junho 30, 2014


O LITERATO QUE ENFARTOU NA RUA QUE O LEVAVA

É o oco do bambu que cria o som da flauta. Um preâmbulo para que meditemos no que existe sem jamais ter existido. Entretanto se inscreve aqui mais duas ou três coisas que gostaria de dizer. Depois quero o sossego de umas férias literárias, seja lá o que isso signifique. Esta minha vida burocrata é mesmo uma pândega. Quis ficar aqui para sempre, escrevendo esses livros que ninguém lê. Mas me deu uma sensação de morte hoje em plena rua. Cheguei a pensar que não chegaria até minha casa. Olhei para frente, decidido a marchar irresoluto. Para isto teria de atravessar uma longa avenida, mas essa avenida encompridou de não ter fim. Olhei para o chão e este me convidou a sentar. Lembrei-me de Quincas Borba imediatamente. Ele que descera do palanque de uma palpitante vida social para findar sozinho, numa pindaíba somente servida aos mendigos, nas escadarias de uma igreja no centro velho da cidade.

- O senhor precisa de ajuda?

Gritou um taxista parando o carro rente ao meio-fio, mas não desceu do carro para estender-me a mão. Acenei para ele seguir em frente, agradeci ao seu bondoso gesto. Aproveitei e lhe perguntei as horas. Onze e meia. O sol queimava minha pele. Havia justamente saído do banco onde conversei com o gerente sobre a situação insolúvel em que cheguei com minhas pobres finanças. Vejo sem alterações a minha realidade dentro daquele banco. A cadeira vazia do gerente, café, tosse, xícara, colher, açúcar, tosse, som do telefone, saleta sem luxos, ninguém a vista, telefone silencioso, banco de couro negro, relógio na parede, jornal de ontem, cadeira vazia do gerente, tosse, calor, suor, campeonato carioca, ações da Petrobrás em baixa, cadeira vazia do gerente, palavras cruzadas, café frio, cadeira vazia do gerente, vazio irresoluto com quatro letras, nada. E exemplarmente nada foi resolvido. Toda presteza que se espera de um capital sobriamente adiantado como fidúcia do sistema. Qualquer um perderia paciência. Eu não perdi. Pensei em Oblomov, o personagem preguiçoso de Goncharov que passou o livro inteiro deitado num divã instalado na sala. A solidão de quem tem uma indolência enorme. O aconselhamento do gerente do banco era para não consumirmos excessivamente dentro do esplendor precário da recente realidade monetária nacional. O banco não participava da divisão de misérias alheias. Fiquei sem saída nenhuma. Para frente andei. Sem me importar se resmungasse ofensas àquela casa de pecúnia. Com uma rapidez giratória a porta me colocou no olho da rua. Qualquer semelhança com a vida ordinária de quem lê os créditos deste relato. Logo esclareço que. É mera coincidência. Nenhuma responsabilidade me cabe.

- O senhor precisa de ajuda?

Ser ou não ser. Uma sensação de desmaio à beira da calçada. O que fazer nessa situação em que me encontro? Lembrei-me da cura através de mantras antigos, mas também de novos mantras como o espetacular Nam Myo Ho Rengue Kyo. Lembrei que se o coração parar na sístole, a diástole pode te salvar. Alguns gurus apregoam que o ponto sagrado do chacra mental fica bem no meio da testa. Apertei com força o dedão no centro da testa que suava frio. Depois continuei respirando pausadamente, enquanto apertava o dedo na testa. Quem sabe o chacra mental tenha me segurado pela perna daquele espírito que já fugia. Quem sabe também me salvou a recitação que fiz baixinho de uma quadra popular, que lembrava também um mantra. Era uma quadrinha que ouvi no berço de minha infância, cantada por minha mãe: sapo cururu na beira do rio, quando sapo canta é que está com frio. Então me deu uma tristeza enorme. Como é que vou acabar assim? Morrendo sentado na calçada do banco que me negou empréstimo. E minha casa, como ficará minha casa sem que eu retorne para ajeitar tudo por lá? E os meus textos no computador, meu Deus? Penso nos meus livros inéditos que estão guardados num arquivo imenso. Uma solução eu vislumbrei. Se sair dessa eu passarei para os meus melhores amigos o arquivo de livros que escrevi, com o pedido que eles repassem aos seus melhores amigos também. Quem sabe atinja aqui uma “pirâmide cultural” da distribuição livresca. É só conferir. Se repassar para dez bons amigos e esses repassarem, assim por diante, para dez de seus melhores amigos, logo teremos uma propagação geométrica que tomará o país inteiro em menos de três meses. Serei o escritor mais divulgado e multiplicado do Brasil! Imagino até que meia-dúzia de editores constituídos recebam o arquivo de meus livros através dos seus melhores amigos. Gente que não conheço, pois fazem parte da corrente de distribuição livresca da qual perdi totalmente o controle. Mas esses editores não passarão o arquivo para os amigos deles. Não é da natureza dos editores possuírem amigos para quem enviem arquivos de livros alheios. Fico aqui pensando nessa inusitada situação. Não editei nenhum dos meus livros por falta de uma conversa franca, preto no branco, com essa meia-dúzia de editores. Os felizardos donos do prelo. Esses que deixam o escritor brasileiro de lado para irem tomar champanhe e comer bolachinhas suíças nas barracas de livreiros internacionais. Tudo na oportunidade de suas visitas infalíveis à Feira de Frankfurt. Estão ali com o dedo socavado no colete para comprarem direitos autorais de verdadeiras marmeladas literárias. Aqueles livros docinhos por dentro e com uma embalagem de tinir. E quem controlaria o apetite por guloseimas desses deslumbrados infantes do lucro? Mas deixo de lado esses pensamentos desencontrados e infrutíferos. Uma moça linda e luminosa agora está diante de mim. Ela me estende a mão. Será que estou delirando e já tenho esta visão tão surpreendente e angelical? Mal tenho tempo de responder a esta última questão. Aquela jovem prestativa parece ter pressa. É ela quem me pergunta se preciso de ajuda e, em seguida, já se põe a levantar-me, coisa que fiz sem sentir a pontada no peito que me fizera desabar naquela calçada.

- O senhor precisa de ajuda?... Então, deixe-me ajudá-lo...



Beto Palaio


Ilustração sem crédito na origem.

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