num mundo para mim desconhecido e cheio de surpresas seja representado nesse sonho bizarro onde vejo essa vontade realizar-se o que me leva a divertidamente pensar que se pegar novamente no sono talvez o sonho possa continuar de onde parou e com um sorriso nos lábios fecho meus olhos a espera do lobo


Ianê Mello + Beto Palaio + Ianê Mello


(Dois mini-contos de Ianê Mello com um conto de Beto Palaio ao centro)


Arte: Marc Chagall – Anoitecer na janela - 1950

julho 14, 2014


ARTE. ELA ERA SIM
  
Arte. Ela era sim. Ela era uma tiazinha faceira. Aos tantos aninhos. Linda feiticeira. Péssima benzedeira. Ótima catimbeira. Adorava saborear pipoca salgada ao exagero. Comia batatas chips fazendo ruídos. Tomava coca-cola direto da latinha. Arrotava discretamente, ou não. Comprava brigas alheias. Por muito pouco se amedrontava. Irrompia em promessas a madrugada ao pé de uma vela acesa. Ela era como a arte que parturejava novas incursões para despojamento em espelho próprio.

Arte. Ela era sim. Ela era do barulho. Era um samba-sincopado. Um samba-de-breque. Um samba-canção. Um ziriguidum. Um pega-prá-capar. Uma cotovia ciscando feno. Uma galinha nas noites paulistanas. Um saco de pancadas dos outros. Uma tentação. Uma mãe extremosa. Um anjo. Ela era sempre rancorosa e corria desajeitada de salto alto. Assim como etiquetava, controlava e era do contra: se sim, não. Se não, sim. Ela era como a arte que adentrava funduras alheias sem sequer sentir rancor em remexer velhas feridas.

Arte. Ela era sim. Avoada que só vendo. Sonhava sempre que estava mergulhando numa piscina sem fundo. Formava logo uma opinião sobre alguém desconhecido: ou prestava, ou não prestava. Ela era uma procissão, fazendo caras e bocas, gostava de pregar peças, casear, chulear e arrematar. Confiava demais nas suas opiniões e não compartilhava do sexto sentido alheio. Ela era fina e flor e sol e chuva e dias inteiros. Ela esperava sempre por melhores momentos. Ela era como a arte que encetava a moral na sala de estar para depois se desfazer em pecados no piso da área de serviço.

Arte. Ela era sim. Ela era solitária. Andava pisando ovos. Cercava-se de conflitos alheios. Fingia-se de inocente. Adorava ser a primeira nas filas. Comprava gato por lebre. Era extremamente submissa. Era desajeitada fazendo sexo. Queria chegar logo ao orgasmo. Mas ela nunca gozava. Ela era um texto escrito, segundo impressões e lugares. Elevava-se à nona potência se o assunto era sobre o amor. Mas não tinha paz, pois apresentava-se como fonte, como guerra, como fome, como partilha, como meiga e como megera. Ela era como a arte que se mostrava nas paisagens de reles calendários sem perder o brilho das grandes inaugurações.

Arte. Ela era sim. Ela era feliz até demais. Ela era um prêmio Nobel. Entendia de psicologia. Amava textos adocicados. Detestava trocadilhos. Fazia-se de tonta. Adorava chupar mangas no pé. Acreditava em Deus. Sonhava acordada. Tinha uma bússola. Nunca mostrava seu lado mau. Era alegre somente enquanto triste. Ela era filha prestimosa. Guardava os boletins de sua escola primária. Queria rasgar as cartas da amante de seu pai. Ficava horas no escuro de seu quarto. Tinha medo de andar no Metrô. Medo de trovoadas. Medo de cruzar o Atlântico. Mas arrojava-se em ser só e independente. Ela era como a arte que se despojava na areia da praia em dia de sábado para se apresentar alegre e esfuziante na fila de ponto da fábrica de tecidos nas manhãs de segunda-feira.


Beto Palaio



Arte: Frida Gustavsson na campanha de Nina Ricci.