julho 04, 2014

Dora Maar      Portrait de Jacqueline Lamba nu      1939

PARECIA CONTO RUSSO

Parecia um conto russo.  Muito longe. Avistava uma penca de galhos retorcidos e um vulto que se distanciava pela Alameda dos Enjeitados. Sentiu um calafrio e passou rente ao sujeito que exibia na panturrilha direita a tatuagem de um batráquio, gratuito e despropositado. Tartaruga negra gigante. Vira o tal sujeito, bermuda vermelha, tênis mostarda. Cabelos pintados de azul, a camisa escura com dizeres que não compreendia e mochila de tecido xadrez. Todo ele contrastava com a paisagem lúgubre de conto russo. Nataschas, Pietrovnas, Ivanovnas, Irganovich, Pietrovich, Serguei, Dimitris. Podia sentir a neve em flocos cair-lhe sobre os ombros. Não sabia o que comer e onde dormir. A Alameda dos Enjeitados. Pensava motel, aluguel e dívidas. Em que leito deitaria mágoas vãs, em que cantos sombrios se arrastaria após o vinho, a aguardente sem fim que o despejava nos túmulos de agrupamentos contingentes, quando saía à madrugada sem consentimento ou fio de vida. Nada de fogo, somente ladeiras sem sentido. Turistas dobravam a esquina sorrindo. Ruínas do Parque. As crianças dentuças e oblíquas o viam como o homem que corria solitário na esteira de um cinema antigo, preto e branco, imagem rota, esguia e triste. Sempre. A ideia? Conto russo. Nataschas, Dimitris. Ivanovnas. Minha mãe estava louca e meu pai já tinha passado dessa para melhor. Meus livros queimara por causa do frio das ruas e ali, já não lembrava qual deles teria preservado das chamas. Algum teria vontade de ler agora, talvez um poema de Puchkin. Já não lembrava quase nada das cartas russas ou qualquer vestígio de beletrista o presenteava. Natascha era uma garota de programa que encontrara numa noite quente, verão, no Rio de Janeiro, e lhe reparara as costas tatuadas com multitudes de flores tropicais, um jardim petulante e sensual que lhe coube desvendar noites adentro. Incongruente Natascha, a sua garota de um conto russo improvável, mulher da vida fácil, divindade em seu quarto, de quatro, prazeres sem fim, até que certo Dimitri levou-a embora. Maldito russo. Vontade de matar pela primeira vez. A traição tem implicações terríveis sobre a moral de um homem bom, que ama as mulheres como a própria vida. Natascha era como a água benta brotando pura de uma nascente cheia de um brilho faiscante e virginal, que aplacava sua ânsia de umidade e sexo de bem me quer, pois pura castidade em presença luminosa de coxas quentes e pelos fenomenais; pernas, seios e braços aveludados; e seu cheiro, ah, aromas, todos os perfumes da terra, Natascha! -, que sabia fazê-lo rodar e amar o mundo, a vida, e esquecer as misérias e a maldade. Natascha e toda a impossibilidade do ser, impossível a seu lado, regaço. Antes do maldito russo aparecer. Antes dele. E da vontade de matar. A Alameda era quieta e fria, mas não era inverno. Os vultos, fugidios, passavam como lampejo e sua visão, obstruída por luzes opacas, agora vinha dos seios de Natascha flutuando na tarde fria. Junto aos flocos de neve que lhe caíam nos ombros. Imagem que lhe parecia bonita para um conto. Russo. Natascha, seus seios morenos e fartos, ungidos pelo branco da neve às auréolas. Bicos que se faziam duros ao contato de suas mãos, dentes, boca; uma sensação incomparável. Um sonho que se despedaçava ao contato de uma pesada bofetada que recebia no rosto, de supetão. O guarda. Não era permitido ficar ali. O simplesmente deixar-se ficar era proibido. Deveria sair do local imediatamente, era um “zé ninguém”, imprestável, louco? Ardia-lhe o rosto e a imagem de sua amada Natascha perdeu-se por completo. Os flocos sumiram por encanto. A Alameda era uma rua qualquer; e ele um entre outros que não se encaixavam naquela paisagem. A menina passeava com um picolé e parecia morango. Da cor que ficou a sala depois de tudo.


Marcia Lahtermaher



Arte: DORA MAAR – Retrato de Jacqueline Lamba - 1939

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