março 28, 2013




SAMÉL E LINDÓCA VISTOS DA ALAMEDA

Avista-se da alameda uma neblina matinal em espelho de nuvens. Imperceptivelmente. Por ali vinha esse menino. Molhando a barra da calça no orvalho da manhã. Ao passar por um bom trecho de capim-gordura. Haja friagem com o sol ainda nas entrefolhas. Samél nem queria parar para nada. Segue distraído. Em missões suas. Avista-se da alameda um bosque que um muro alto proibia. Ele saíra de casa de manhãzinha. Tão cedo que sua mãe ainda dormia. Tudo para ajudar no orçamento, o menino cismara com a idéia de ir até a cidade procurar serviço. Avista-se da alameda umas casas humildes que ainda dormem. Samél já tinha completado doze anos e era um menino muito esperto. Sabia das limitações do orçamento caseiro. Sofria calado. Queria somente ajudar, fosse no que fosse. Avista-se da alameda um vulto branco por demais solitário. Foi nesse mesmo dia em que ele planejou procurar emprego na cidade que ele conheceu Lindóca. Ele estava vindo no caminho traçado quando, do alto de um barranco, Samél viu uma égua branca parada na entrada de um caramanchão que encimava uma antiga porteira. Avista-se da alameda uma escadaria, ao natural, esculpida na terra. A égua queria voltar para dentro da propriedade. Por certo fugira e sabia o caminho de volta, mas a porteira a impedia de fazer isto. Parada diante deste empecilho, agora ela estava ali esperando que alguém lhe abrisse a porteira. Avista-se da alameda uma indefinida inquietude. Samél decide então descer o pequeno trecho de terra e abrir a porteira para a égua fujona. O animal nem estranhou a presença dele, pareceu mesmo agradecer quando ele abriu a porteira para ela entrar. Avista-se da alameda uma demonstração de amizade. A égua passou por ele, sapateando no liso do areão, dando a impressão de estar indo devagar demais, algo demonstrava que sim, Lindóca parecia esperar por Samél, já postada no lado de dentro da propriedade. Avista-se da alameda um aceno de confiança. Tão logo, incontinenti, a porteira bateu nos gonzos, voltando a ficar fechada, o menino percebeu que a égua não corria de sua presença. Mostrou-se estar agradecida por ele ter aberto a porteira. Avista-se da alameda uma certeza. Lindóca era linda, toda branquinha, mas também parecia estar um tanto desleixada: algo suja de terra vermelha, cheia de carrapatos e sementes de picão. Avista-se da alameda uma forma de retribuição. Samél nem estranhou da égua estar ali parada. Ele se aproximou dela, fez carinho na pelagem, depois na crina e por fim na cara da égua que ele imediatamente batizou por Lindóca: “oi, Lindóca... Estou achando que você quer me dar um emprego... Me leve então até seu dono”, Samél falou isso sem propósito e tomou tento para subir em pelo na Lindóca, já com ela rumando para dentro da fazendola. Avista-se da alameda um cavaleiro pálido montado num cavalo pálido. Ao percorrerem chão de terra arenosa. Trotando eles passaram por um trecho de cerrado, com cagaiteiras retorcidas, capins de sopé, e arbustos de gabirobas. Depois surgiria um caminho fundo com muitas folhagens graúdas, espigões de palmiteiros e a presença de árvores de lei que conferiam uma sombra lúgubre para quem por ali passasse. Avista-se da alameda uma passagem sombria no meio do caminho. Logo eles adentraram as posses e benfeitorias do fazendeiro. À vista, na passagem, bom trecho de milharal com suas espigas pensas, já secas e esperando a colheita. Depois atravessaram uma baixada repleta de pés de fumo. Avista-se da alameda um longo desfilar de arames farpados. Logo Samél avista um telheiro, à sombra do qual meia-dúzia de operários recolhiam as folhas de fumo secas e arranjavam em fardos para amarração. Samél e Lindóca vão seguindo em frente até que ele avista um tipo de praça onde uma paineira centenária reinava em meio a bancos de madeira já há muito carcomidos pelo tempo. Avista-se da alameda um retiro para o viajante cansado. Ali ele apeou de Lindóca e foi falar com uma mulher que carregava uma lata d´água equilibrada no alto de sua cabeça. A mulher lhe indicou onde ele encontraria o Seu Ramiro, que era o capataz da fazenda, com quem deveria falar sobre serviço. Avista-se da alameda uma chance em um milhão. Quando ele encontrou o Seu Ramiro este nem estranhou o pedido de Samél, parecia até que ele esperava pelo menino: “pode trabalhar sim... A troco da comida e da vestida... Se quiser começar o serviço, aproveite que já está com essa égua fujona e dê uma volta na propriedade reunindo os outros cavalos... Depois guarde todos ali naquele cercado”. Isto Seu Ramiro disse, sem dar detalhes onde Samél moraria, o que comeria, ou o quanto realmente ganharia. Essas coisas que se acerta desde o início de qualquer trabalho na roça. Avista-se da alameda uma tarefa insana. No entanto. Samél, contente de tudo, subiu outra vez em Lindóca e demorou cerca de quatro horas para reunir uma dezena de cavalos que acomodou em uma cocheira improvisada, a qual Seu Ramiro lhe falara como sendo “cercado”. Ali ele passou o resto do dia sozinho, limpando os cavalos dos bernes e dos grudes de picão. Depois o menino os lavou demoradamente, cada um deles, para finalmente os escovar e deixá-los tal qual uma tropa de elite. Avista-se da alameda um desejo de ser feliz. Já era noite quando uma criança local veio até ele com uma marmita repleta de arroz, feijão, ovo frito e farinha. Essa mesma criança apontou o paiol de milho e falou que Samél poderia dormir por ali mesmo. No dia seguinte, ao acordar cedo, Samél vê que o milho guardado no paiól já estava no ponto o fabrico do fubá. Avista-se da alameda um desperdício de farturas. Ele também nota que há por ali, no acesso da bancada, uma máquina quebrada que uma vez, lá no passado, se encarregara de fabricar a farinha de milho. Samél passou aquele dia desmontando a máquina, trocando parafusos enferrujados, oleando engrenagens, ajeitando correias até que, no final do dia, ele liga a máquina e joga dentro dela um punhado de espigas de milho. Avista-se da alameda o futuro se espremendo para caber no presente. Como por milagre o fubá começou a se acumular nas bandejas, dando um toque de elegância ao todo daquele paiol que vergava sob um madeirame centenário. Logo surge o Seu Ramiro e aprecia longamente a obra de Samél: “eita moleque esperto... Limpou os cavalos... Arrumou a máquina de farinha... O que mais você sabe fazer?”. O menino pensou um pouco e disse: “sei um pouco de tudo, sim senhor”. Avista-se da alameda um contrato de trabalho definitivo. Os dias correm como um ribeirão esperto. Em menos de um mês tudo naquela propriedade passara pela manutenção da mão-de-obra de Samél: o cata-vento que puxava água do poço foi consertado, as pranchas que ajeitavam o açude para criação de curimbatás foram trocadas, as espigas de milho secas no pé foram recolhidas, os ninhos das galinhas poedeiras foram ajeitados. Deste modo passou aquele ano. E depois outro. E depois outro. Até o dia em que Lindóca fugiu novamente. Avista-se da alameda a projeção de um filme ao contrário. Foi seguindo atrás da égua fujona que Samél percebeu que já era um homem. Ele tinha um porte atlético pelo muito trabalho, e usava uma barba escorrida no rosto. Samél nunca tinha saído daquela propriedade, e isto nunca o incomodou. Passara mais de quinze anos na labuta. Mas ao dar falta da Lindóca ele seguiu o caminho de volta. O mesmo trajeto que fizera há quase vinte anos atrás, até que chegou na porteira do caramanchão. Avista-se da alameda um retorno ao começo. Ali ele atravessou seguindo o rasto da égua que fugira. Quando ele atravessou a porteira notou uma ventania e um redemoinho de poeira que parecia o seguir. Vindo de reverso. As imagens se alongaram em prenúncio de estranhamento. Avista-se da alameda um homem diante de seu destino. Logo Samél olhou para trás e não reconheceu nada do que avistava. Tudo havia desaparecido na poeira. A bem da verdade não havia ali fazenda nenhuma. Apenas uma estrada asfaltada que passava ao alto, ao alcance de um barranco que ele tinha de subir, o mesmo barranco da estradinha de terra que ele descera vinte anos antes. Avista-se da alameda o encontro do personagem com o seu verdadeiro caminho. Quando chegou ao alto ele viu que não havia mais porteira e que tudo ali estava tomado por plantação de eucaliptos, a perder de vista. Sem entender nada ele tomou aquela estrada asfaltada, algo novo também para ele, e rumou de volta para sua velha casa, aquela que deixou quando saiu para procurar trabalho, tantos anos já passados. Avista-se da alameda uma alma recomposta. Mas nem tinha pressa de chegar lá, parecia mesmo que voava, com seu corpo leve começando a flutuar, aos modos de paina. Assim, suspenso no ar, voando como um passarinho, Samél vê o bairro de sua infância, mas tudo estava mudado. No lugar de seu antigo bairro havia agora um gramado que do alto lhe parecia verde demais. Avista-se da alameda um sinal de glória. No meio desse gramado ele avista a Lindóca. Ela assemelhou que também o vira no alto, indo embora, flutuando no ar. Deu um relincho e agitou sua bela cabeça animal, como costumava fazer quando concordava que estava muito feliz. Avista-se da alameda o despertar de um mundo novo.

Beto Palaio


Imagem: Filme "O Cavalo Branco" de Albert Lamorisse.

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