março 10, 2013





UM LIVRO EM BRANCO

Numas. Safadezas em voga no escurinho do cinema. Desmaia as pontas dos dedos na meia de seda. Ao adivinhar o reduto de rendas, ao fundo de pernas pecadoras. Ela. Entrega-se à passadeira. De mãos. Com uma fita americana desfolhando. Na saborosa matinê. Ele. Despenteia limas doces. Línguas dulcoram em hortelãs. Em respirar profundo. Cenas dirigidas. E estão. Mais que. Comprovadas. Aquém do território de cetim. As ligas. Aconselham desabotoares. Beijos zunem. Imunidades. Perfumes vadios. Dedos deslizam. Em permissão. Ao frenesi. Das beiradas. O generoso púbis. De pronto. O filme saiu da penumbra. Os personagens caminham num ambiente tipicamente rural. Flashes de luzes siderais. A menina está feliz com seu cão. Acomodada sobre uma carroça de feno. Doroty domina a tela inteira. Em preto e branco. A chamar pelo seu boneco de lata. Além do arco-íris. Passeia um coração juvenil. Com seus sapatinhos de rubi. Entretanto. No lado de fora. No compasso do mundo real. Observa-se um trecho da calçada. Já longe do cinema. Um perfume de pipoca feita na hora. Os namorados, atrevidos no escurinho, jamais serão os mesmos. Eles apenas se dão as mãos. Falam do filme. Dos temas musicais. Dos atropelos de Doroty. Da excelsa magnitude da sétima arte. Tudo não passava agora de uma esmerada ilusão. Pois. O cinema é cachoeira. Urdido em industriosa técnica. Borrões no tanto que ilude. Nestas. Notações à margem do papel onde se escreve uma estória verídica. Hoje só escrevo para, com justiça, declarar que um dia amei de fato esta mulher. Registro estes acontecimentos, então, leia e, se puder, releve ou, caso contrário, esqueça o que escrevo. Vínhamos pela Cinelândia. Compenetrado era o andar, no tempo dos bondes, pelo centro do Rio de Janeiro. Logo ao sairmos do cinema. Ela era uma outra pessoa. Não passava de uma estranha para mim. Será que éramos monstros do desejo apenas no escurinho do cinema? Então, às vezes, de repente, todas as chamas estão na captura de um ar em que respire. Quando outra vez eu estava ofegante. E tentava beijá-la no meio da rua. Mas ela se esgueirou em negativas. Temia pelas pessoas que nos olhavam. Imaginava dessas pessoas serem amigas de seus pais. Isso até lhe dava dores de cabeça. Em azafama. Nem lembro quanto tempo nós vagamos, desde a Cinelândia, até o ponto do bonde para o Catete. Falávamos pelos cotovelos, em atropelo, dentro de meus pensamentos, ofendia minha incompetência, à olhos vistos, num tal arroubo, para a pessoa que me tornara um ciclone de amor, um azougue no escurinho do cinema, agora na calçada umedecida pela chuva da tarde, este pecador se fez de morto. As coisas estariam se descartando? Por que ela me via como uma ameaça assustadora? Ilegítima em sua essência? Eu sei que ela nunca iria me responder, nunca respondeu, aliás. Ela, a minha namorada, mesmo após efêmeras entregas, entrou naquele bonde e sequer olhou em direção à calçada. “Será que ela vai olhar para mim?”. Mas não olhou. “Que fazer? Depois ligo para ela? Agendarei novamente um cinema para o próximo Sábado?”. Ao andar a pé, solitário, eu observo os outros, transeuntes anônimos, evidentes exemplos de uma cidade inteira, estes passam por mim. Inclusive. Ao melhor do exemplificado. Observei um casal sentado num banco de praça. Tentava ficar indiferente à mágoa que me invadia. Entretanto. Bem ali na minha frente. Um homem e uma mulher estavam voltados para o amor incontido. Beijando-se na boca. Incansáveis carícias aos olhos de todos. Estariam errados os dois? Todos aqueles minutos que andei a esmo. Vinha eu pela Riachuelo, rumo Lapa. Na pensão onde morava, apenas o fiel cão da proprietária me fez festa. Algo me dizia que o amor era um erro. Em alguns momentos, o amor se oferecia para mim com vozes feitas de carne, em outras ocasiões, o amor era apenas uma vaga referência. Com este qüiproquó instalado. Eram múltiplos os tons de significado, embora, no final, tudo o que restasse era a ausência da pessoa amada. Ficou em mim a dúvida. Por que ela se afastara de mim ao sairmos do cinema? A nossa paixão tórrida, quando até ignorávamos o filme, não teria valido de nada? Tanto aquilo me incomodou que naquela mesma noite tive um sonho bem realista, onde a minha amada participava. Neste sonho nós vínhamos por uma alameda arborizada que logo nos leva aos estreitos corredores de um cemitério. Ali, entre cruzes, inscrições e centenas de fotos anônimas, ela começou a me jogar pedras. Umas. Ouvia claramente o clique das pedras coletadas por ela ao chão. Eu estava perto de um arbusto, fugindo das pedras, quando olho para trás e vejo um abismo que se abre. Neste abismo eu caio. Mesmo agora, os detalhes crescem em mim numa sensação de desmaio. Eu tento esquecer deste sonho. Banir tudo da minha mente. Rolo na cama. Uma insônia terrível se instala, embora parte de mim quer se lembrar daquele sonho. Quando volto a dormir esse mesmo sonho tem continuidade. Ela, a minha namorada, agora surgia como uma criança que me apontava o túmulo de sua mãe. Desta vez, sem pressa, sentei-me atrás dos arbustos acompanhado de alguns de meus livros. Uma vez que, brevemente, ela me pediu para que lesse para ela um poema. Neste sonho singular eu me atrevi a abrir um livro qualquer. A minha voz ficou embargada ao tentar ler o que via. E o que via era o nada: as páginas daquele livro estavam em branco. Ainda assim olhei para aquela menina—minha namorada, por certo—e a vi sentada no recesso de uma pedra de mármore, anexo ao túmulo de sua mãe. Mostrei-lhe então o livro em branco. Ela fez um sinal que entendia o que eu lhe mostrava. Depois falou diretamente para mim de uma forma, inclusive, petulante: “eu sei que o livro da nossa vida está em branco”. Mas me inquietou mais ainda o que ela disse depois: “o que será escrito sobre a nossa união terrena está em seu poder”. Ela estava sorrindo quando completou: “invente o nosso livro... Escreva você mesmo o que acontecerá no futuro de nós dois”.


Beto Palaio

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