setembro 04, 2014



TUDO O QUE VOCÊ PRECISA É DE AMOR

Acabaram-se os problemas. Um dos nossos incendiou o oceano. Vi pelo canto dos olhos que as labaredas alcançavam a altura da pedra maior do Pão de Açúcar.

De onde estávamos podíamos sentir o calor do mar que cuspia fogo em direção ao costão de cimento que ladeia as praias ao longo das avenidas urbanizadas do Rio de Janeiro.

Daqui se assistia. Uma aula com o mestre dos mestres. Aos poucos de nós, os escolhidos. Ele à janela de um dos edifícios na praia do Flamengo. Um homem cerimonioso referindo-se às chamas que ardiam lá fora. Ouvíamos ali as palavras nuas e cruas do professor de filosofias ardentes. Seu nome, entretanto, me inspira curiosidade até hoje: Passo Doble. Em frases compassadas, era o palestrante Passo Doble quem falava naquele momento em que chamas incomensuráveis engoliam a cidade:

- Recomeçar é sempre possível quando colocamos de lado nossos planos frustrados, indecisões inúteis, fatores desagregantes... E quem não os tem? 

Enquanto tudo acontecia, as gentes, nós, buscávamos o substrato de convicções favoráveis. Não é o fator da soma o que importa. O número isolado. Também ele. Fator em si. Isto é o que fica perdido, em meio, a dúvidas, pois há perdedores na vida, não? E a vida, por ela mesma, já não é um caos? Crê-se um anátema pelo que fazemos dela, ainda por cima, um tratado das Tordesilhas, felicidade cá, infelicidade acolá, bem longe.

- Tudo um dia se acaba, tudo passa neste mundo de ilusão, vai para o céu a fumaça, na terra fica o carvão.

Passo Doble adiantou-se à duvida geral do desencarne. Morre-se como moscas acolá. Longe daqui. Evidentemente. Que com a gente. Os protegidos de Passo Doble nada de mal ocorria. Ele evidentemente adivinhava nossas preocupações. Mas. Em continuação à sua preleção. Numa edição lap-top. Colocou uma imagem do telão com a seguinte cena: 

Uma linda moça avança rapidamente com um sorriso tímido, suas saias levantadas pelos lados para poder correr, mesmo que em constatada lentidão. Sua blusa rosa era levemente decotada e com bordas, no pescoço e punhos, tão coloridos quanto as penas de um beija-flor. Seu corpo todo se balançava em movimentos graciosos. Ela estava em close-up. Seu rosto tomando a tela inteira. Súbito, a câmera se afasta e a bela moça não está mais sozinha.

- O que aconteceu, meu amor?... Perguntou ela, com uma expressão carinhosa nos olhos.

Com isto um homem a cavalo se aproxima. Cinge-a pela cintura, depois eleva aquele belo corpo feminino para junto de si, acomodando-a sobre seu fogoso animal de cela. O casal se beija. Uma montanha-russa surge no lugar da imagem do beijo de amor. O casal desce e sobe sem aviso prévio. Eles. Fingem, perdem, ganham, esperançam-se. Todo amor que sentem. Por um filtro do feitiço. Desce uma água barrenta. Prevê o ditado: um por todos, todos por um. “Agora eu te conheço bem”, diz o cavaleiro soltando a moça no chão. Ela podia sentir a doença dele. Sifilítico, diabético, analfabeto. Além disto, com as pernas cortadas cirurgicamente abaixo do joelho. Aquele cavaleiro, seu marido, não mais se aguentava sobre a sela. Ambos agora estão velhos e inativos. INSS à porta. Ela se abraça à poltrona onde outrora seu marido se refestelava. Não toquem tango, nem mambo, nem abram a tampa do piano da sala. A poltrona está vazia. Ambos agora se foram.

- Entenderam?... Disse Passo Doble com olhar terno e apaixonado. O mesmo olhar que tinha a noiva antes de ser raptada pelo cavaleiro.

- Entenderam, ou não?... Repetiu ele para a audiência ainda estupefata.

Lá fora o céu está escuro, as estrelas brilhavam e o fogo no mar já havia se apagado.


BETO PALAIO



Arte: aquarela de Claire Loder.

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