julho 30, 2014


AFINAÇÃO NA ARTE DE CHUTAR TAMPINHAS

Há algum tempo venho afinando certa mania. Nos começos chutava tudo o que achava. A vontade era chutar. Um pedaço de papel, uma ponta de cigarro, outro pedaço de papel. Qualquer mancha na calçada me fazia vir trabalhando o arremesso com os pés. Depois não eram mais papéis, rolhas, caixas de fósforo. Não sei quando começou em mim o gosto sutil. Somente sei que começou. E vou tratando de trabalhá-lo, valorizando a simplicidade dos movimentos, belezas que procuro tirar dos pormenores mais corriqueiros da minha arte se afinando. Chutar tampinhas que encontro no caminho. (...) Posso diferenciar ao longe que tampinha é aquela ou aquela outra. Qual marca (se estiver de cortiça para baixo) e qual a força que devo empregar no chute. Dou uma gingada e quase já controlei tudo. Vou me chegando, a vontade crescendo, os pés crescendo para a tampinha, não quero chute vagabundo. Errei muitos, ainda erro. É plenamente aceitável a idéia de que para acertar, é necessário pequenas erradas. (...) Porque como as coisas, as tampinhas são desiguais. Para algumas que vêm nas garrafas de água mineral, reservo carinho. Cuidado particular, jeito. É doce chutá-las bem baixo, para subirem e demorarem no ar. Ou de lado, quase com o peito do pé, atingindo de chapa. Sobem. (...) Descobri com encanto que meus sapatos de borracha se prestam melhor para apurar minha tarefa. (...) A borracha apenas toca o cimento, a tampinha desliza, vai embora. Necessário equilibrar a força dos pés. (...) E mesmo calçando-os fico estudando os chutes. Necessário valorizá-las como merecem, ir trabalhando os pontapés com cautela, até que a borracha se aproxime de leve e atinja a tampinha e a faça subir, voar, pequenas distâncias atravessando a noite. (...) Porque desenvolvo variações, aprendo descobrindo chutes, chaleiras, usando o calcanhar, os lados dos pés. Com o direito, com o esquerdo, meio de lado... Tentativas. Consigo por exemplo embocá-las nos bueiros da rua. Se é impossível trabalhar na calçada, passo para o asfalto e fico a chutar.


João Antônio (no livro Malagueta, Perus e Bacanaço)


 João Antônio diante da máquina de escrever nos anos 70.

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