julho 10, 2014

 


DOIS CONTOS QUE REGISTRAM O FUTEBOL ARTE COMO FORMA DE GLORIFICAR A DOR DE QUEM PERDE A FÉ NA SELEÇÃO NACIONAL:


DORA

meu pé torceu, meu coração também. esses dias tortos. de gelo no pé. Não ando e também não leio nada. Porque ler se é preciso pôr a bolsa térmica de vinte em vinte minutos sobre a lesão e pior que isso só a derrota deslavada na alma quando o time não avança as horas não avançam e o inimigo vem com toda a força sobre-humana e arranca o coração da boca e deixa aos prantos a  nação desfigurada de chuteira em prantos e eu nada a ver com isso porque Dora foi embora e me deixou com aquela dor imensa um vazio coração partido estilhaços por toda a sala onde víamos os jogos da seleção espanhola alemã italiana e ela me fazia cafuné e sorria pois não entendia quase nada do esporte bretão e mesmo assim se comprazia em torcer pelo meu entusiasmo juvenil quando alguma jogada maravilhosa saía de algum  lance inusitado do centroavante e alçava a rede e tocava a alma de encantamento e de contente ficava a sorrir feito menino e ela embevecida oferecia uma cerveja e me olhava com doces confortos de mulher que não entendia nada de quase nada, mas me fazia quase feliz na sua muda capacidade de não interferir nas miudezas da algazarra dos homens mirins que somos em quase todo tempo. somos mirins. e elas, as mulheres mães, que sabem olhar e não perguntar, sabem o momento exato de pegar a cerveja e trazer no ponto sem que fique choca e lambem nossa ferida até que cure e vão até o tanque lavar nossas meias e trazem nossa roupa cheirosa  e limpa, os sapatos reluzentes. Só ela, e Dora, e aquelas que como ela, sabem cozinhar segredos divinais e pôr à mesa como convém e na hora certeira e sem tropeço algum, tudo no lugar. Dora dos meus sonhos, sem reclamações, só chamegos e deleites sem fim. Era uma luz no caminho dos meus desesperos, minha musa, Dora, me traria o gelo, agora...


Márcia Lahtermaher


BOLA DE MEIA, BOLA DE GUDE

Bar Amarelinho cidade becos culturais cheios de rostos estranhos palavras de ordem apelos de confraternização em desconfiança generalizada mistura de frango frito com talharim ao sugo Andando pela calçada rumo ao Hexa eu passo diante de um bar que exibe um jogo onde a seleção canarinho perde por um a zero Dentro da enfermagem jurei minha última cerveja enquanto prostitutas lá fora esperavam pela enfermeira do turno da noite para reabastecimento de camisinhas gratuitas Andando pela calçada rumo ao Hexa eu passo diante de um bar que exibe um jogo onde a seleção canarinho perde por dois a zero Eu a lamentar pela velha mendiga que chora sentada na porta de aço da farmácia fechada ainda úmida pela chuva da madrugada onde ela diz que não se sente brasileira e que na verdade ninguém a vê como tal Andando pela calçada rumo ao Hexa eu passo diante de um bar que exibe um jogo onde a seleção canarinho perde por três a zero Seguindo a esmo eu piso nas calçadas de ondas negras e brancas silenciosamente sincronizadas que guiam e ilustram meus passos solitários pelo calçadão deserto de Copacabana Andando pela calçada rumo ao Hexa eu passo diante de um bar que exibe um jogo onde a seleção canarinho perde por quatro a zero Agora eu esmurro o vento mas eu menino queria ter punhos de homem bruto para entrar numa academia de box e esmurrar o saco de areia até me tornar profissional no ramo Andando pela calçada rumo ao Hexa eu passo diante de um bar que exibe um jogo onde a seleção canarinho perde por cinco a zero Sapatos eu tive muitos chinelos tive poucos a arte me adotou para depois me deixar à míngua então dedico a ela minha atual falta de chinelos e meu costume de chutar tampinhas que encontro pela rua Andando pela calçada rumo ao Hexa eu passo diante de um bar que exibe um jogo onde a seleção canarinho perde por seis a zero Perdido em noite de haicai com uma sílaba iluminada na ponta da língua que subitamente evaporou da memória que presumo fraca pela falta de vitamina e sais minerais Andando pela calçada rumo ao Hexa eu passo diante de um bar que exibe um jogo onde a seleção canarinho perde por sete a zero Demasiado chapado para resistir vou caindo irrestrito na calçada da fama na qual eu peço que esqueçam o meu nome ao afundar os pés no cimento mole de uma obra para contenção de enchentes.


Beto Palaio


Arte: Suzane Wonghon - 2006

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